Todos os anos, no período das matrículas escolares, milhares de famílias escolhem uma escola pública para os seus filhos. E muitas procuram que, em vez de frequentar a que está mais próxima de casa, os seus filhos consigam vaga numa escola pública que, apesar da distância, eles consideram melhor ou mais adequada. Até aqui, tudo normal. Só que, no momento da concretização dessa ambição das famílias, as dificuldades aparecem. Primeiro, as escolas que são consideradas melhores têm muita procura e, inevitavelmente, são poucos os alunos a conseguir vaga. Segundo, as regras das matrículas dão privilégio aos critérios geográficos (morada de casa ou do trabalho), pelo que florescem os esquemas e truques para furar esses critérios e apresentar uma candidatura com probabilidade de sucesso. Terceiro, as famílias socialmente desfavorecidas ficam encurraladas: por um lado, moram em zonas periféricas e junto a escolas problemáticas; por outro lado, não têm meios para vencer os critérios impostos no procedimento para as matrículas, ficando impedidas de escolher uma alternativa à escola do seu bairro.
É apenas normal que os pais queiram escolher a melhor escola possível para os seus filhos. E é esse o ponto de partida para um desafio nas políticas públicas de educação: como conseguir conciliar essa expectativa com o equilíbrio do sistema educativo e como garantir critérios de justiça que previnam segregação social na composição das escolas (isto é, nas boas escolas ficarem apenas os alunos com perfil socioeconómico elevado, e vice-versa). Porque o desafio não é novo, soluções e medidas possíveis até existem várias, mas todas arrastam consigo consequências e problemas – como, aliás, comprova a situação vivida nas escolas de Lisboa, Porto e Coimbra (mas não só), onde o período de matrículas se transforma em trincheira de batalha por uma vaga.
A situação em Portugal justifica que se alterem as regras das matrículas? Sim, sem dúvida. E o governo reconheceu-o, introduzindo alterações legislativas no despacho que regula as matrículas para o ano lectivo que começa em Setembro de 2018. A questão que se coloca é se essas alterações resolverão realmente os problemas em causa. Como se verá neste ensaio, o melhor que se pode esperar é uma ligeira melhoria. O que leva à pergunta: afinal, é possível acomodar no sistema educativo tantos interesses e expectativas que parecem ser incompatíveis? Deste ensaio, não surgirá uma resposta definitiva. Mas haverá um diagnóstico do problema, uma análise às alterações do governo e uma proposta para o futuro: e se se sorteasse uma parte das matrículas só para alunos com Acção Social Escolar?
Os três problemas nas regras das matrículas em Portugal (até 2017)
Todos os anos, o Ministério da Educação determina, por despacho, o procedimento das matrículas e as regras que as enquadram. Um dos pontos-chave desse despacho está na definição das prioridades que desempatam as candidaturas no caso de existirem mais pedidos de matrícula do que vagas disponíveis numa escola. É, basicamente, uma lista de critérios (tabela 1). Ora, nesta lista esconde-se o coração dos problemas nas matrículas: os critérios que mais peso têm (isto é, que determinam a colocação de mais alunos) são os que se referem a áreas geográficas – de residência e de local de trabalho. O que, parecendo justo, dá origem a três problemas, sobretudo nas cidades de Lisboa e Porto: elevados níveis de segregação social nas escolas; uma tentação de contornar as regras das matrículas (só acessível a quem tem mais meios e mais informação); o ignorar da dimensão pedagógica na diferenciação das escolas.
Problema 1: segregação social nas escolas. Quem já tentou matricular um filho numa escola que ficasse fora da “área de influência” da sua morada de casa percebeu de imediato os problemas que isso acarreta: o desempate das candidaturas dos alunos baseia-se na morada da residência ou do local de trabalho do encarregado de educação, pelo que quem vier de fora da área circundante da escola dificilmente conseguirá a vaga pretendida. Do ponto de vista do sistema educativo, a consequência óbvia é que a composição das escolas vai espelhar a população dos bairros onde estas se inserem. Ou seja, nas zonas das cidades onde a população residente tem um perfil socioeconómico médio-alto (e onde as rendas são mais elevadas), as escolas terão alunos com perfil socioeconómico médio-alto. Inversamente, nas zonas urbanas onde as rendas são mais baratas e a população residente tem um perfil socioeconómico baixo, as escolas terão uma elevada percentagem de alunos socialmente desfavorecidos.
