Reportagem de Tiago Carrasco em Amesterdão
Um bairro é turco quando tem um restaurante de kebab a cada 100 metros, uma sala para cachimbos e chá preto e pelo menos uma fotografia de Recep Erdogan. Poelenburg, o quarteirão mais muçulmano de Zwandaam, nos arredores de Amesterdão, tem tudo isso e muito mais lembranças da Anatólia. No ano passado, uma sucessão de roubos, ameaças a comerciantes e jornalistas e brigas entre gangues rivais terminou com 13 detidos e com Poelenburg assinalada como uma das regiões mais problemáticas da pacata Holanda. Então, tal como na campanha para as eleições legislativas agendadas para a próxima quarta-feira, Geert Wilders, líder e senhor do partido nacionalista PVV (Partido da Liberdade), não perdeu a oportunidade para apontar o dedo à “escumalha marroquina”.
Esta é uma das duas expressões favoritas na sua cruzada anti-Islão, que promete o encerramento de mesquitas e a proibição do Corão, livro que já comparou a Mein Kampf, de Adolf Hitler, obra interdita na Holanda. A outra é “bombas de testosterona”; emprega-a para classificar os árabes que, segundo ele, assediam e atacam as mulheres holandesas na rua e rejeitam a população homossexual. As estatísticas não lhe dão razão: a taxa de crime, incluindo roubo e crimes sexuais, desceu na última década e a fatia respeitante aos imigrantes equivale à sua representação na população total. Mas Wilders agarra-se com firmeza aos direitos das mulheres e dos gays – anunciados como valores holandeses —, para atacar a cultura islâmica. A estratégia tem colhido frutos junto de heterossexuais da classe média. Mas, como mais tarde iríamos constatar, é desprezada pelos homossexuais de Amesterdão.
No mercado matinal de Poelemburg, ninguém fala de Wilders. A polémica é outra: o governo holandês acabou de proibir Mevlut Çavusoglu, ministro turco dos Negócios Estrangeiros, de entrar no país para fazer campanha pelo presidente Recep Erdogan no referendo constitucional do próximo mês, junto da diáspora turca nos Países Baixos. O incidente acabou por desencadear manifestações e motins de turcos furiosos nessa noite, em Roterdão, que acabaram com montras partidas, três feridos e 12 detidos. O dano diplomático foi maior: Erdogan chamou “nazis” aos holandeses e ameaçou aplicar sanções; Mark Rutte, em Haia, disse que os turcos tinham “passado dos limites”. Mehmet Saat, de 34 anos, que herdou o ofício de vender sapatos que o pai trouxe de Izmir, ainda não podia adivinhar o caos. Mas já estava indignado: “Sempre nos sentimos queridos aqui”, diz. “Mas, agora, se nem os políticos turcos são bem-vindos, imaginem o povo”.
O descontentamento dos muçulmanos passou a ter, desde 2015, um depósito político na Holanda. Chama-se Denk (que significa “igual” em turco, e “pensar” em holandês), um partido fundado por dois ex-deputados de ascendência turca do PvdA (Partido Trabalhista), Tunahan Kuzu and Selçuk Öztürk, para proteger os direitos dos imigrantes. Os parlamentares foram excomungados do partido depois de rejeitarem a lei de integração e a nova formação política foi recebida com entusiasmo e vista como uma força de resistência ao programa de Wilders. Porém, Kuzu e Öztürk nunca se conseguiram distanciar da influência de Erdogan e não o criticaram pelas detenções maciças de jornalistas e ativistas. Também se envolveram em muitas polémicas, como a recusa de Kuzu em apertar a mão a Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel, e a acusação de negligência médica para com os muçulmanos holandeses. Com isso, perderam o apoio de muitos eleitores liberais e de outras minorias étnicas. Mas fidelizaram os muçulmanos, que podem dar pela primeira vez um assento parlamentar a um partido criado por e para imigrantes (as sondagens dizem que vão conseguir de dois a três deputados).
