“Meu pai não me ensinou a fazer obituários. Ao contrário. Ele inspirou em mim o desejo de fazer viviários ferozes.” Lemos o texto O Guarda-Chuva Preto (ou Como uma Filha Escreve o Obituário de um Pai?) que a escritora e jornalista mais premiada do Brasil Eliane Brum escreveu para se despedir do progenitor em 2016, Argemiro Jacob Brum, e está lá muito do que falámos em pouco menos de uma hora de conversa, no final de uma sexta-feira que acusava já muito cansaço para ambas. Acomodou-nos a luz e a vista desafogada da pequena biblioteca da editora que acaba de lançar o seu primeiro livro em Portugal, que serviu de ponto de partida para esta entrevista, Meus Desacontecimentos (Companhia das Letras). Ler Eliane Brum, sejam as suas reportagens – muitas de antologia –, sejam as suas crónicas, ambos os formatos publicados em livro no Brasil, seja o seu romance, Uma Duas, é ler bocados desarrumados de vida, incongruentes, “ferozes”, dotados de uma sensibilidade e de uma delicadeza sem par no mundo da escrita.
“Abro então o guarda-chuva e espero o pai me achar.” Eliane diz no texto ao pai que escreve para se manter viva, como o reitera agora, tal como reitera que escreve para partilhar “e para manter vivo o que pertence ao outro”. Ler o texto que dedicou ao pai e olhar para as fotografias que o acompanham, assim como ler as memórias que partilha, capítulo a capítulo, no seu Meus Desacontecimentos, coloca em cada leitor um carimbo de familiaridade com aquilo que são as memórias do seu próprio passado: a foto a preto e branco de uma irmã ou tia pelos 58 anos de Eliane, ali também com uns 4 ou 5 anos, rechonchuda, vestidinho branco, munida de um rabicho no alto da cabeça que parece um repuxo; ou a fotografia, já a cores, desbotada pela patine do tempo, em que vários elementos da família se encontram sentados em cima do capô do carro, à época símbolo de progressão dos seus recursos económicos.
O centro do mundo é onde está a vida, e não o poder. É na natureza, e não nos chapos que são feitos à natureza e a que chamamos de cidades. Ouvir Eliane é aprender com o olhar novo e sensível que traz às questões mais prementes do mundo, do jornalismo à preservação do planeta. E isso, nos dias que correm, é darmos por nós a permitir-nos a surpresa. O lugar ao deslumbramento, essa forma tão única – e rara – de esperança.
Meus Desacontecimentos é um livro bastante pessoal. Porquê a necessidade de partilhar a sua intimidade? O que acrescenta à jornalista?
Este não é nem o meu primeiro livro, nem o meu último livro. Mas acho interessante que tenha sido o primeiro aqui em Portugal. Escrevo este livro a partir de uma crise com a palavra escrita. Fiz uma matéria que foi muito dura e senti que a minha primeira questão era: “para quê escrever, se escrever não salva vidas?” E aí paralisei, porque não achava mais sentido em escrever. E a resposta que pude dar foi buscar, na minha infância, nos meus inícios, como a palavra escrita me salvou, como a palavra escrita me permitiu criar uma vida, como ela vem para mim, como ela me costura. Bom, e aí escrevi este livro; e publicá-lo não foi fácil. Escrever foi libertador porque me fez voltar a me mover, mas publicar não. Publicar foi difícil e passei alguns meses me sentindo extremamente exposta, mais do que nua, sem pele mesmo.
Essa escrita podia ter ficado apenas e só consigo.
