Ainda falta um mês para terminar o primeiro semestre de 2018 e os dedos das mãos já não chegam para contar a quantidade de bons discos editados nestes primeiros meses. A boa notícia é que cada vez mais a música portuguesa rivaliza com a música internacional. Oiça-se, por exemplo, o jazz da nova banda de Norberto Lobo e de Desidério Lázaro, o rock dos Linda Martini, a música ancorada nas guitarras de Filho da Mãe (Rui Carvalho) e Dead Combo, as canções de fino recorte de Sérgio Godinho, Cristina Branco, Medeiros/Lucas e do mais jovem Filipe Sambado, a eletrónica de P. Adrix (artista da editora Príncipe, de identidade misteriosa mas alegadamente português emigrado em Manchester) e o hip-hop de Papillon, David Bruno e Minus & Mr. Dolly.
Todos estes músicos (e muitos outros, certamente) editaram este ano álbuns que urge ouvir. Acontece que, além deles, há três grandes novidades no feminino. São elas: Elisa Rodrigues, cantora de jazz que acaba de editar o seu primeiro álbum de originais, produzido por Luísa Sobral; Beatriz Pessoa, que mudou a direção da sua música, misturando agora o jazz de sempre à pop apurada em português; e Catarina Falcão, que fez uma pequena pausa no seu trabalho com a banda Golden Slumbers (em que está também a irmã, Margarida) para apresentar, em fevereiro passado e pela primeira vez, canções suas a solo. Acompanhá-las no futuro é recomendável e, acreditamos, será inevitável. Mas ouvi-las hoje e seguir-lhes os passos não o é menos.
Elisa Rodrigues
À primeira vista, o termo “revelação” pode parecer pouco apropriado para descrever Elisa Rodrigues. Afinal, o primeiro disco da cantora, ex-estudante de moda, foi editado há sete anos. Nos últimos anos, Elisa chegou mesmo a percorrer o mundo em digressão, como convidada da banda inglesa These New Puritans, com quem gravou o disco Fields of Reeds. Como se explica então o rótulo? Com a importância de As Blue as Red, o primeiro álbum a solo de originais da cantora.
Editado este mês, é o disco em que Elisa Rodrigues, intérprete, se tornou também compositora, assinando seis canções, três delas em parceria com Luísa Sobral, que produziu o álbum. “Não sinto que este disco vá ser uma revelação”, começou por dizer, em conversa com o Observador. “Mas para algumas pessoas será uma revelação. Talvez consiga chegar a mais pessoas e nesse sentido, sim, poderá ser.”
[“In And Around”, single do novo disco de Elisa Rodrigues, o seu primeiro a incluir maioritariamente temas originais:]
A própria agência que promove a cantora assume que “revelação” é uma palavra válida, já que descreve o álbum como “um argumento irrefutável e definitivo para defender a ideia de que uma revelação (…) pode implicar muito tempo e muitas etapas de crescimento”. Diz ainda que Elisa Rodrigues é “uma revelação com passado”. O resumo é, desta feita, certeiro: depois de um álbum em que interpretou maioritariamente temas alheios e emblemáticos (de “Ain’t No Sunshine” a “God Only Knows”, passando por “Roxane” e “Cry Me a River”), acompanhada por Júlio Resende, Joel Silva e Cícero Lee, entre outros, Elisa emerge em 2018 como autora de corpo inteiro.
Nascida em Lisboa mas tendo vivido quase toda a vida em Cascais — excluem-se dois anos passados na capital portuguesa e o nomadismo inerente às digressões –, Elisa Rodrigues diz que “em pequena era uma seca” porque “estava sempre a cantar”. “A ponto de às vezes [os pais] não me conseguirem mandar calar. Ia numa viagem daqui [Lisboa] ao Alentejo sempre a cantar a mesma música. Tenho imensos vídeos a cantar ou a dizer: agora calem-se que eu vou cantar. Era mesmo muito chata”, riu-se.