É esta a realidade da rede pública há muitos anos. Maria de Lurdes Rodrigues, ex-ministra da Educação, diagnosticava justamente o problema nestes termos, em Agosto de 2017: “A associação entre residência e acesso à escola oferece-se como um princípio simples de organização do serviço de educação. Porém, quando a desigualdade social e económica se traduz em segregação residencial este princípio transforma-se numa armadilha. As escolas ficam encerradas nos respectivos territórios, tornando praticamente impossível a concretização da igualdade de oportunidades. A associação rígida entre residência e acesso à escola tem efeitos perversos, podendo contribuir para o aumento tanto das desigualdades escolares como das desigualdades sociais.”
Mas, apesar de o diagnóstico estar feito, só recentemente surgiram os dados que oferecem um retrato concreto sobre a gravidade da situação: em Lisboa e no Porto, há escolas quase exclusivas aos mais favorecidos e outras destinadas quase na íntegra aos mais desfavorecidos (gráficos 1a e 1b). Uma coisa é saber-se que é assim. Outra coisa é ver-se os números, que são efectivamente chocantes. Em Lisboa, há zonas da cidade com escolas com mais de dois terços de alunos desfavorecidos, enquanto noutras zonas aparecem escolas com apenas 8% de alunos com Acção Social Escolar. De igual modo, no Porto, encontram-se de um lado escolas com 87% de alunos com Acção Social Escolar, e de outro lado escolas com apenas 16%. Ou seja, estas regras das matrículas geram níveis de segregação social muitíssimo elevados e que são contraproducentes para o funcionamento das escolas e para a prossecução da sua missão de constituir um elevador social.
Problema 2: moradas falsas e outros truques para a obtenção de vaga. Quando as regras existentes prejudicam as oportunidades de um filho ter sucesso, é compreensível que os pais façam tudo ao seu alcance para as contornar. Neste caso das matrículas, essa questão coloca-se no acto de conseguir obter uma vaga na escola desejada, mesmo que se venha de fora da área geográfica de influência dessa escola. Como? Através das ditas “moradas falsas” – que, em rigor, não são realmente “falsas”. Basicamente, o esquema consiste em conseguir que a criança tenha um encarregado de educação (por exemplo, um amigo ou familiar dos pais) que resida ou trabalhe na área de influência da escola – mesmo que essa morada nada tenha a ver com a residência da criança ou esteja fora das suas rotinas. É uma forma legal de contornar as limitações impostas mas que, na prática, gera injustiças e pode levar até à não obtenção de vagas por parte dos moradores na área de influência da escola – como aconteceu em Lisboa, em relação à Escola Filipa de Lencastre, situação que originou um movimento de cidadãos e motivou petições à Assembleia da República.
Ora, este problema ultrapassa a mera questão burocrática. O ponto é que só consegue contornar as regras e apresentar uma “morada falsa” quem tem melhor rede de contactos, melhor informação sobre o funcionamento do sistema e melhores instrumentos para defender os seus interesses. Ou seja, à segregação residencial do problema n.º 1 acrescenta-se uma discriminação social neste problema n.º 2: as famílias socialmente desfavorecidas, já excluídas das melhores escolas por critérios de residência, têm uma probabilidade muito menor de conseguir contornar as regras com sucesso, ficando sem opções que não sejam as escolas das suas próprias áreas de residência. Do ponto de vista das políticas públicas, isto significa uma dupla desvantagem para as famílias de baixo perfil socioeconómico. O que é particularmente penalizador: estas famílias são também as que mais dependem da escola pública para “puxar para cima” e dar mais oportunidades de sucesso aos seus filhos.
Problema 3: as regras das matrículas ignoram as características das escolas. A evolução do sistema educativo tem ido (e bem) no sentido da promoção de mais autonomia nas escolas e maior diversidade da oferta educativa. É, de resto, esse o pressuposto na raiz do projecto de Autonomia e Flexibilidade Curricular, que o Ministério da Educação visa alargar a (ainda mais) escolas no país, estimulando inovação pedagógica entre os professores e permitindo às escolas tomar decisões quanto ao currículo. Ou seja, o Ministério da Educação quer que as escolas se diferenciem entre si, tomando decisões pedagógicas e orientando o seu projecto educativo. Simultaneamente, as matrículas nas escolas processam-se de uma forma que, tendo a localização geográfica como factor fundamental, ignoram por completo as opções pedagógicas das escolas – o sistema não está preparado para que um aluno escolha uma escola à medida do seu projecto educativo. Assim, enquanto por um lado se pede às escolas que desenvolvam ofertas educativas diferenciadas, as matrículas nas escolas aplicam-se sob o pressuposto de que as escolas são todas iguais – e, sendo todas iguais, a selecção faz-se directamente por via da sua proximidade com a casa do aluno. Trata-se de uma grande incoerência no sistema educativo (cuja resolução não é fácil).