Poderia, mas acho que escrevo sempre para partilhar. Apesar dessa ser a minha história com as palavras, a experiência que eu tenho – porque esse livro foi publicado no Brasil há vários anos – é uma intuição só. Mas ela também evoca muitas memórias das pessoas que leem. Do relato que eu tenho no Brasil, as pessoas que leem vão em busca das suas costuras, dos seus bordados da infância, dos seus começos, de onde as coisas começaram. E acho isso muito interessante, não é um gesto altruísta meu. Tem gente que escreve para si. É claro que escrevo para mim, mas escrevo para dar lugar a coisas que precisam encontrar um lugar. E para mim a escrita só se completa quando ela é lida, não por mim, mas por outras pessoas. A escrita não é, da forma como eu a entendo, algo que acaba quando eu escrevo. Ela acaba quando alguém lê. E aí vão virando vários livros diferentes. A escrita para mim é sempre carta. A carta precisa de um destinatário, e ela precisa de ser aberta. A escrita para mim é isso, são cartas que são abertas e são lidas.
E o que é que, ao escrever estas memórias, passou a conhecer de si própria que não conhecia antes?
Ajudou-me a fazer esse traçado, esse vitral que eu acho que é uma vida. Que não é um vitral perfeito, onde tudo se encaixa. É um vitral com buracos, é um vitral com rachaduras – acho que isso é uma vida. E talvez a minha grande descoberta, ao entender esse traçado, é de que é possível viver com buracos, viver quebrada.
Essas rachaduras, esses buracos, edificam?
Sim, eles fazem parte desse vitral, dessa tecedura. Não é algo que está fora, que está errado, que devia ser íntegro. Não, é parte mesmo do viver. Para mim, uma das coisas mais libertadoras, pessoalmente, é descobrir que posso viver esburacada – que posso amar esburacada, que posso lutar esburacada. Isso é uma coisa que não esteve sempre presente. É uma descoberta recente. Acho que esse livro me ajuda bastante nessa ideia. Acho que não é uma descoberta de hoje, é uma descoberta de mais tempo. Esse livro é parte desse movimento. Antes, imaginava que precisava estar toda bem encaixada, bem encaixadinha. Sem quebraduras, sem rachaduras. Porque as rachaduras não eram parte da minha constituição.
A incoerência encaixa nessa constituição?
Sim, sim. Somos seres muito contraditórios. Muitas vezes, desejando coisas que não devíamos.
Como é que encaixamos a profissão de jornalista nessas incongruências, regida por um método que se quer congruente?
Tudo menos o que a vida é. Não entendo o jornalismo assim, assim como método. Entendo como rigor, como busca da palavra exata. O respeito aos factos. Acho que o jornalismo alcança quando consegue abarcar todos esses contraditórios. Quando consegue fazer o perfil de uma pessoa e contar das suas contradições, contar das suas nuances, contar do todo que é alguém, que não é uma história linear. Contar do caos. E dos factos também. Os factos não são arranjadinhos. Acho que, quanto mais encaixadinha, coerente, arranjada é uma matéria, talvez mais longe ela esteja das verdades. Acho que o nosso desafio como jornalistas é justamente dar todos esses tons da vida. E isso é muito trabalhoso. Sem perder o rigor, sem perder o respeito. Mas é a parte mais fascinante.
Regressando a este livro, passa a ideia de que foi a escrita que a encontrou a si?
A escrita sempre foi muito importante para a minha família, por ser meu pai a primeira geração que escreveu, por ter a história da Luzia [a primeira professora do pai]. Sou filha de professores. Acabei de ver a manifestação aqui [Manifestação da Administração Pública, dia 25 de outubro, em Lisboa, em que os professores marcaram também presença]. Provavelmente a situação em Portugal é a mesma que no Brasil. Os professores são muito mal pagos, muito pouco valorizados. Mas a minha família sempre teve livros. E eu tenho dois irmãos que não se tornaram escritores. Então, não sei. Ela [a escrita] sempre esteve ali muito antes de eu escrever, porque meu pai escrevia, todo mundo escrevia, menos eu.
Mas escrever veio a tornar-se uma necessidade.
Preciso escrever para ser lida. Preciso escrever para existir. Preciso escrever para ser livre. Talvez por isso eu imagino que tenha muitos escritores que escrevem para si. Tem escritores que nem querem publicar o que escrevem. Já ouvi falar, não sei se é assim mesmo.
