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Eládio Clímaco: "Fiquei sem pai, fiquei sem mãe e, por fim, fiquei sem a televisão"

Eládio Clímaco tem 75 anos. Deixou a RTP em 2012, ao fim de mais de quatro décadas nos ecrãs. Uma saída que o entristeceu. Espera um dia regressar para fazer entrevistas de vida como esta.

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Na véspera da entrevista, o telefone toca.

— “Tiago? Daqui fala Eládio. Tenho uma dúvida: a entrevista será filmada, não é verdade? Muito bem, muito bem. Pergunto-lhe isto para escolher melhor o que levarei vestido.”

Chega à entrevista de camisa e casaco, bem apessoado, e ele próprio, deitando a mão ao bolso e retirando de lá uma caixinha de pó-de-arroz e um pincel, se maquilha. “Sabe, isto é um gesto tão simples, bastam uns segundos apenas, mas que faz a diferença. Não dispenso. É importante para mim estar bem quando estou à frente das câmaras”, atira, voltando a deitar as mãos ao bolso e sentando-se depois. Não é vaidade, garante. É aprumo e, sobretudo, “respeito” por quem o vê, pelo público. Mas falando de aprumo: sempre o teve. Mesmo quando este desafiava um país “cinzentão” à época. “Toda a gente me fala — ainda hoje me fala — dos fatos que eu usava, por causa das cores, dos padrões. Aqueles fatos vinham quase todos de Londres. E ainda me custavam menos do que se os comprasse em Portugal, numa alfaiataria… [Risos] Lá, em Inglaterra, era algo normalíssimo um homem vestir-se assim na rua. Por cá, não”, explica.

Hoje não faz mais televisão. Chegado aos 70 anos, e ao fim de mais de quatro décadas na RTP — teve “sondagens” de outros canais ao longo dos anos, mas sempre recusou sair por aquela ser a sua “casa” –, reformou-se e abandonou o ecrã, não com mágoa, mas com “tristeza”. Diz que foi “pau para toda a obra” na estação pública, da apresentação de telejornais a programas de entretenimento, da locução de continuidade às dobragens. “Acho que só não fiz relatos de futebol”, graceja. Não há quem não o conheça na rua, onde é abordado “a toda a hora” para uma selfie. E conhecem-no sobretudo do Festival da Canção, um programa que Eládio diz que “morreu”, e dos Jogos Sem Fronteiras, o qual gostaria de ver regressar à RTP. Ele, Eládio, também espera regressar um dia. Para entrevistar. Ou melhor: conversar.

Este teatro, o Maria Matos [onde fazemos a entrevista], é um lugar de boa memória para si.
Sim, sim. Foi onde eu fiz uma peça com o meu querido Armando Cortez, uma peça que tinha estreado em Espanha e que veio para Lisboa pelas mãos do próprio autor [Fermín Cabal], que fez muita questão que o Armando e eu a fizéssemos cá. A peça chamava-se “Os Padres Também se Confessam”. Foi uma peça muito polémica na altura, uma peça muito complicada para mim — porque eu já tinha feito teatro há muito tempo e, digamos assim, sentia-me “destreinado”. Portanto, estou muito feliz por voltar ao fim de tantos anos aqui ao Maria Matos para falar consigo.

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Mas falando dessa peça com o Armando Cortez. Foi polémica porquê?
O título original da peça era “Vade Retro”. E o nosso amigo Raul Solnado achou que “Vade Retro” talvez fosse um bocadinho erudito demais para as pessoas. Portanto, resolveu “rebatizar” a peça como “Os Padres Também se Confessam”. Ora, esse é um título mais chamativo — e chamou a igreja, daí o termos imensos padres que vinham ao domingo à tarde ver a peça. Polémica porquê? Era polémica porque um dos padres era Satanás. A peça passa-se entre dois padres, num seminário, um deles é todo “para a frentex”, que é o diabo, e o outro é um católico apostólico… romaníssimo, muito conservador. A polémica é daí.