O que o governo alterou em 2018 (e o que ficou por alterar)
A preparação de cada novo ano lectivo inclui a publicação do despacho das matrículas e, no despacho referente ao ano lectivo 2018/2019, o governo introduziu duas alterações importantes, numa explícita tentativa de lidar com os problemas acima descritos.
Primeiro, o governo alterou a lista de prioridades que estabelecem os critérios de desempate, introduzindo uma inovação: os alunos com Acção Social Escolar (isto é, os alunos socialmente mais desfavorecidos) que estejam dentro da área de influência da escola (seja por residência, seja por local de trabalho dos pais) passam a ter prioridade sobre os restantes alunos, incluindo os residentes na área de influência da escola (conferir na tabela 2 a introdução das novas prioridades 5 e 6). O que é que isto significa na prática? Que, através desta alteração, surge uma maior probabilidade de alunos desfavorecidos cujos pais trabalhem perto de uma escola com muita procura conseguirem vaga. E que, consequentemente, esta será (pelo menos na teoria) uma forma de reduzir a segregação social existente nas escolas – a expectativa é que mais alunos desfavorecidos consigam frequentar escolas das quais têm estado excluídos antes desta alteração.
A segunda alteração do governo é o combate à fraude das “moradas falsas”, determinando que, para efeitos das matrículas escolares, usar-se-á a morada do aluno registada nas Finanças. Ou seja, passou a ter-se em conta a morada efectiva da criança, em vez da do encarregado de educação, independentemente de este ser familiar directo ou não, de ter ou não responsabilidades no seu acompanhamento escolar. Consequentemente, a expectativa é que se reduzirá o impacto das candidaturas que tentam contornar as regras de proximidade geográfica, reduzindo também a segregação social por esta via.
O que esperar destas alterações? Olhando ao impacto expectável, há boas e más notícias. Obviamente, nenhuma alteração no despacho de matrículas poderia alguma vez ser consensual – as matrículas mexem com demasiada gente e são demasiado importantes para gerar indiferença. Neste caso, por exemplo, houve quem lamentasse que a morada dos avós deixasse de contar, interferindo nas rotinas diárias dos que neles confiam para ir buscar os miúdos à escola. E houve também quem desconfiasse da prioridade aos alunos com Acção Social Escolar que, na teoria, poderá excluir moradores do acesso às vagas. Mas, em rigor, e esta é a notícia boa, as alterações introduzidas pelo governo parecem ponderadas, têm potencial para atenuar alguma segregação social nas escolas e, como tal, tornarão o sistema um pouco menos injusto.
Agora vêm as notícias más. Por um lado, importa assinalar que as medidas são grandemente insuficientes para contrariar um fenómeno tão enraizado de segregação social nas escolas. Apesar de alguns alunos socialmente desfavorecidos poderem beneficiar das alterações, será sempre numa escala diminuta, pois dependerá da morada do local de trabalho dos seus pais e da proximidade a uma escola que os pais considerem melhor. Ora, sendo certo que esta população-alvo enfrenta desafios de desemprego ou precariedade laboral, assim como de baixas qualificações e empregos precários, as medidas do governo terão um impacto limitado e que nunca será estrutural no combate à segregação social nas escolas. De resto, o tira-teimas virá daqui a um ano, caso o Ministério decida publicar os dados actualizados da segregação social nas escolas, o que permitiria avaliar os efeitos desta alteração legislativa. De resto, um outro aspecto menos positivo é que estas alterações não rompem com o pressuposto que há largos anos vigora nas matrículas, que é o da proximidade geográfica. Assim, mantêm a incoerência de um sistema que, por um lado, promove a diversidade de projectos educativos e, por outro, trata nas matrículas as escolas como sendo iguais entre si.