Um desses votos vai ser dado por Yassim Sahsah, um marroquino-holandês de 32 anos, que com os seus dois irmãos gere três hostels em Zaandam e Amesterdão. É muçulmano orgulhoso e defensor das liberdades individuais, uma combinação ideológica que muitos consideram incompatível, mas que cidades como Amesterdão e Berlim produzem em abundância. Nos seus hotéis fumam-se charros, entram gays e bebe-se cerveja. “O grande problema de Wilders é uma grande falta de conhecimento”, diz. “Ele não tem a mínima noção de como nós somos ou vivemos mas acusa-nos de sermos lixo porque sabe que isso lhe dá votos.” O empresário diz que sempre votou em partidos de esquerda, mas que nunca se sentiu representado politicamente. “O Denk veio preencher um vazio que as nossas comunidades sentiam. Há cinco anos, só 4 dos meus 18 familiares foram votar. Este ano vamos todos”. O programa eleitoral prevê a vigilância das mesquitas, à imagem das sinagogas, e campanhas de esclarecimento para evitar a discriminação laboral: “Está provado que aqui um currículo com o nome Mohammed tem menos hipóteses de ser escolhido do que um enviado por um Arjen. Muitos marroquinos falseiam o nome para conseguir trabalho”.
Nenhum outro partido está tão nos antípodas do PVV como o Denk. Em relação ao incidente diplomático com a Turquia, o partido dos imigrantes acusou o governo holandês de restringir ilegalmente a liberdade de reunião, enquanto Wilders convidou pelo Twitter os diplomatas turcos a irem-se embora, nunca mais voltarem e levarem os seus apoiantes com eles. Ambas as frentes saíram reforçadas da contenda. “Wilders e o Denk são produtos do mesmo veneno”, diz o analista político Tom van der Meer. “Quando de um incidente diplomático resulta um discurso extremado, são os partidos populistas que ganham votos.”
Resistência em várias frentes
Geert Wilders já obteve uma vitória: conseguiu posicionar o Islão no núcleo da campanha eleitoral. O Denk não é, porém, o maior entre os partidos favoráveis à inclusão de estrangeiros. O Groenlinks (a Esquerda Verde), com uma ideologia assente em causas sociais e ecológicas, tem cativado muitos jovens e surgido surpreendentemente nas sondagens como o maior partido de uma esquerda fragmentada, a apenas 5 lugares de um PVV em queda (as últimas sondagens dão-lhes 22 deputados, quando há um mês estimavam 31). “A subida da extrema-direita na Holanda está ligada a debilidades sócio-económicas criadas pelo governo de Rutt, que aplicou profundos cortes nos fundos sociais, na saúde e na educação. Quando a nossa campanha pergunta a um votante de Wilders pela razão da sua escolha, constatamos que debaixo da hostilidade contra os estrangeiros está uma profunda preocupação sócio-económica”, diz Suzanne Kroger, de 40 anos, candidata do partido em Amesterdão, ainda com o casaco verde-alface dos ecologistas vestido, depois de mais uma ação de campanha porta a porta numa moderna urbanização da cidade. “Só uma agenda muito forte nestes temas, tal como na ecologia, pode contrariar a ascensão de uma retórica que se alimenta dos receios dos holandeses.”
Suzanne baseia-se nos resultados de um estudo recente — que diz que a larga maioria dos holandeses está feliz com a sua própria vida, mas insatisfeita com a sociedade — para sustentar a sua urgência por políticas que fomentem a união social. No entanto, a própria esquerda não se conseguiu unir contra o candidato populista. “Por um lado, acho que o facto de nenhum outro partido aceitar coligar-se com o PVV depois das eleições mostra que há uma certa unidade entre todas as outras 27 linhas políticas. Por outro, vemos que muitos candidatos, para fazer face à popularidade de Wilders e conquistar votos, acompanharam o PVV no ataque aos imigrantes e aos seus filhos, vigorizando a estratégia da extrema-direita”.