Mas essa não foi a sua estreia no teatro. Começou por representar bem antes de ser apresentador. Perdeu-se um ator, foi?
Não sei dizer-lhe se se perdeu um ator ou não. [Risos] Mas a minha estreia no teatro começou muito, muito, muito antes. Começou com os meus dezoito anos. Estava na altura no Instituto Superior Técnico, porque o meu pai queria que eu fosse engenheiro técnico — e eu não estava nada virado para aí. Fiz-lhe a vontade, entrei para o Técnico, mas tinha o meu grupo, que era o grupo da Brasileira do Chiado, um grupo de intelectuais, do qual fazia parte o mestre Almada Negreiros, a Sara Afonso, a Maria Carlota Álvares da Guerra, a Laura Soveral, todos artistas. Eu “fugia” da universidade para estar com eles, das seis às nove. Aquilo era só falar de teatro, de autores, de escrita, enfim, de arte. E quem também lá estava na Brasileira era o diretor do Centro Nacional de Cultural [Fernando Amado], que conheci através da Maria Carlota. Era um dos homens que mais percebia de teatro em Portugal naquela altura. E resolveu abrir com o Almada Negreiros um teatro, a Casa da Comédia. Um teatro que eu fui estrear ao lado da Fernanda Lapa, por exemplo, e onde fazia par com a Maria do Céu Guerra, o parzinho amoroso do “Deseja-se Mulher” — uma peça do Almada Negreiros encenada pelo próprio Fernando Amado. Depois do “Deseja-se Mulher” fiz várias peças na Casa da Comédia.

Mas, entretanto, também comecei a fazer rádio. A Maria Carlota dizia-me sempre: Tu tens uma voz que é uma voz que a mim me soa muito bem!” E dizia eu: “Tem juízo, Maria Carlota.” Ela tanto insistiu, tanto insistiu, que me levou à Renascença, fez-me uma prova e obrigou-me depois a tirar o curso de locutor. Fiz rádio durante alguns anos, nas rádios “minhocas”, até que fui parar à Rádio Graça, onde estive quatro anos. Foi lá na Rádio Graça que os meus colegas souberam pelo jornal que haveria um concurso para novos locutores da RTP. E inscreveram-me sem eu saber.

A estreia de “Deseja-se Mulher” na Casa da Comédia em 1963. Foi também a estreia teatral de Eládio Clímaco no teatro (D.R.)

E quando é que soube?
Soube quando recebi lá em casa uma carta. [Risos] A televisão é um ecrã mágico. Ainda hoje é mágico. Os colegas lá da rádio sabiam que eu, um adolescente, gostaria de ser como os ídolos — ídolos não, que nunca tive ídolos –, como as figuras que lá apareciam [RTP]. Eu sempre pensei: “Epá, giro, giro era fazer televisão. Mas quem é que chega lá? Ninguém!” Quando recebi a carta achei aquilo tudo muito estranho. E foi aí que os colegas lá da rádio se começaram a rir e explicaram-me que tinham sido eles a candidatar-me sem eu saber. “Tens de ir, tens de ir”, diziam-me eles. E lá fui, fazer as provas.

As provas decorreram nos velhos estúdios do Lumiar. E reuniram mais de seiscentos candidatos. Como é que se preparou?
Foi um dia de nervos que não queira saber. E não me preparei de todo. Acho que tentei não pensar muito. Cheguei ao Lumiar, encostei-me a uma parede, vi gente que só conhecia do ecrã, ouvia umas conversas da treta, até que começámos a ser chamados para prestar provas. E foram umas provas muito, muito difíceis. Tínhamos que fazer uma prova de inglês, uma prova de francês, uma prova de leitura de Telejornal, uma prova de leitura de uma contra-capa de um disco de música clássica — para saberem se nós pronunciávamos bem a palavra “Beethoven” [Risos] –, uma entrevista e uma apresentação em palco. Depois destas provas todas, lá fomos para casa, esperámos, até que recebi em casa outra carta, agora a dizer “Apresente-se, porque você é um dos escolhidos”. Olhe: fiquei atónito.

Como é que foi a reação em casa? Sobretudo a do seu pai, que não tinha aceitado muito bem a ideia de ter um filho ator e, agora, teria um filho apresentador de televisão…
Eu já tinha feito a tropa. E quando saí da tropa disse ao meu pai: “Meu pai, já fiz a tropa, não lhe queria dar desgosto nenhum, mas queria tirar a parte técnica de cima de mim, porque eu não sou um técnico, sou mais virado para as artes e para as letras. Portanto, vou para arquitetura. Não se importa?” E disse-me ele: “Bom, vais para arquitetura, vais fazer casas… Está bem, vai lá!” E fui para arquitetura. Foi quando já estava em arquitetura que tudo isto aconteceu. Portanto, o meu pai já estava um bocado feito à ideia — de uma forma muito simpática e protetora até — que eu tinha escolhido uma profissão que não me daria tanto dinheiro como a de engenheiro. Mas sempre me acompanhou, sempre me incentivou, e tinha até um certo orgulho em mim. Passou do desalento de eu não ser engenheiro, para ter um certo orgulho daquilo que eu fazia na televisão.