Nesses tempos pré-escola primária, Elisa Rodrigues não cantava especialmente bem e “ninguém diria que aquela criança ia cantar”. Lata, contudo, já tinha de sobra: na escola primária, candidatou-se ao coro da sua escola, que precisava de um solista para um espetáculo, depois de ouvir a jovem que fora escolhida e dizer “acho que consigo fazer melhor”. A professora desafiou-a a tentar, ela assim fez. Daí para cá nunca mais parou. “Os meus pais começaram a perceber que era mesmo um interesse que tinha e decidiram que devia ir para um coro. Então, fui para um coro de música clássica, o coro Pequenos Cantores do Estoril, com 8 anos. Era um coro fantástico, foi uma grande escola.”
Ao serviço do coro do Estoril, Elisa Rodrigues começou a cantar de forma mais profissional. “Com oito anos já cantava na Aula Magna, no CCB, estava habituada a essas salas. Lembro-me de com 8 ou 9 anos ter feito um solo com a orquestra da Lituânia, que era a maior orquestra do mundo na altura, no claustro do Mosteiro dos Jerónimos. Quando o Nobel da Paz vinha cá, íamos cantar. Tudo isto foi-me alimentando a vontade e foi-me dando confiança.”
[Elisa Rodrigues e o painista Júlio Resende a interpretarem o tema “Dá-me Lume”, de Jorge Palma:]
É claro que cantar tão regularmente desde nova também teve os seus custos. Elisa Rodrigues “não tinha férias no Natal” e “tinha muito pouco descanso”. “Aos sábados de manhã toda a gente ficava a ver desenhos animados e eu estava a olhar para partituras. Tenho uma memória de almoçar uma maçã para poder ter tempo de ir aos ensaios do coro. Quase não comia para poder cantar.”
Nessa época, o jazz ainda não era a sua grande paixão. Elisa Rodrigues só queria cantar e ainda não pensava, como faz agora, em “como é que uma Ella Fitzgerald ou uma Billie Holliday cantariam” um tema de que gosta. É certo que os outros géneros musicais foram-se atravessando no seu caminho e as referências são ecléticas — Ravi Shankar (“Deve ser a pessoa que oiço mais”), Chico Buarque, Fiona Apple (por quem teve “uma grande paixão”), Amália Rodrigues (“sempre, obviamente”), Da Weasel e Jorge Palma, estes últimos referências da adolescência. Mas o jazz — que não considera “nada hermético”, antes “um género musical que vai comendo os outros, que vai-se apoderando das outras coisas para crescer e evoluir” — impôs-se. Hoje, é o sítio a que volta “sempre”.
É de facto sobretudo jazz (com algumas fugas ao cânone em temas como “I’ll Be Loving You”, “Vai Não Vai” ou “Pontinho”) o que se se ouve em As Blue As Red. O disco, maioritariamente cantado em inglês, conta com composições originais de Pedro da Silva Martins e Joana Espadinha, além dos temas que a cantora e Luísa Sobral (também produtora do álbum) criaram de raiz e de uma cover de “If You Could Only Read My Mind”, de Gordon Lightfoot, que Johnny Cash tornou célebre. Ao todo, são 11 temas, todos cantados por Elisa Rodrigues e com participação dos músicos Luís Figueiredo (piano e órgão), António Quintino (baixo e contrabaixo), Carlos Miguel (bateria) e Mário Delgado (guitarra) na construção dos arranjos. “É quase impossível entregar uma canção a músicos de jazz e esperar que eles façam o que estava no programa”, disse Elisa Rodrigues.
“Este trabalho parece-me uma progressão bastante natural, tem alguma afinidade com o anterior [Hearth Mouth Dialogues]. Claro que, ao trabalhar com a Luísa Sobral, a sonoridade é uma mistura da visão dela com a minha, mas as nossas raízes [musicais] têm parecenças.” Elisa Rodrigues e Luísa Sobral conheceram-se em 2011, ano em que ambas editaram os seus primeiros discos. Essa coincidência, o facto de terem “amigos em comum” e frequentarem “os mesmos clubes” de jazz, estreitou a relação. “Ela já se tinha oferecido para me compor vários temas mas a ideia de trabalhar com ela enquanto produtora nunca me tinha ocorrido”, contou Elisa, explicando que a sugestão veio do seu manager, “que também era manager da Luísa. E fez imenso sentido logo à primeira, para mim e para ela. Acho que ela era a pessoa certa na hora certa. Às tantas já nos estávamos a divertir imenso, a Luísa vinha a minha casa, eu ia à dela…”
A principal razão para a maioria das canções de As Blue As Red ser em inglês é o “hábito” da cantora em compor e cantar temas nessa língua. “Estou habituada a cantar jazz, que tem o inglês como língua forte. Como costumo cantar temas em inglês, é-me mais fácil escrever em inglês quando componho”, explicou. Há outro fator a pesar, contudo: a internacionalização. “Apesar das pessoas reagirem bem a temas em português” fora de portas, parece-lhe “mais difícil” internacionalizar-se “com consistência” promovendo um álbum “integralmente em português que não seja de fado”. Mas não exclui fazê-lo: “Não tenho qualquer tipo de plano definido para o futuro”.