Ou seja, as alterações introduzidas pelo governo são positivas mas, também, uma espécie de paliativo: ajudam a lidar com problemas imediatos, mas não resolvem as questões estruturais. Pergunta: mas, afinal, de que forma se poderia enfrentar as questões estruturais? Não sendo fácil, existem algumas experiências internacionais (boas e más) que abrem pistas sobre caminhos possíveis.
Duas alternativas que funcionaram mal
A existência de mais alunos-candidatos a uma escola do que vagas disponíveis não é um exclusivo português e, como tal, todos os sistemas educativos têm de lidar com este desafio, de uma forma ou de outra. Na maior parte dos países, como Portugal, recorre-se à área geográfica como critério-chave para a distribuição de vagas – é, do ponto de vista do Estado, o sistema mais cómodo para a organização da rede escolar. As consequências também não diferem muito – por exemplo, no Reino Unido é assumido que existe um problema de aumento acentuado de preços de casas que estão nas áreas de influência das melhores escolas. Mas isso não quer dizer que as situações de outros países espelhem o caso português, na medida em que, entre países, surgem diferenças fundamentais nos índices de desigualdades sociais e de dimensão da oferta educativa que agravam ou atenuam o impacto da prioridade da área geográfica nas matrículas.
De qualquer modo, o consenso europeu parece ser mais ou menos este: recorrer à localização geográfica pode gerar desigualdades, mas parece ser o sistema menos injusto entre as alternativas. Que alternativas são essas? Há duas particularmente óbvias e que, tendo sido testadas, são comprovadamente más.
A primeira alternativa consistiria em permitir à escola a definição dos critérios de selecção de alunos, mesmo que esses critérios sejam enquadrados por regras pré-definidas pelo ministério. Na teoria, a ideia tem algum sentido: se as escolas têm projectos educativos diferenciados e podem decidir apostar numa determinada área (seja ciências ou artes), definir um perfil de aluno alinhado com esse projecto educativo parece razoável. Na prática, a ideia gera segregação social, porque, mesmo de forma involuntária, as escolas definem critérios que seleccionam os alunos em função do seu perfil socioeconómico. Foi o que sucedeu na Nova Zelândia, no breve período em que esse sistema foi implementado durante a década de 1990 com menores restrições: assim que as escolas sentiram poder escolher os seus alunos, preferiram sempre que possível ficar com os melhores, excluindo os piores e potencialmente mais problemáticos. Apesar disso, em alguns sistemas educativos europeus permite-se que as escolas adoptem este procedimento de selecção de alunos, nomeadamente nas escolas mais competitivas do ponto de vista académico – no Reino Unido, por exemplo.
A segunda alternativa seria proceder ao desempate das candidaturas ordenando-as pela sua ordem de entrada: quem submeter primeiro consegue a vaga, aplicando-se a regra até que se esgotem as vagas. Na teoria, a solução parece ser uma forma isenta de filtrar as candidaturas e, simultaneamente, colocar de lado o critério geográfico (o que parece ser fundamental para ter um sistema justo). Só que, na prática, esta alternativa depende da disponibilidade das famílias para estarem desde cedo, por vezes desde a madrugada, em filas de espera para conseguir ganhar um lugar. Na Suécia, onde este sistema chegou a ser adoptado, rapidamente se percebeu que o sistema favorecia quem tinha condições profissionais para ficar tantas horas nas filas, nomeadamente os trabalhadores liberais e independentes (geralmente classe média). Dito de outro modo: as autoridades suecas perceberam que este sistema, criado para garantir igualdade de oportunidades, estava a prejudicar as famílias desfavorecidas que, por falta de acesso à informação ou por ausência de flexibilidade laboral, ficavam sucessivamente sem as vagas desejadas.
Noutros países, sistemas derivados destes foram adoptados, sendo que os resultados não foram diferentes destes. Ou seja, as principais alternativas que surgiram na Europa nos anos 90 e 2000 não vingaram. Mas, atenção, a história não acaba aqui.
Sortear (algumas) matrículas: uma alternativa viável?
Recapitule-se. A raiz dos problemas das matrículas está na relação entre o acesso a uma vaga e a área geográfica (seja pela residência ou pelo local de trabalho). Ora, como vimos acima, a análise às alternativas mais populares leva à conclusão de que existem demasiados riscos em deixar as escolas seleccionar os alunos ou em optar por critérios de ordem de chegada das candidaturas. Existe outra alternativa a considerar? Sim. Cada vez mais governantes têm avaliado a solução de fazer lotarias para sortear (isto é, tornar aleatória) a atribuição de uma parte das vagas disponíveis numa escola. E a boa notícia é que os resultados têm sido positivos.