Filho de mãe espanhola, Eládio (à esquerda) viveu parte da infância e adolescência no país vizinho (D.R.)

Dessa audição saíram nomes que estão intimamente ligados à história da RTP: não só o Eládio, mas também Raul Durão, Maria Elisa, Ana Zanatti. Quanto ao Eládio, no ano seguinte, em 1973, já estava a fazer o “Domingo à Tarde”, que era um programa gravado aqui no Maria Matos, não é?
Não começou aqui. Começou no Teatro Villaret. Ao fim de um ano lá é que o programa se instalou aqui, de armas e bagagens. Então, todos os sábados gravávamos — na altura não era em direto, porque tínhamos a censura — o programa para ir no domingo para o ar. Sabe, nós quando entrámos na televisão fazíamos tudo. Éramos pau para toda a obra. Era fazer o telejornal, era fazer locução de continuidade, era fazer gravações, sonorizações, dobragens para filmes infantis, tudo. Fazíamos de tudo um pouco. Ao segundo ano de estar lá, eles resolveram por-me no palco, a fazer entretenimento. Então, passei a fazer o “Domingo à Noite”. Eu, a Alice Cruz, a Maria Margarida e um galã da televisão de sempre, que era o Henrique Mendes. E assim foi durante três anos.

"Sempre que havia qualquer coisa que nós sabíamos que poderia ferir o ouvido a algum dos censores, nós atirávamos com a palavra. Por exemplo: uma das coisas que me deu muito gozo fazer -- e quem me ensinou isto foi a minha querida Alice Cruz -- era chegar à frente da câmara e dizer: "Votamos por uma noite muito feliz". A palavra votar, ou votamos, era uma palavra que a censura não gostava nada."

Falou-me da censura. Era preciso ter mil cuidados com que se dizia? Chegou a ter problemas com eles?
Todos nós, que tínhamos passado pela universidade, éramos do contra. Éramos contra o regime. Não éramos politizados, digamos assim, mas éramos do contra. Sempre que havia qualquer coisa que nós sabíamos que poderia ferir o ouvido a algum dos censores, nós atirávamos com a palavra. Por exemplo: uma das coisas que me muito gozo fazer — e quem me ensinou isto foi a minha querida Alice Cruz — era chegar à frente da câmara e dizer: “Votamos por uma noite muito feliz”. A palavra votar, ou votamos, era uma palavra que a censura não gostava nada. Mas que deixava passar, porque votar tem muitas leituras. Mas o votamos, dito assim, logo ao princípio, deixava-os um bocadinho arrepiados. Portanto, estas pequeninas subtilezas que nós usávamos, davam-nos muito gozo. Eu, por exemplo, tive um pequeno quid pro quo com a censura, algo que era perfeitamente idiota. Disse num programa de Natal do “Domingo à Noite”: “As nossas mãos têm sóis que podem aquecer a humanidade”. E eles cortaram-me esta frase.

Mas foi chamado à atenção?
Não, não. Não foi preciso. Eles estavam ali à frente — era o chamado “lápis azul”. Nunca percebi porquê. Era uma frase tão bonita, tinha-me custado tanto a magicar, porque é que havia de ser proibido? Mas foi. Foi cortado. Este foi o único quid pro quo que tive com eles.