A internacionalização não parece a Elisa Rodrigues uma meta impossível. A confiança e otimismo devem-se ao que experienciou quando acompanhava a banda inglesa These New Puritans. “Eles têm uma atitude muito mais confiante e positiva, que começo a ver cá, em pessoas da minha geração e um bocadinho mais velhas. Quando trabalhei com os Puritans notei que, para eles, nada é impossível. O primeiro concerto que fizemos juntos foi a primeira parte da Björk no Hollywood Bowl”, que é um anfiteatro de Los Angeles com capacidade para mais de 17 mil pessoas. “E para eles aquilo era normal. Era tudo normal. Tocar no Japão é normal… Acreditam imenso neles e na qualidade que têm — e nós temos muita dificuldade em acreditar em nós próprios ou em encontrar alguém que acredite.”
Quase só falta explicar porque é que de intérprete de standards de jazz, Elisa Rodrigues passou também a compositora. “Quando voltei a Portugal, por volta de 2013, 2014, deparei-me com a necessidade de fazer um disco novo. Tinha receio de pedir temas a outros, também de não me identificar com eles. E pensei: tenho de escrever. Sempre escrevi bem, embora não fosse música. Comecei a experimentar, comprei um livro sobre o Bob Dylan e comecei a ler sobre os métodos que ele utilizava, a usar alguns dos exercícios que ele usava. E percebi que isto é-me fácil. De repente, já consigo mostrar letras à Luísa Sobral, ao Mário Laginha, ao Carlos Tê.” Onde é que se pode ouvir essas letras? Nos temas novos “Just Start a Fire”, “In and Around You”, “Justine”, “Words”, “I’ll Be Loving You” e “Other Men”. São eles e os restantes cinco que compõem As Blue As Red que prometem inscrever em definitivo o nome de Elisa Rodrigues no panorama musical nacional.
Beatriz Pessoa
Uma das palavras que Beatriz Pessoa mais repetiu ao Observador, numa conversa por telefone a partir de Nova Iorque, onde passou recentemente um mês a passear, a cantar e a deixar-se inspirar pela cidade, foi “liberdade”. Liberdade de não se deixar aprisionar pela formação musical que teve. Liberdade de começar no jazz e pôr agora um pé e meio na música pop. Liberdade de “hoje ser isto e amanhã não saber”. Liberdade que os pais lhe deram para decidir o seu futuro e seguir música. E liberdade que a cantora Maria João lhe apresentou quando, nas aulas que lhe deu na Escola Superior de Música de Lisboa (ESML), a pôs a cantar tudo e mais alguma coisa. Beatriz Pessoa não tinha de ficar agarrada ao cânone do jazz. Já o tinha percebido antes, nas aulas que teve com a cantora Joana Espadinha, no Hot Clube de Portugal. Mostra agora a lição bem estudada em II, EP de seis canções que editou este ano.
Com 22 anos, prestes a fazer 23 (fá-los já no próximo mês de junho), Beatriz Pessoa começou com um EP, Insects, editado dois anos antes. O novo trabalho chegou em março deste ano e representa um grande passo em frente na afirmação da cantora que este ano também participou no Festival da Canção, enquanto intérprete escolhida por Mallu Magalhães para cantar “Te Amo”. O tema que não chegou à final mas chegou a ser anunciado como finalista por causa de um erro na contagem de votos. Menos ancorado no jazz e com canções mais sólidas, II deixa água na boca para o futuro de Beatriz Pessoa.