A confrontação com o líder islamofóbico, eurocético e anti-imprensa da direita populista, nascido no sul da Holanda de uma mãe com raízes indonésias, não tem surgido apenas dos adversários eleitorais. Nas últimas semanas, os meios de comunicação e a sociedade civil apertaram o cerco ao PVV, que tem caído significativamente nas sondagens — a última, publivada esta segunda-feira, coloca o PVV na terceira posição. Olaf Paulus, de 53 anos, olhos curiosos ampliados por lentes grossas e anelar adornado por uma joia com o brasão familiar, descendente de um nobre decadente, foi um dos sete impulsionadores da Operatie Libero, uma plataforma de ativismo digital contra a extrema-direita. “Identificámos os sites e os fóruns em que os apoiantes de Wilders se movimentam e vamos ao seu encontro, percebendo a raiva e a indignação que os mina e oferecendo factos e argumentos para os fazer pensar melhor”, diz Paulus.
A iniciativa arrancou na Suíça por ocasião de um referendo sobre imigração e obteve resultados positivos. Paulus e os seus colegas quiseram replicá-la contra o PVV. “O grosso dos votantes de Wilders está identificado: população com baixos níveis de escolaridade, parte da classe média trabalhadora e o estrato rico e muito educado que não quer perder o que tem”, diz Paulus. “Temos de perceber a raiva e a indignação, muitas vezes legítima, dos primeiros dois grupos. São pessoas que perderam o emprego na fábrica ao mesmo tempo que a renda de casa aumentou, viram chegar o vizinho polaco que já tem um emprego e lhes ficou com a irmã. É tramado! É normal que sintam raiva e que se queiram vingar do sistema e dos estrangeiros. Então, não me parece correto que lhes chamemos ‘burros’, ‘brancos estúpidos’ ou ‘lixo’. O primeiro passo para mudá-los é entendê-los e usar a verdade para os persuadir a mudar de opinião”.
Para isso, a Libero criou um manual digital que envia diretamente aos apoiantes de Wilders nas páginas de extrema-direita: contém dados e estatísticas das autoridades competentes que mostram a verdade em relação às comunidades islâmicas. “Muita gente, por exemplo, tem medo de morrer num ataque terrorista. Nós mostramos como o número de atentados, sem o IRA, a ETA e as Brigadas Vermelhas, é hoje muito menor que nos anos 60 e 70, e que a probabilidade de ser vítima de terrorismo é menor do que vencer a lotaria”, diz Paulus, que não sabe quantas pessoas já conseguiram convencer nas duas semanas em que a operação entrou em marcha. “Como as eleições estão tão disputadas, mesmo que tenhamos conquistado apenas uma pessoa, podemos ter sido decisivos para evitar uma vergonha nacional e a continuação desta série de vitórias da direita populista no mundo”.
A tarefa não é fácil, já que a internet é terreno pródigo para os apoiantes dos nacionalistas. No fórum /pol/ – politically incorrect, um utilizador anónimo diz: “A esquerda está a preparar uma operação maciça chamada Operação Libero para entrar em fóruns de direita na Holanda. Proponho que nos identifiquemos como seus membros, para sabermos como operam e mudarmos o ângulo. De qualquer maneira, para a prosperidade da Europa, devemos impedir que os esquerdistas propaguem as suas ideias idiotas. Se eles conseguirem parar Wilders, podem influenciar Le Pen também”.
Há ainda plataformas como a Pak Huis de Zwyger, destinada a promover a participação política dos millenials, a geração mais nova de eleitores, que é tida como a mais propensa à abstenção, ou ações individuais como a de Tim Hofman, que tem visitado liceus diariamente para explicar os perigos do nacionalismo e da xenofobia.
Curiosamente, tem sido o entretenimento televisivo um dos principais inimigos de Wilders. Arjen Lubach, apresentador do programa satírico Zuntag met Lubach (“Domingo com Lubach”) e autor do famoso vídeo “America First, Netherlands Second”, conseguiu que milhões de holandeses assistissem nas últimas semanas às suas rábulas corrosivas contra Wilders. No último dos seus programas, o humorista fez 20 minutos de humor em torno da página A4 a que se resume o programa eleitoral do PVV, criando o hashtag #hoedan, destinado a perguntar a Wilders como tenciona implementar medidas inconstitucionais como a proibição do Corão ou demagogas como a devolução da Holanda aos holandeses. “As pessoas são bombardeadas constantemente pelas intervenções de Wilders sem margem para as assimilar e criticar. O meu objetivo foi mostrar através da sátira o quão vazio é o programa eleitoral do PVV, sem qualquer medida sobre economia e saúde, por exemplo, e a impossibilidade de implementar as promessas eleitorais ao abrigo da Constituição”, explica Lubach.