O 25 de Abril dar-se-ia pouco depois. Foi trabalhar como habitualmente nesse dia?
Tenho uma história curiosa. Cómica até. Na altura tinha um MGB descapotável. Foi o primeiro carro que comprei com dinheiro meu, ganho, e ajudado também pelo meu pai. Era um terrível prazer conduzir aquele carro, descapotável e muito bonito na altura. E quando se dá o 25 de Abril tinha esse carro. No próprio 25 de Abril eu tinha marcações para fazer locuções às nove e meia da manhã. Já tinha ouvido na rádio “não saiam de casa, não saiam de casa, não saiam de casa, houve uma revolução, não saiam de casa”. E disse: “Mas porque é que não saio de casa?! Porque é que não hei-de sair de casa, se nunca fiz mal a ninguém?” E saí. E saí de carro… descapotável. Quando chego ao Lumiar, vejo um tanque. E disse para os meus botões: “Olá!, isto não é brincadeira, é um tanque. Epá, eu estou completamente acabado. Um carro descapotável, com um tanque à frente, os tipos dão-me um balázio!” [Risos] Havia uma série de gente da televisão do outro lado dos estúdios que dizia: “Esconde-te, esconde-te, porque eles já lá têm em cima o [Fernando] Balsinha!” “Escondo-me?! Mas porquê? Que mal é que fiz para ter que me esconder?”, pensava. E é então que sai do tanque um tipo que tinha sido meu colega em arquitetura e que me disse: “Epá, dá cá um abraço!” E pronto, aí criei logo amizade com o chefe do tanque, que depois me deixou subir a rampa no meu carro descapotável. Lá em cima, à porta dos estúdios, estava outro tanque. O outro subiu comigo e disse: “É meu amigo!” Saíram os soldados todos e disseram assim: “Você tem este carro?” “Bom, agora é que vai ser!…”, pensei. “Epá, é que nós estávamos à espera de o ver chegar aqui num Rolls-Royce, assim numa coisa estilo Hollywood!” Ao que respondi: “Vocês não vivem neste mundo, pois não?” [Risos] Parece-me que é a primeira vez que conto isto. E pronto, lá entrei, para o pátio, estava o Balsinha, estavam as pessoas do Movimento das Forças Armadas, lá estive a combinar com eles o que faria a seguir, e disseram-me: “Já cá temos o Balsinha para a emissão de hoje, vai para casa e amanhã vens fazer o primeiro Telejornal.” Foi assim que aconteceu.

Entrou para a RTP em 1972. Começou por apresentar o Telejornal à hora de almoço, estreando-se no ano seguinte no entretenimento com “Domingo à Tarde” (D.R.)

E foi assim que se deu a sua passagem do entretenimento para a informação?
Não, não. A minha primeira emissão, antes do “Domingo à Noite”, foi a ler um Telejornal da hora do almoço. Sem saber que debaixo da bancada onde nós tínhamos os papéis para ler o Telejornal havia uma espécie de um acelerador, uma “bolachinha”, que era preciso carregar com o pé para abrir o microfone. Portanto, eu comecei a falar… em mudo. [Risos] Era uma partida que os operadores de câmara faziam aos “pexotes” como eu, que era a primeira vez que entravam na televisão. Portanto, a minha primeira aparição no ecrã da televisão foi a fazer o Telejornal, em 1973.

Pouco depois foi apresentar o Festival da Canção. Aquele não era um programa para “pexotes”…
É que era um programa completamente proibido para os novos apresentadores. Era um programa que só os antigos apresentadores, as vedetas da casa de então, podiam apresentar. Toda a gente sabe isso. Mas pouco depois de entrar, em 1976, apresentei-o com a Ana Zanatti. Não se chamava Festival da Canção, chamava-se “Uma Canção para a Europa”, e era o Carlos do Carmo que cantava as 12 canções a concurso. Foi aí que eu comecei no Festival da Canção. E a partir daí apresentava-o ano sim, ano não, ano sim, ano sim.

A sua relação com Ana Zanatti era muito especial, não era? Dentro e fora do ecrã.
Muito especial! Nós tínhamos realmente uma empatia muito grande. A mim bastava-me olhar para a Ana para saber imediatamente o que é que ela ia dizer a seguir. E ela olhava para mim e sabia o que é que eu ia dizer a seguir. Isto era muito trabalhoso, nós trabalhávamos muito. A Ana é uma pessoa muito perfeccionista. E eu também. E isto foi numa época em que não havia teleponto, que era uma coisa muito recente à época. Nós tínhamos os cartões e tínhamos que decorar aquilo tudo, um programa inteiro decorado. Portanto, a Ana foi o meu par ideal.

Mas apresentei também com a Alice Cruz. Apresentei com pessoas do Porto, com uma locutora dos Açores, apresentei com a Rita Ribeiro, apresentei com a minha querida Valentina Torres, ela que conheceria o Armando Gama num Festival da Canção que apresentou comigo. Foi aí que se apaixonou pelo Armando. Foi um Festival lindíssimo. Foi um Festival que levou a um casamento.