Havia o Kafka.
É, o Kafka, exato. Mas eu não. Acho que sempre quis ser lida. Sempre vi as pessoas importantes da minha vida lendo. Então, talvez a escrita venha dessa necessidade de ser lida. Estou aqui pensando nisso…
Há uma recorrência no livro que é esta ideia da escuridão. Que relação faz entre escrita, escuridão e morte?
A morte sempre esteve muito presente na minha vida e não acho que seja o oposto, faz parte da vida. E ela sempre esteve muito presente. Ela me move a viver. E depois vou fazer vários caminhos nessas buscas para entender a morte. A morte é o fim. Apesar de ser parte da vida, é o fim.
Depois da morte, a vida continua?
Não sou religiosa no sentido de…
É ateia?
Nem sou ateia. Vivo na floresta há quase oito anos. Essa força da vida tem o tempo todo. Ao mesmo tempo, tem intercâmbio, tem troca, tem devoração. A morte está sempre presente. Então, não vejo mais as coisas desse jeito. Mas, para mim, a morte e a escuridão sempre estiveram muito presentes. Muito conectadas. Acho que eram muito tumulares. Essa escuridão, para mim, era a escuridão desse túmulo que eu tanto temia. Nessa infância, numa família… Especialmente numa mãe muito enlutada.
A sua mãe é católica?
No caso da minha mãe, perder uma filha é uma coisa devastadora [a irmã mais velha de Eliane morreu aos 5 meses, apenas 10 anos depois se soube tratar-se de uma meningite meningocócica]. E ser acusada de ter causado essa morte é inimaginável. Isso impediu a minha mãe de fazer um luto e marcou toda a minha família. Mas é interessante, porque você falou da escuridão e eu vou fazendo… Em 2015, fiz a minha primeira ação ativista. E foi exatamente a partir de uma frase de um ribeirinho, que é a comunidade tradicional da Amazónia [junto dos rios], que foi expulso pela hidroelétrica de Belo Monte [no Pará]. A empresa queimou a ilha dele. E ele me disse: “eu só vejo escuridão”. E esse “só vejo escuridão” me fez… “Eu vou fazer jornalismo, eu vou escrever a história dele.” Mas ele precisava de outro tipo de escuta. Então, fui atrás de psicanalistas e se criou um projeto que se chama Refugiados de Belo Monte, Clínica do Cuidado, que foi fazer a escuta dos sofrimentos dessas populações. Então, eu acho que a escuridão está associada a uma morte que é fim. A morte é fechada. A morte não tem saída, não tem transformação.
Viver na Amazónia mudou-a enquanto escritora?
Cobri a Amazónia muitas décadas antes de morar lá. Mas a ideia de que a Amazónia é uma coisa que dentro tem animais, tem árvores, tem isso, tem aquilo, não tem nada a ver. Se a gente for definir a floresta, a floresta é uma relação. A definição de floresta é a relação de natureza. É uma relação de todos com todos, de constante transmutação, devoração, intercâmbio, troca. Não teria floresta sem os fungos. Todos participam. Isso faz com que eu me entenda também como natureza. Esse é um movimento que estou longe de completar, que é o que eu chamo do meu reflorestamento. É um movimento de voltar a me entender como natureza. Natureza eu sou, mas me entender como natureza, depois de passar tantos anos numa linguagem que se separou da natureza, que vê a natureza como um corpo, outro, para exploração. Isso muda a minha escrita, muda o meu jeito de ver, muda o meu jeito de entender. É uma mudança muito profunda, e não é uma mudança que começou e terminou. É uma mudança que segue. Estou em processo de reflorestamento, mas minha vida vai acabar antes de eu completar. Não sei se tem como completar. Ao mesmo tempo, é um entendimento muito mais… A gente está no colapso do aquecimento global, crise climática, sexta extinção em massa de espécies.
De não retorno?