Lisboeta, Beatriz conta que sempre teve “muitos interesses” antes de perceber que a música era o que a “fazia mais feliz”, aquilo que pensa “fazer melhor”. Um dos caminhos que podia ter seguido é o da representação: o pai dirige o Teatro Taborda, em Lisboa, e Beatriz passou lá dias a fio. Mas isso até teve o efeito contrário. “Cresci tanto no teatro que pensei sempre ‘já estou farta disto, não quero estar aqui'”, contou, admitindo, contudo, que houve uma fase em que quis ser atriz, sim, mas de cinema. Hoje, é na música que dá passos firmes, apesar de “ainda hoje adorar ver peças de teatro” e achar que “enquanto artista, é importante interessar-se por outras artes”.
Foi aos 13 anos, quando entrou para uma escola musical de Oeiras chamada Improviso, que a música começou a tornar-se caso mais sério. Um ano depois, viveria um verão marcante na Lisbon Jazz Summer School, escola do Centro Cultural de Belém dedicada à formação nesse género musical. O bichinho do jazz instalou-se e Beatriz não esperou muitos meses até se inscrever nas aulas do Hot Clube de Portugal, onde ficou três anos. Não terminou o curso de quatro anos porque decidiu, no final do penúltimo, ingressar na Escola Superior de Música de Lisboa (ESML).
“Ter tido um percurso académico destes ajudou-me sobretudo a adquirir conhecimentos para compor”, afirmou a cantora e compositora, acrescentando que começou a “ter bandas e a tocar com músicos” desde cedo. As escolas de música por que passou habituaram-na às “dinâmicas de grupo, a fazer música em conjunto” e a experimentar misturar géneros musicais. Até porque “o jazz é uma escola um bocadinho mais livre, por ter inerente a improvisação e por ser um estilo musical muito aberto a outros estilos, com uma envolvência muito grande de outros tipos de música”.
Mas a música também a marcou na adolescência enquanto ouvinte: “Nesse período é muito normal a música fazer parte de nós, sentirmos que é a única coisa que nos percebe. Aconteceu comigo. De repente, associamo-nos a músicas e temos ídolos porque aquelas pessoas que ouvimos falam sobre coisas que nos são próximas”. É esse impacto que Beatriz Pessoa quer ter em quem a ouve. Por o ter sentido enquanto fã: “Ainda hoje às vezes estou numa loja ou noutro sítio, começa a dar uma música e automaticamente fico feliz, nostálgica, triste… A música tem um papel muito importante na minha vida e espero que tenha sempre. Nunca será um trabalho chato, é algo que me faz feliz.”
Uma das coisas que Beatriz Pessoa mais aprecia na música — e que tem tentado replicar nas suas canções, conseguindo-o em especial neste novo EP –, é sentir que é possível fazer uma canção pop que tenha melodia cuidada e letra apurada. Percebeu-o quanto juntou ao jazz o gosto pela música portuguesa e (sobretudo) brasileira, trabalhando a fórmula neste novo trabalho. “Vento”, single do novo EP que entrará em breve numa telenovela da TVI, é um bom exemplo de canção pop certeira. Beatriz Pessoa confirmou a notícia ao Observador: “Recebi essa informação há muito pouco tempo e fiquei muito contente, não por gostar de novelas, que não vejo, mas porque sinto que a música pode chegar a mais pessoas e mais sítios” assim.
[“Vento”, single do EP II, editado este ano por Beatriz Pessoa:]
Neste novo trabalho, Beatriz Pessoa, outrora mais habituada a cantar jazz em inglês, apresenta pela primeira vez composições em português: “Vento”, “Feminina” e “Desconstrução”. Perguntamos-lhe o porquê de introduzir essa novidade e se é algo a que quer dar continuidade de futuro. “Acho que é mais fácil sermos transparentes na língua que faz parte de nós”, notou, acrescentando: “Quando canto em português consigo ser mais eu e falar mais sobre coisas minhas. Já quando escrevo em inglês é mais fácil entrar em personagem. Estou sempre a compor e ultimamente só me saem temas em português, portanto acho que o caminho será mais por aí”.