É a memória mais feliz que tem do Festival da Canção?
Sim, tenho uma memória muito feliz deste Festival da Canção. Porque eu gostava muito da Valentina. O Armando também é uma jóia de pessoa. E aquilo foi tudo tão, tão.. tão “naif”, aquela atracão de amor à primeira vista.

E sentia-se isso nos bastidores, é?
É que sentia mesmo. Mas tenho outra história curiosa dos bastidores dessa edição do Festival da Canção. É que a Valentina levava um laço branco, enorme, deste lado [esquerdo], e eu estava precisamente à esquerda dela. O laço era tão grande que me afastava muito dela. Portanto, eu saía um bocadinho do plano. Tinha que me encostar a ela e amachucava-lhe o laço todo. Quando ela ia lá dentro, a costureira armava-lhe outra vez o laço. Quando nós saíamos para o palco, pumba!, lá estava eu outra vez afastado do plano e lá empurrava o laço novamente. Foi assim a noite toda. O que é engraçado é entre o laço da Valentina e a atração pelo Armando, deu-se o laço do matrimónio. Não fui o padrinho do casamento, mas fui padrinho no palco, que foi ainda mais importante.

Estávamos em 1983, portanto. O festival nessa altura era acompanhado quase religiosamente pela televisão. Porquê?
Porque naquela altura o festival era feito com toda a RTP a convergir para o mesmo fim. O aniversário da RTP, a 7 de março, era celebrado com o Festival da Canção. E tínhamos, na altura, poetas extraordinários, compositores extraordinários, e tivemos canções fabulosas. Mas o Festival da Canção, ou melhor, a Eurovisão, é algo extremamente político. Nós até tínhamos canções boas, talvez melhores do que as que venceram lá fora, mas é preciso vontade política. É preciso uma estratégia, que passa pela política também, para conseguir os votos dos outros países.

"Eu acho que o Festival da Canção morreu. Não há dúvida nenhuma que o morreu aos poucos depois dos anos oitenta. Eu lembro-me que nos anos oitenta o [José] Cid levou uma canção fabulosa ["Um Grande, Grande Amor", 1980] para a Eurovisão. E poderia perfeitamente ter ganho. Não ganhou porque, lá está, a política falhou nesse aspecto."

Mas o Festival da Canção, a pouco e pouco, começou a perder esse encanto que tinha. Concorda?
Sim. Eu acho que o Festival da Canção morreu. Não há dúvida nenhuma que o morreu aos poucos depois dos anos oitenta. Eu lembro-me que nos anos oitenta o [José] Cid levou uma canção fabulosa [“Um Grande, Grande Amor”, 1980] para a Eurovisão. E poderia perfeitamente ter ganho. Nós até levámos equipas de cá para Haia, na Holanda, para fazermos ligações diretas caso ele ganhasse, porque a canção era realmente fabulosa. Não ganhou porque, lá está, a política falhou nesse aspeto. Mas tivemos outras canções fabulosas também. O “Silêncio e Tanta Gente”, da Maria Guinot, era uma canção fabulosa. Os meus colegas que faziam a locução para os respetivos países ainda hoje consideram a canção da Maria Guinot como a melhor canção que passou pela Eurovisão. Sob todos os aspetos: mais bem construída, mais bem cantada, a canção no seu todo melhor. É claro que se nós ouvirmos “O Silêncio e Tanta Gente” em casa, sentados numa poltrona, achamos uma canção lindíssima, mas somos capazes de ter logo a tentação de dizer: “Não é uma canção para festival!”

O que é que é uma canção “para festival”?
Olhe, acho que não há uma canção para festival. O que há é, talvez, uma canção bem construída, melódica, bem musicada, bem arranjada, em que a música não se sobreponha à voz. Nós temos algumas canções que têm ido à Eurovisão e que, confesso, não tenho gostado nada. Aquilo é só ta-ta-ta-ta-ta-ta-ta-ta, uma grande, grande misturada. Isso não é uma canção para festival.

Eládio considera Ana Zanatti, com quem partilhou a apresentação do Festival da Canção, o seu “par ideal” no ecrã (D.R.)