Em lugares como nas grandes cidades, como aqui [em Lisboa], como em todas as cidades da Europa, como também em São Paulo, por mais que se sintam os efeitos, que hoje são evidentes – ninguém precisa ler relatório científico –, há uma certa ilusão de que dá para seguir a vida vivendo em uma floresta que está chegando ao ponto de não retorno. Eu vejo a floresta queimar, vejo a seca extrema. Estou a viver como natureza, com a natureza. Isso é muito, muito, muito mais presente e inescapável. A gente sente o colapso o tempo inteiro. E para mim é bem importante. Para mim é importante estar – não é a melhor palavra, mas – no real.
Temos muito presente a escrita como a afirmação de um “eu”, do sujeito que escreve. Estamos certos?
É muito o contrário. Somos cada vez mais individualistas, autocentrados, afirmativos, assertivos, somos cada vez menos comunidade, menos relação. Eu me pergunto muito isto, porque sinto que este colapso que estamos a viver é também um colapso muito emocional. As pessoas estão mesmo… Esta ideia de encararmos a floresta como outro, em vez de encararmos a floresta como um centro, de onde sempre viemos. E para onde vamos acabar? Para baixo da terra, ou queimados, o que for. Somos todos parte disso.
Que novo papel é que podemos dar à escrita?
Isso tem várias respostas. O negacionismo que mais me preocupa não é o do Trump e do Bolsonaro, porque o negacionismo deles é calculado. Eles sabem perfeitamente o que está acontecendo. O negacionismo que me preocupa é o negacionismo da maioria das pessoas. Não basta você dizer “eu sei que tem um aquecimento global, eu sei que ele foi provocado por uma minoria de humanos”, mas não viver de acordo com a emergência. Qualquer ser vivo, ele reage imediatamente à ameaça. Ele tem uma força de viver que faz com que ele reaja. E nós, não. A maioria de nós, não. Não existe esse nós, para começar. Minha hipótese é que o capitalismo nos reduziu a consumidores e sequestrou nosso instinto de sobrevivência. Isso explica o desespero das novas gerações, como o movimento da Greta Thunberg. A casa está queimando e as pessoas estão sentadas. Então, acho que esse negacionismo generalizado é do que há de mais grave no que a gente está vivendo, porque a gente não tem mais tempo. A gente precisa, urgentemente, de voltar a fazer comunidade.
Como é o caso do projeto Sumaúma?
A gente criou, há dois anos, uma plataforma de jornalismo baseada na Amazónia, no interior, em Altamira, no centro da destruição da floresta. O mais importante de Sumaúma é a coformação. A gente tem um programa que se chama Micélio, que é de coformação de jornalistas-floresta. A gente ensina para os jovens indígenas, ribeirinhos, quilombolas das periferias das cidades, o nosso jornalismo: com rigor, com a checagem [verificação], com a busca da palavra exata. E eles nos ensinam como eles contam histórias, já que os indígenas contam histórias na floresta há mais de 10 mil anos. E disso a gente espera que saia uma outra escrita. Uma escrita de quem não se separou da natureza, uma escrita de uma outra experiência, de quem está ali na linha de frente da resistência, muitas vezes perdendo a vida nessa guerra. A ideia é que, em 10 anos, a Sumaúma seja maioritariamente composta por jornalistas-floresta. A cada ano aumenta [o número]. A Sumaúma cresce de dentro da floresta. E nós, que somos uma equipe-ponte, a mudança não virá de nós. Tem que vir de outro lugar. E eles serão maioritários na redação, inclusive nos postos de comando.
É uma ação de recuperação do sentido da escrita?
Foi como a gente entendeu que podia agir na escrita, recentralizar o jornalismo nesse momento de colapso. Cobrindo o colapso atravessado pelas questões de género, classe, raça e espécie. Um dos projetos que a gente desenvolve em Sumaúma é a representação das outras espécies. Escrever a partir do ponto de vista de árvores, de rios, de fungos. É um dos nossos projetos, que a gente faz com a Universidade de Nova Iorque. Eles têm o projecto Moth – The More Than Human Life. É muito bonito.