No dia seguinte à emissão do programa, Jeroen van der Tol, um diretor administrativo de Zwandaam, ligou para o PVV para saber quais as propostas fiscais do partido. “Disseram-me para pesquisar o programa de 2012”, diz, num bar dos arredores de Amesterdão.
Uma cidade à prova de ódio
No centro de Amesterdão, tímidos raios de sol iluminam os canais e as fachadas centenárias. As esplanadas enchem-se de gente de todas as proveniências, vestidas de acordo com as suas ganas. Turistas pedrados atravessam-se nas ciclovias levando os locais ao desespero. Uma prostituta sai da montra para passear o cão. Cheira a erva, na outra esquina a caril e a seguir a bolachas de manteiga. Há livros em todas as línguas e caras para todos os gostos. Convivem numa só cidade, Amesterdão, capital dos cidadãos do mundo. Falar de nacionalismo aqui é como promover o casamento gay em Kandahar. Bizarro.
Na Praça Dam, milhares de pessoas reúnem-se para a segunda marcha das mulheres contra Trump. Com a aproximação das eleições, o presidente norte-americano deixou de ser o alvo de maiores críticas, em detrimento de Wilders. “Não deixem que Wilders seja o nosso Trump”, lê-se, num dos muitos cartazes. No meio da multidão, está Sylvana Simons, a mega-estrela de televisão convertida em líder do Artikel 1, um segundo partido de e para imigrantes, nascido de uma cisão com o Denk. Sylvana envolveu-se numa turbulenta discussão pública sobre racismo, que a levou a receber várias ameaças de morte e a receber proteção policial permanente (também Wilders vive debaixo de apertadas medidas de vigilância há mais de 12 anos). Começou por fazer parte do Denk, mas acabou por abandonar quando o partido não saiu em sua defesa na contenda sobre racismo. Para o Artikel 1, levou votos das comunidades africanas e das Antilhas, adotando uma posição muito mais dura, em linha com a do movimento norte-americano Black Lives Matter. “Está na altura de pararmos de tentar perceber a extrema-direita e de preencher a esquerda com posições firmes na luta contra o racismo, que é completamente aceite na Holanda”, diz.
As mulheres formam o grosso da marcha que segue, confiante e ruidosa, até ao Museu Van Gogh, acompanhadas por numerosos transexuais, que adornam o desfile com vestidos e cabeleiras de cores pujantes. Ao contrário de Trump, Wilders tem-se apoiado na igualdade de género e nos direitos dos homossexuais na sua campanha contra o Islão, que considera inimigo desses valores de que a Holanda foi pioneira na implementação. Em Amesterdão poucos acreditam nele. As plataformas LGBT levantam cartazes na tentativa de desmascarar a estratégia de Wilders: “Não usem os LGBTIQ e as mulheres em benefício da vossa agenda xenofóbica”, lê-se, nas mãos de Shawen, gay holandês nascido no Irão, de 26 anos. “Wilders sabe que nunca poderia ganhar umas eleições na Holanda se não defendesse as conquistas cívicas como o casamento gay e a lei do aborto”, diz. “Mas o que podemos esperar de um programa racista? No passado, vieram primeiro atrás dos socialistas, depois dos judeus. Aqui vai-se passar o mesmo. Primeiro os muçulmanos, depois nós”.
Como gay de origem muçulmana, Shawen está confuso. Por um lado, a sua homossexualidade confere-lhe pertença aos valores holandeses que Wilders quer preservar, por outro, as suas raízes islâmicas atribuem-lhe o estatuto de cidadão indesejado. “Tenho de renunciar à minha sexualidade? Ou às minhas origens? Eu sou o corpo da incoerência do populismo”.