Se a voz é afinada, a escrita é cada vez mais íntima. Mas esse é mais um traço geracional do que exclusivo seu, defende a cantora: “Se calhar a geração anterior acabou por ser mais política e esta se calhar está a ser mais emocional. Acho que estamos a voltar um bocadinho às canções de amor e a esse tipo de música”. Outro traço geracional? Um gosto musical variado que, acredita Beatriz, acaba por se refletir inevitavelmente na hora de compor: “Hoje, se procurarmos, é mais fácil chegarmos a mais tipos de música, ouvirmos mais coisas diferentes umas das outras. Se calhar há dez anos uma pessoa que conhecesse Elis Regina não teria meios ou informação para chegar a uma Laura Mvula”, uma cantora britânica de R&B e soul.
Ao longo de um percurso ascendente, Beatriz Pessoa tem notado uma grande dificuldade: o sexismo que considera existir na indústria musical. “Nas pessoas de quem me rodeio não sinto isso, mas existe e é importante ser falado. Onde sinto mais é na parte estética, no marketing associado à música. A nós, mulheres, é-nos exigido mais a nível estético e pessoal do que é exigido a um homem. Não chega escrever música e sermos competentes, temos de ter beleza. Esse é um lado da música pop que não me atrai, tento sempre evitar que seja uma prioridade para mim.” E concluiu: “Gosto de fazer parte de uma geração que está a mudar a forma como isto é pensado e discutido”.
[Beatriz Pessoa foi escolhida por Mallu Magalhães para cantar “Eu Te Amo” no Festival da Canção:]
Apesar dessa dificuldade adicional, a confiança é grande. Beatriz vive da música há dois anos, somando os concertos a aulas de música que dá, em regime de seis horas semanais, numa escola de Carnaxide. “É muito difícil viver só da música, daí o complemento das aulas. Mas tem-me corrido bem, tenho conseguido viver e poupar um bocadinho para as minhas viagens. Se houver uma fase em que precise de fazer outras coisas também me desenrasco e não tenho qualquer pudor.”
A composição para outras pessoas é um caminho paralelo, que Beatriz experimentou pela primeira vez há pouco tempo, quando entregou “Namora Comigo” à cantora Cristina Branco, e a que também quer dar continuidade. Por agora, o tempo é de concertos. Além do concerto marcado para este sábado, na Casa da Cultura, em Setúbal, no verão cantará no palco coreto do festival NOS Alive, acompanhada pela sua nova banda, que inclui um baixista, um baterista e um guitarrista/teclista. O presente já é lugar seguro para a sua música. Depois, vem o futuro, que se antevê (ainda mais) luminoso.
Monday (Catarina Falcão)
Vila Real, 2016. As irmãs Margarida e Catarina Falcão, que formam juntas o duo folk Golden Slumbers, iam dar um concerto na cidade nortenha quando, à última hora, a primeira adoeceu. Com 40 graus de febre, Margarida não conseguia atuar. Catarina (ou “Cat”) decidiu ir para o palco sozinha, dando assim o primeiro concerto a solo. Foi ali que nasceu a semente para um novo projeto a que chamou Monday e que, já este ano, deu o seu primeiro fruto: o disco One, de dez canções, em que Catarina Falcão assume pela primeira vez composições totalmente suas, posteriormente trabalhadas pelo produtor António Vasconcelos Dias.
Catarina, 24 anos, lisboeta, começou a cantar muito cedo. Primeiro em casa, com as duas irmãs que tinha na alura, Marta e a já citada Margarida (entretanto, nasceram mais duas, Matilde, atualmente com 13 anos e Cacau, com 5). Depois, a partir dos cinco e seis anos, entrou para o coro de Santo Amaro de Oeiras e começou a cantar nos teatros da escola. Aos 12 anos, decidiu experimentar tocar guitarra mas, por “preguiça”, nunca estudou muito e acabou por deixar as aulas passado cerca de ano e meio. Para a cantora, a guitarra serviu sobretudo para acompanhar a voz e para experimentar umas “covers pirosas, de Jason Mraz, talvez”. Ainda hoje, embora faça as duas coisas, considera-se “melhor a cantar do que a tocar”.
Foi por volta dos 15 anos que Catarina Falcão começou a “ouvir coisas mais interessantes”. Cat Power, por exemplo. Os Yeah Yeah Yeahs, também. Feist, ainda. E Laura Marling, uma grande referência, pouco depois. O que é que a maior parte destes artistas têm em comum? Fazem música folk, tal como Catarina faz — a solo em Monday e nas Golden Slumbers, que vive muitas das harmonias de voz das irmãs Falcão. O duo já participou no Festival da Canção, a convite de Samuel Úria.