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Por que se pauta?
A gente entende que as outras espécies precisam ser representadas. Não faz sentido uma democracia no século XXI sem representação das outras espécies. A gente está fazendo várias experiências nesse sentido. Fizemos agora dois anos, em 13 de setembro. Aquele homem que eu te falei que, lá em 2015, disse “só vejo escuridão”, cheguei nele porque fiz uma viagem de canoa, a remo, com a mulher dele, a Raimunda. Ela tinha acabado de ver a ilha dela ser incendiada. Ela chegou tarde e cantou na ilha queimada. É uma cena impressionante porque ela canta na ilha queimada pedindo perdão às plantas, a tudo o que morreu incinerado. E o marido dela está… Enfim, é uma longa história. Vou encurtar. Mas a Raimunda me dizia nessa época, em 2015, que a caneta era a arma mais mortífera do mundo. Porque a caneta sempre foi um instrumento de dominação. Aquando da construção da hidroelétrica de Belo Monte, que para aquela população foi um fim de mundo, eles eram obrigados, coagidos a assinar. Como eles não escreviam nem liam, assinavam com o dedo papéis que tiravam tudo deles, suas ilhas, suas casas, tudo. E ela dizia isso. Quando Sumaúma fez dois anos, a gente comemorou fazendo o lançamento em Altamira do livro que a Raimunda escreveu.
Que livro?
Ela se apropriou da caneta da violência e a transformou em uma caneta de cura. Ela escreveu um livro que se chama Cartilha de Mezinhagem, que é a cura pelas plantas, pelas misturas das plantas que ela foi buscar nos ancestrais dela para ter força de fazer essa passagem. Então acho que essa é uma resposta que eu posso te dar, esse movimento que a gente está tentando fazer, de várias formas. Quando escrevo matéria sobre os fungos, não assino sozinha. Assino com as pessoas da floresta, com o mateiro – se chama mateiro. Os pesquisadores, muitos deles estrangeiros, vão para a floresta, encontram lá pessoas que conhecem a floresta, pessoas locais, e voltam com o conhecimento dessas pessoas. E no máximo elas são consideradas informantes ou nem tem o nome delas. Então eu assino essa matéria dos fungos com o mateiro. É ele que sabe onde estão os fungos, é ele que entende os fungos, é ele que sabe se mover e sabe encontrar.
As fontes deixam de ser fontes e passam a ser co-autores?
Sim. Porque são de facto co-autores. A gente está fazendo várias experiências nesse sentido de escrita coletiva. Escrita coletiva e recuperar a comunidade.
É um jornalismo ativista?
Acho que todo jornalismo que merece o nome é ativista. Mas faço uma distinção. Criar Sumaúma é uma ação ativista para nós. A gente entende que está no momento-limite de fazer o que a gente fez. Posso dizer que somos bons jornalistas e fomos bons jornalistas. Temos uma história que conta isso. Mas não é suficiente. A gente está num momento tão desafiador e de tanto risco que a gente precisa fazer também o que a gente não sabe. Precisa criar coisas que não existem. Criar a Sumaúma foi a nossa resposta no campo do jornalismo, a nossa responsabilidade para com as novas gerações que já estão aí, que já nasceram, que vão viver num planeta hostil.
Onde reside a distinção?
A Sumaúma é uma ação ativista, mas o jornalismo de Sumaúma é absolutamente rigoroso. Inclusive a gente… Não só tudo o que a gente segue e respeita na busca de se aproximar das verdades, mesmo que as verdades contraiam as nossas convicções, mas a gente recupera o que o jornalismo perdeu com a crise. A Sumaúma tem checador contratado, tem revisor, nossos tradutores são nativos e são profissionais, tem revisão da tradução. A gente faz slow journalism, porque é um processo longo de cuidado. O checador vai lá e o repórter tem que mostrar que aquela palavra foi aquela palavra e não outra que o entrevistado usou. Tem essa diferença. A Sumaúma é uma ação ativista, mas o jornalismo de Sumaúma é rigorosíssimo.