A lógica deste sistema de distribuição de vagas é simples de resumir: para uma quantidade de vagas pré-definida (normalmente apenas uma parte das vagas), o critério de desempate entre candidaturas deixa de ser residencial e passa a ser aleatório, dando a todos os alunos-candidatos as mesmas probabilidades de conseguir o desejado acesso à escola escolhida (ou seja, garantindo que existe uma efectiva igualdade de oportunidades). O objectivo é quebrar tendências (directas ou indirectas) de segregação social nas escolas: como se baseia na sorte, ninguém passa à frente de ninguém.
Nos EUA, em particular, esta prática tornou-se relativamente comum para a distribuição de vagas nas charter schools (escolas com contrato com o Estado), cuja missão é oferecer um ensino de elevada qualidade e exigência sem custos para as famílias. Naturalmente, a frequência destas escolas é particularmente desejada pelas famílias com baixo perfil socioeconómico, que vêem aqui uma oportunidade de oferecer aos seus filhos uma boa formação escolar de excelência – algo que não teriam na escola do seu bairro. Consequentemente, são muitos mais os candidatos do que as vagas disponíveis nessas escolas e, visto que estas escolas estão impedidas de seleccionar alunos, o sorteio é o sistema adoptado – e que é geralmente aceite.
Veja-se o caso concreto desses sorteios na cidade de Nova Iorque, onde operam 227 escolas deste tipo e com elevados níveis de sucesso escolar – das quais 87 em Brooklyn e 65 no Bronx, as áreas mais pobres da cidade. Estas escolas em Nova Iorque apresentam níveis de desempenhos escolares dos seus alunos particularmente superiores às médias das restantes escolas da cidade e níveis elevados de posteriores entradas na universidade – o que é notável para escolas em que 77% dos alunos estão sinalizados para apoios sociais. Ora, para o ano lectivo 2017/2018, foram abertas 25 mil vagas nessas escolas, às quais se candidataram 73 mil crianças (gráfico 2). Essa candidatura é simples de efectuar: basta entregar o impresso preenchido (papel ou online) com informação básica sobre o aluno, nomeadamente o ano escolar ao qual se candidata. O sorteio é depois aplicado por fases, havendo prioridade obrigatória para quem já tenha irmãos na escola, por exemplo, e outras prioridades que a escola decida introduzir (por exemplo, discriminar positivamente alunos em risco ou com deficiência). Uma vez que a transparência é crucial para a aceitação deste processo, os sorteios são monitorizados por representantes das autoridades de Educação de Nova Iorque e as sessões são públicas. Claro que, num processo em que apenas uma pequena parte dos candidatos tem a sorte de obter uma vaga, estas sessões são geralmente emocionalmente intensas – seja de felicidade ou de tristeza.
Nem só nos EUA se fazem sorteios para seleccionar alunos. Na Nova Zelândia, no seguimento da experiência acima descrita, introduziram-se sorteios para os desempates entre alunos que venham de outras áreas de influência geográfica. No Reino Unido, onde as escolas têm uma ampla liberdade de definição de critérios de selecção de alunos, algumas localidades e escolas optaram por esse sistema – embora aplicando os sorteios apenas a quotas pré-definidas do total de vagas. E não só no ensino básico e secundário este sistema está a ser implementado. Na Holanda, o sorteio para a distribuição das vagas aplicou-se no acesso ao ensino superior durante muitos anos, nomeadamente em Medicina e outros cursos com maior procura e menor número de vagas. Entretanto, constatou-se que a aleatoriedade não garantia uma escolha adequada dos melhores profissionais, razão pela qual, a partir de 2017/2018, se deu às universidades a definição dos critérios de escolha dos seus alunos. Também em França esse sistema de selecção aleatória de alunos funcionou para os cursos mais concorridos, mas foi aplicado pela última vez em 2017: após protestos dos alunos, o governo recuou e decidiu proibir esse sistema nas universidades.