Aí pelo meio falou do José Cid e de Haia. Essa edição foi a primeira em que um apresentador português subiu ao palco da Eurovisão para apresentar, não foi?
É verdade, é verdade. E nem me lembrava disso, acredita? [Risos] Sei que me sentia muito nervoso, obviamente. Ainda hoje, quando faço televisão, os nervos estão lá. Não sei porquê. Há pessoas que não os têm. E quem me dera a mim não os ter, era tão bom! Mas estava muito nervoso nesse dia. E tinha feito uma pequena cábula na mão esquerda. Só tinha 45 segundos para apresentar a canção do Cid, mas tinha medo de ter alguma “branca”. Então apontei o que iria dizer. Qual não é o meu espanto quando percebo, nos bastidores, que os grandes apresentadores, da BBC, da Antenne 2, da Espanha, todos eles tinham a mesma cábula, na mesma mão. “Afinal não sou só eu o saloio que traz a cábula!”, pensei.

Depois do Festival da Canção, apresentaria também os Jogos Sem Fronteiras — outro programa emblemático da RTP. O primeiro programa, em 1979, foi apresentado por si e pelo Fialho Gouveia, certo?
Exatamente. O Zé Fialho é o grande entusiasta dos Jogos Sem Fronteiras em Portugal. É ele quem vê a emissão lá fora e traz a ideia para cá. Em 1978 cheguei mesmo a ir à Suíça ver como é que se fazia o programa. No ano seguinte, eu e o Zé Fialho apresentaríamos, na Praça de Touros de Cascais, a primeira emissão em Portugal. E o Fialho Gouveia era muito, muito engraçado. Um brincalhão. E era ele quem, digamos assim, puxava um bocado por mim, que era o “novato”. Foram uns tempos inesquecíveis esses.

Falávamos de uma Eurovisão que era “politizada”. Mas a verdade é que a ideia inicial de criar os Jogos Sem Fronteiras era a de despolitizar a Europa. É assim?
Era ao contrário da Eurovisão, sim. O general Charles de Gaulle e o chanceler Konrad Adenauer, depois da Grande Guerra, queriam voltar a aproximar a juventude, que estava de costas voltadas. E queriam unir novamente as famílias em frente da televisão. A Itália tinha um programa que era o “Campanile Sera”, que era uma espécie de Jogos Sem Fronteiras entre as cidades italianas. E a França tinha uma programa semelhante ao da Itália. E então, eles [de Gaulle e Adenauer] viram isto e pensaram: “Se nós alargássemos o ‘Intervilles’ francês e o ‘Campanile Sera’ italiano a outros países da Europa, nós fazíamos um programa sensacional!” E assim foi.

"Em 1996 os Jogos Sem Fronteiras foram em Turim. E a equipa portuguesa era de Lamego. Organizou-se uma ida tal a Turim, que foi preciso alugar um camião TIR para levar a gastronomia toda daquela região, desde as murganheiras, desde os presuntos, desde os enchidos, desde os queijos, foi uma festa que ainda hoje, passados estes anos todos, é lembradas em todos os países que participaram nos Jogos Sem Fronteiras."

Que o programa foi um sucesso de audiências, todos sabemos. O que nós não sabemos é como é que eram os bastidores do programa…
Sabe, o português é muito generoso e gosta de receber muito bem. Ora bem, isto aconteceu também nos Jogos Sem Fronteiras. Havia uma tradição: antes do programa, organizava-se um jantar de confraternização em que os países participantes levariam alguma da gastronomia dos seus países para degustar. Em 1996 os Jogos Sem Fronteiras foram em Turim, na Itália. E a equipa portuguesa era de Lamego. Organizou-se uma ida tal a Turim, que foi preciso alugar um camião TIR para levar a gastronomia toda daquela região, desde as murganheiras, desde os presuntos, desde os enchidos, desde os queijos, foi uma festa que ainda hoje, passados estes anos todos, é lembrada em todos os países que participaram nos Jogos Sem Fronteiras.

Uma festa que certamente o Eládio recordará é a da edição de 1990, que foi realizada cá, em Belém.
Claro que sim, claro que sim. O público foi ao ensaio geral da tarde, ao ensaio geral da noite e, depois, comprou bilhetes para ir à emissão. Milhares e milhares de pessoas. Algumas sei que ficaram algo dececionadas… [Risos] Porquê? É que o espetáculo, como é gravado — e é preciso repetir algumas cenas –, é muito mais longo do que aquele que se vê no ecrã. Mas aquela zona de Belém foi completamente invadida!