Voltando um bocadinho atrás – e para fazer a ponte com este projecto Sumaúma –, o livro Meus Desacontecimentos recuperou-a de uma crise com a escrita. E depois?
Esse livro recuperou o meu movimento e eu continuei a escrever. Aí tive outra crise. Eu me movo por crises. Fiquei alguns anos fazendo projetos meus. Em 2010, deixei o mundo dos chefes das redações, do emprego, e fui fazendo projetos meus na Amazónia, em que eu escutava as pessoas, fazia todo o trabalho, mas não conseguia escrever porque eu tinha testemunhado – eu acompanhei –, durante dez anos, famílias que foram expulsas de Belo Monte e vi o que a Raimunda disse: vi a escrita sendo usada. Não que eu não soubesse. A escrita sempre foi um instrumento de dominação das elites. Mas a escrita sendo usada para destruir as pessoas, destruir o rio, destruir a floresta, destruir vidas, me fez sentir muito impossibilitada de usar o mesmo instrumento para contar essas histórias. Até que tive uma outra experiência em 2015. Voltei a escrever e assim eu vou.
Como foi voltar agora a este livro, sete anos depois de ser publicado originalmente, no Brasil?
Gostei de voltar. É uma experiência muito intensa, porque cheguei quarta-feira aqui e estou indo embora amanhã. De quarta até aqui, falei muito sobre o livro, voltei para ele. Só que voltar para ele agora sou eu acrescida de muitas outras experiências. Isso faz com que eu também perceba coisas que não tinha percebido antes. E mostra como os desenhos, esse traçado caótico, esburacado, interrompido, às vezes rompido, às vezes estranho, eles seguem. Porque, por exemplo, quando lancei este livro, nunca imaginei morar na Amazónia. Nunca, nunca. Isso não estava nem de longe no horizonte. E hoje moro na Amazónia. E aquele indígena de quem eu conto a história no livro é um indígena do Xingu. E eu moro no Xingu. O livro tem caminhos, ainda. Talvez daqui a alguns anos eu vá encontrar outros segmentos dessa história. E isso eu estou achando fascinante.
De que coisas se apercebeu agora que não tinha percebido antes?
As perguntas dos jornalistas que têm conversado comigo me ajudam a pensar. Agora mesmo, quando penso na escuridão, fiz a ligação com a escuridão do Sr. João – em que foi a primeira vez que fiz uma ação ativista. Escrevi a minha matéria e fui tentar criar um outro projeto para dar conta do que estava acontecendo. [Resultou n]esse projeto que faz escuta dos refugiados de Belo Monte. Tem uma ribeirinha que foi expulsa também. E ela dá um depoimento do que foi essa escuta psicanalítica com ela. Diz assim: “eu estava numa caixa escura”. Agora não lembro as palavras exatas, mas “foi como se eu fosse colocando um braço para fora, na luz, depois uma perna para fora. Eu fui saindo toda exprimida para a luz”. A escuta psicanalítica, a escuta do que ela tinha vivido, permitiu que ela saísse da caixa escura. A gente segue pensando. Mas isso só faz sentido se não fizer sentido só para mim. Isso tem que fazer sentido para os outros, para a comunidade, para outros fios, para outros caminhos. E o senhor João, esse homem da escuridão, naquele momento em que ele dizia que só enxergava a escuridão, queria que a família toda fosse para a Ilha queimada se matar. Porque ele queria chamar a atenção do mundo para o que estava acontecendo. A partir daí, ficava sempre alguém… Até tiraram a canoa dele para que ele não fosse fazer isso. Ficava sempre alguém cuidando dele naquele momento em que ele falava isso da escuridão. Quando há escuta, não precisa sacrifício. Então, acho que são essas coisas que a gente vai entendendo.
E sente que o jornalismo que a Sumaúma tem andado a fazer tem tido essa capacidade de escuta?