Tudo isto mostra dois aspectos fundamentais. Primeiro, que o sorteio de vagas é um sistema de matrículas eficaz no sentido de quebrar selecções de alunos e segregação social. Segundo, que a sua implementação é mais bem-sucedida quando a população-alvo entende a mais-valia que representa. Para tal, ajuda que os sorteios não sejam um critério absoluto, mas que sejam aplicados apenas como critério de desempate após a distribuição de vagas por prioridades (alunos com deficiência, irmãos na mesma escola ou um certo grau de proximidade geográfica). Ou seja, do ponto de vista das políticas públicas de educação, sobressaem duas lições: criar um sistema de sorteio de vagas que seja misto e explicar às famílias, nomeadamente às mais desfavorecidas, que as suas chances de obter uma vaga serão superiores através da aleatoriedade do que através de critérios de selecção residenciais ou de desempenho escolar.
So what? Quatro ideias-chave e uma proposta para o caso português
Primeira ideia-chave: as regras das matrículas em Portugal geram segregação social nas escolas porque reproduzem as desigualdades residenciais. Ou seja, ao ficar na dependência de critérios geográficos, as matrículas promovem uma composição das escolas que espelha a composição social dos bairros das cidades. Os números são arrasadores: em Lisboa e no Porto, existem escolas públicas só para “pobres” e outras que são só para “ricos”.
Segunda ideia-chave: durante anos, o Ministério da Educação foi permissivo com truques e esquemas dos pais para contornar as limitações geográficas impostas nas regras das matrículas. Ou seja, as famílias com melhor rede de contactos e mais instrumentos ao seu dispor conseguiam (legalmente) obter vaga numa escola que estivesse fora da sua área de residência. O outro lado do espelho deste fenómeno é a situação das famílias de baixo perfil socioeconómico: não só moram nos piores bairros onde estão as escolas mais problemáticas, como não têm os meios para contornar as regras das matrículas, sendo duplamente penalizados comparativamente à restante população.
Terceira ideia-chave: o governo tentou corrigir certas injustiças, mas o resultado ficará aquém do necessário. Nas matrículas para o próximo ano lectivo, o governo introduziu duas alterações legislativas que visam (1) dar privilégio na obtenção de vaga aos alunos socialmente desfavorecidos, desde que estejam na área geográfica da escola, e (2) impedir fraudes com “moradas falsas”. Ambas as alterações são positivas, mas não é expectável que tenham o alcance necessário para quebrar os níveis de segregação social existentes. Porquê? Porque os alunos desfavorecidos só podem exercer esse privilégio onde residam (medida inútil) ou onde os seus pais trabalhem (medida útil mas de impacto reduzido).
Quarta ideia-chave: existem alternativas (boas e más) para alterar o sistema de matrículas em Portugal. As más são as que dão poder de selecção de alunos às escolas ou que se apoiam na flexibilidade laboral dos pais para estar fisicamente nas escolas ou em filas de espera – em ambos os casos, directa ou indirectamente, há discriminação social dos alunos. As boas são as que derivam da aplicação de sorteios de vagas, nomeadamente enquanto critério de desempate após a prévia aplicação de prioridades na atribuição de vagas. Os sorteios permitem, simultaneamente, garantir igualdade de oportunidades (todos os alunos no sorteio têm a mesma probabilidade de obter a vaga) e quebrar o predomínio do critério da área de influência geográfica (porque permite o sorteio das candidaturas de alunos que venham de outras áreas da cidade).
Uma proposta. A pergunta que resta fazer é se tal sistema poderia ser aplicado em Portugal – e não há razões para desconfiar do seu potencial desde que os sorteios fossem construídos a partir das evidências internacionais. Deixa-se, assim, uma proposta para o caso português: a introdução de um sistema de sorteio nas matrículas limitado a 15-20% das vagas numa escola e de exclusivo acesso aos alunos com Acção Social Escolar. Assim, para essa percentagem de vagas, só alunos com Acção Social Escolar (e de qualquer zona da cidade) poderiam concorrer e a sua selecção seria aleatória e independente de outros critérios, fossem estes residenciais ou de desempenho escolar. Em comparação às alterações recentemente introduzidas pelo governo, esta proposta não só teria a vantagem de ser uma forma eficaz de combater a segregação social nas escolas como ainda acabaria com o critério geográfico para a colocação de alunos com baixo perfil socioeconómico, o tendão de Aquiles da alteração do Ministério da Educação, dando-lhes efectivas oportunidades de uma educação melhor.