Foi também entre os 15 e os 16 anos que Catarina Falcão escreveu a sua primeira canção (se excluirmos um tema em português que compôs com a irmã Margarida “para a igreja”, três anos antes). O momento não foi propriamente uma epifania nem lhe trouxe um sentimento de glória: “Na altura namorava com um rapaz que também tocava guitarra e que queria muito que eu escrevesse uma canção. E eu nunca queria, ou porque não me apetecia, ou porque tinha vergonha… Foi assim uma batalha muito frustrante”.
A primeira canção foi escrita a propósito de uma desavença com a irmã Marta. A propósito de um murro que deu na cabeça de Marta, mais precisamente. Uma parte da letra dizia: “Bones are broken / and it hurts like hell / I will only hope / you won’t break my heart as well'” Qualquer coisa como: “Parti-te os ossos, agora não me partas o coração”. “Super profundo”, riu-se Catarina, em conversa com o Observador. A epifania, a existir, chegou não quando compôs a canção mas quando a gravou. Eis o resumo do que lhe passou pela cabeça: “Pensei: ok, já percebi como é que a Feist faz!”.
Não é coincidência que esse primeiro tema lhe tenha saído em inglês. Nos anos seguintes, Catarina Falcão continuaria a compor em língua inglesa, quer em Golden Slumbers quer agora em Monday. Porquê? “Toda a gente me faz essa pergunta e nunca percebi muito bem porquê. Para Golden Slumbers não me vejo a escrever em português. E para Monday também acho que não. Se acontecer, vou ser desmentida daqui a uns anos.” Mais a sério, disse que “hoje em dia a música portuguesa cantada em português é que vende”, pelo que vai “ser pobre para sempre”. Mas está tudo bem, “é na boa”, ainda bem que muita gente canta em português, “só é pena que não se inclua o resto” quando se fala de música portuguesa.
É também de composições em língua inglesa que é feito One, o primeiro disco a solo que Catarina editou este ano, que tem vindo a apresentar ao vivo em várias salas e festivais, como o lisboeta MIL. Todas as canções foram escritas e compostas por Catarina, mas os arranjos foram trabalhados com António Vasconcelo Dias, que ajudou a equilibrar a tonalidade folk acrescentando alguns temas inspirados pelo rock (oiça-se “Learn”, por exemplo, na plataforma Spotify). Perto de metade dos temas foram escritos quando a cantora estava a tirar um curso de composição em Londres. “Para mim, é super óbvio que essas foram escritas lá porque imagino-as com um cenário mais cinzento. Há umas quantas letras que se calhar tentaria escrever de forma diferente se fosse hoje. Mas não fazia muito sentido neste momento revisitá-las e mudá-las.”
[“Yo-Yo”, tema do álbum One de Monday/Catarina Falcão:]
Catarina admite que foi com este projeto que começou “a estar um bocadinho mais atenta aos arranjos e espero conseguir trazer isso para Golden Slumbers de alguma forma”. Monday é para continuar, Catarina só não sabe em que formato, está aberta a tudo: “Se voltar a fazer algo como o que fiz neste disco é super válido, mas se me apetecer fazer um álbum de trip hop ou de shoegaze, vou fazê-los”. Talvez venha a fazer umas “coisas mais soul, seja lá o que isso signifique. Soul “com a minha marca, porque não tenho voz de cantora de soul, quem me dera”.
O objetivo é estar a tocar daqui a dez anos, “senão é porque alguma coisa correu muito mal”. Catarina, que trabalha paralelamente como secretária num escola de música, tem em vista a profissionalização. Espera viver só da música a partir do próximo disco das Golden Slumbers, que vai suceder a The New Messiah, de 2015. É por isso que o está a compor “com calma”, juntamente com a irmã Margarida, porque quer sentir que, com esse trabalho, o duo passou “de um nível para outro”. Também quer aprender a tocar piano em breve, pelo que o caminho que a sua música seguirá de futuro é difícil de prever. Menos em Golden Slumbers, onde continuará a fazer “música folk”, ainda que com “ligeiras alterações”. E, se a voz delicada augura bom futuro, as canções de One tornam o presente já merecedor da maior atenção.
Fotografias de João Porfírio, ilustração de Maria Gralheiro