Sabe de quem é as pessoas se recordam muito? Do árbitro, o Denis, aquele de bigode…
Ahhh, o meu caro Denis! Sabe, o Denis é um árbitro que chega mais tarde aos Jogos Sem Fronteiras. Os primeiros árbitros, para quem se recorda dos Jogos Sem Fronteiras, eram o Gennaro Olivieri e o Guido Pancaldi. Mas depois eles retiraram-me e veio um suíço, que era o Denis Pettiaux. Na primeira vez que ele arbitrou, nós tínhamos que ver se estava tudo a posto e digo-lhe: “Attention, Denis! Tout prêt!” E ele dizia-me: “Voilá! Trois, deux, un…”, e apitava. Isto foi um improviso. Mas ficou…

Eládio Clímaco começou por apresentar os Jogos Sem Fronteiras ao lado de Fialho Gouveia, em 1979. Em 1992 o programa foi gravado em Belém (D.R.)

Ainda mantêm o contacto com ele?
Mantenho, sim. Através do Facebook. O que é muito agradável. O Facebook é o que é, mas tem coisas muito positivas e descobrimos amigos de todo o mundo — e alguns que julgávamos que já tinham partido. E mantenho também o contacto com participantes [nos Jogos Sem Fronteiras] da Grécia, da Itália, da Suíça, com muita gente.

O Eládio gosta de sair à noite, de se divertir, de beber um copo de vinho. Mas nem sempre é fácil, não é verdade? Abordam-no muito…
É verdade, é verdade. Eu nunca tive a noção de vedetismo ou de fama, nada disso. Era uma pessoa conhecida, só. Conhecida porque me viam no ecrã, mais nada. De maneira que não tinha a noção de como era a fama. Essa noção veio-me agora depois de me reformar. Porque eu ainda gosto de ir tomar o meu copo ao Bairro Alto, estar com amigos e lembrar os meus velhos tempos. E às vezes — às vezes não, é sempre! — passo a vida quase a não conseguir beber o meu copo porque me tocam nas costas, volto-me e é um jovem que me diz: Não se importa de tirar uma selfie comigo?” Não me importo nada. “É que eu amanhã vou mostrá-la à minha mãe e ela vai cair, porque nem vai acreditar que eu estive com o Eládio Clímaco!”, dizem eles. Isto dá-me um gozo bestial, palavra de honra.

Naquela fase em que aparecia mais na televisão, nas décadas de setenta e oitenta, era muito assediado na rua? Conhece certamente as histórias do António Calvário, por exemplo, que era perseguido na rua pelas mulheres…
Eu conheço bem as histórias do António. [Risos] Mas é diferente. Ele era um galã. Na televisão era diferente. Nós éramos assediados, efetivamente, mas era mais através de telefonemas e de cartas, que choviam no estúdio. Quando acabávamos um programa tínhamos dezenas telefonemas à nossa espera. Isso sim. Na rua as pessoas tinham mais contenção. Mais vergonha. As pessoas libertaram-se muito com o 25 de Abril, sabe? Ficámos tu cá, tu lá com as pessoas. Não éramos só aquele tipo esquisito que aparece na televisão. Não. Éramos uma pessoa igual a elas.

As pessoas quando saem da RTP são praticamente esquecidas pelos da casa. Mas são, felizmente, lembradas pelo público. Entristeceu-me muitíssimo sair. Porque eu entreguei-me durante 42 anos à televisão, de alma e coração, eu vivi para a televisão. A minha vida era a família e a televisão.

Fez muitos outros programas na RTP. Magoou-o quando em 2012 — que foi quando fez 70 anos — teve que deixar os quadros da RTP e se reformar? Lembro-me de na altura o Eládio dizer: “Estou à espera de voltar. Mais que não seja para me enganar a mim próprio…”
Não é bem magoar. Entristeceu-me muitíssimo, isso sim. Porque eu entreguei-me durante 42 anos à televisão, de alma e coração, vivi para a televisão. A minha vida era a família e a televisão. Fiquei sem pai, fiquei sem mãe e a última com que fiquei sem foi a televisão. De maneira que eu saí de lá um bocado triste por sair de frente das câmaras. E triste porque as pessoas quando saem da RTP são praticamente esquecidas pelos da casa. Mas são, felizmente, lembradas pelo público.

Última pergunta: o que é que ainda gostaria de fazer em televisão?
Fiz quase tudo o que há para fazer em televisão. A única coisa que eu não fiz foi relatos de futebol, porque não tenho jeito para isso. [Risos] Hoje, se eu regressasse à televisão, gostaria de fazer, olhe, de fazer uma entrevista como a que estou agora a fazer aqui, assim, calma, assim, tout court.

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