Sim. A Sumaúma faz a diferença – e ela provoca também. A gente provoca de várias maneiras. Por exemplo, uma coisa muito comum… Pouco se escuta os indígenas, mas, quando se escuta os indígenas, se escuta os indígenas em português. Mesmo os que falam português, não é a primeira língua deles. Eles não conseguem se expressar. Nós escutamos eles nas suas línguas. A gente contrata tradutor. Por que a gente contrata tradutor de inglês e não contrata tradutor de Yanomami, de Munduruku? A gente tem feito várias mudanças, mas acho que o impacto de Sumaúma ainda vai crescer. A gente tem dois anos. Se você tiver a oportunidade de ver, a gente publicou ontem [24 de outubro], em sumauma.com, uma matéria do Wajã Xipai, que é um indígena da Terra do Meio. Quando o rio tem água, são quatro dias de barco de Altamira. Ele mora na floresta e ele faz uma matéria sobre por que o rio dele está ficando verde, está se tornando mortífero. Só alguém que é rio também poderia escrever daquele jeito. A gente só está começando. O melhor vai ser quando nós não estivermos mais.
Vê-se a sair do projeto?
Para a gente tornar a Sumaúma o que a gente imaginou, a gente tem que ser expulsa. Não tem mudança sem ocupação de poder.
E o que se vê a fazer depois?
Ah, eu tenho mil projetos.
Voltar também à ficção?
Quero voltar à ficção, mas tenho outros [projetos]. Hoje, o que me fascina, onde eu estou, há mais de dois anos, tomou todo o meu tempo, toda a minha energia. Estou escrevendo muito pouco, o que é muito difícil para mim. Mas o meu caminho é escrever e entender como a gente escuta não-humanos. Fazer reportagem com não-humanos. Mas não assim com os cientistas falando, não. Esse é o meu desafio hoje, como jornalista.
Uma visão não antropocêntrica do mundo.
A gente na Sumaúma tira o humano do centro.
Foi o que a levou a mudar-se para a Amazónia?
Sou jornalista desde ‘88 e cubro a Amazónia desde ‘98. Várias Amazónias. Em 2011, já com projeto pessoal, passei a acompanhar as famílias de ribeirinhos expulsos por [hidroelétrica] Belo Monte. Acompanhei por dez anos. Mas defendo que, como enfrentamento ao colapso, é preciso fazer um urgente deslocamento do que é centro e do que é periferia. Os centros do nosso mundo é onde a natureza resiste, e não os centros de poder político e financeiro que decidem a destruição da natureza. Os centros são a Amazónia, as outras florestas tropicais, os oceanos, os outros biomas, e não Washington, Pequim, Frankfurt, ou mesmo Lisboa e São Paulo. É um centro onde está a vida, e não onde estão os mercados. O que significa colocar no centro outra linguagem e outros valores.
E isso não é mera retórica.
Quando estava fazendo esse projeto de refugiados de Belo Monte, eu me dei conta: se defendo que o centro do mundo é a Amazónia, por que estou em São Paulo? Aí, eu fui para lá. E depois vieram outras imaginações.
Por falar em imaginações, tem um livro de ficção, Duas Uma. O que é que escrever ficção lhe permite contar que a não-ficção não permite?
O que eu escrevo nesse livro tem realidades que só a ficção suporta. Escrevi ficção depois de passar um ano trabalhando no jornalismo, fazendo reportagens sobre a morte. Uma das matérias que fiz foi acompanhar 115 dias uma mulher com cancro incurável. Mas no jornalismo a gente está contando [histórias] de pessoas que expiram, de pessoas que estão vivendo, que sentem dor, que estão buscando. Mesmo que a gente possa contar algumas coisas, a gente não deve. Há coisas que não podemos dizer no jornalismo. É sobre gente viva. Mas na ficção podemos. Escrevi a minha primeira ficção para lidar com todas as coisas que vi, no acompanhar de muitos “morreres”.