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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Em dia de manifestação "tensa" e com nervos à flor da pele, Ventura anunciou que vai partir para a "reconquista"

Manifestação do Chega marcada por vários pequenos incidentes e muita tensão. Polícia separou grupos preventivamente. Mário Machado esteve presente e Ventura falou numa "invasão" de imigrantes.

Milhares de manifestantes de um lado, duas idosas paradas à beira da estrada do outro. A imagem é improvável, mas foi assim que começou um dos momentos imprevisivelmente mais tensos da manifestação contra a “imigração descontrolada” que o Chega marcou para a tarde deste domingo e que levou milhares a descer a Avenida Almirante Reis, em Lisboa. Muitos desses manifestantes iam reparando nas duas idosas, paradas na rua, uma de punho em riste e outra igual, mas também com o dedo do meio da outra mão erguido em direção à manifestação. Apesar de as duas companheiras terem permanecido caladas, a imagem foi o suficiente para irritar muitos manifestantes, que gritavam insultos, de “velha de merda” a “putas” e “traidoras”, enquanto as duas continuavam, desafiantes, de punhos no ar.

Foram alguns minutos de tensão, mas os pequenos incidentes foram-se repetindo ao longo de uma tarde que muitas vezes pareceu funcionar como uma panela de pressão. Na primeira linha da marcha, rodeado de deputados e dirigentes do Chega, André Ventura seguia protegido por vários seguranças e um cordão humano de elementos do partido que, de mãos dadas, não permitiam que ninguém se aproximasse do líder. Houve quem conseguisse, fruto de muita persistência, furar o cordão — uma jovem que tremia de emoção foi cumprimentar Rita Matias, uma idosa seguiu-a e posou para a fotografia com André Ventura — mas os seguranças deram rapidamente ordem para que o cenário não se voltasse a repetir.

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Todos estavam conscientes de que o cenário era potencialmente tenso e que havia perigo de descontrolo. E, por isso mesmo, o Chega apostou na segurança — em vários momentos, quando alguém na rua reagia à manifestação havia alguém do próprio grupo que tentava acalmar os ânimos e devolver os membros do partido mais exaltados à sua bolha –, numa manifestação que contou sempre com uma forte presença policial e, segundo os números de André Ventura, ainda por confirmar, cerca de três mil manifestantes vindos de vários pontos do país, em autocarros organizados pelo partido, e que acabaram a ouvir o líder a apelar à “reconquista” do país para contrariar a “invasão” de imigrantes ilegais que diz estar a tomar conta de Portugal.

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Os incidentes foram-se multiplicando pela tarde fora, embora fossem controlados de forma rápida. Aconteceu quando uma altercação entre um grupo que gritava “25 de Abril sempre, fascismo nunca mais” na rua e manifestantes do grupo do Chega acabou por levar à detenção de dois jovens. E repetiu-se já na reta final da tarde, após o discurso final de André Ventura, quando o movimento de extrema-direita 1143, liderado por Mário Machado, saía do local e um grupo de pessoas envolveu-se em confrontos físicos, tendo sido rapidamente separadas pela polícia.

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Em frente à igreja dos Anjos, a presença de um grupo de jovens com os rostos semi-tapados e com máscaras, calados, quietos e virados de frente para a manifestação, também levou a uma multiplicação de gestos obscenos — alguns devolvidos por estes jovens — e gritos: “Parecem terroristas! A força do Chega é maior!”. O momento ficou marcado por muitos assobios e gritos por “Portugal”, mas a polícia formou um cordão impedindo que chegasse a haver mais proximidade física entre os dois grupos.

A acrescentar ao clima de tensão, uma vez que a manifestação contra a “imigração descontrolada” e a “insegurança” ia passar pela Almirante Reis, já batizada como a avenida mais “multicultural” de Lisboa, sabia-se que existiria uma “contra-manifestação” no Largo do Intendente. Mas esse acabou por ser o menor dos focos de conflito da tarde, uma vez que a polícia, que tinha dado parecer negativo à realização das duas manifestações em simultâneo, montou um cordão humano e de carrinhas e carros que impedia que os dois grupos conseguissem ver-se ou aproximar-se.

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No Intendente, que esteve isolado da Almirante Reis até ao fim do desfile do Chega, algumas centenas de pessoas juntaram-se para gritar cânticos contra a manifestação — “Fascistas, racistas, chegou a vossa hora/ Os imigrantes ficam e vocês vão-se embora” — e ouvir dois convidados da associação SOS Racismo, que estarão “acampados sem dignidade na igreja dos Anjos”, cantar para o público, que, já depois do momento mais tenso da passagem da manifestação adversária, se entretinha a conversar ou a beber cervejas.

De um lado, ia-se cantando e repetindo o hino nacional, viam-se cartazes “contra a invasão” e “em defesa da nação”, pedindo “nem mais um imigrante ilegal” e gritando-se por Portugal e pelo Chega. Alguns dos cartazes e gritos de guerra garantiam que Portugal é um país cada vez menos seguro, ou que é graças aos imigrantes “que ocupam casas aos quinze e aos vinte” que há dificuldades no acesso à Habitação. Do outro, tarjas que pediam “luta de classes” em vez de luta contra os imigrantes, participantes que diziam ter vindo de casa para a concentração “assustados” depois de terem visto Mário Machado na televisão, um pequeno poster de Ventura, “procurado por crimes contra a Humanidade e o planeta”.

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A divisão era mais do que palpável, como se comprovaria falando com quem se encontrava de cada um dos lados da barricada. A sensação seria a mesma depois de ouvir o discurso final de André Ventura, que disse saber que “talvez metade do país” esteja contra o Chega, que prometeu travar uma “batalha pela história e identidade” de Portugal, que quer “reconquistar”, e pôs a multidão a gritar, depois de falar de imigrantes que cometem crimes: “De-por-ta-ção!”.

Os motivos de quem foi à manifestação: sensação de insegurança e vídeos violentos nas redes sociais

Isabel Duarte é uma das mulheres que estavam de punho no ar (e, no seu caso, de dedo do meio também no ar), especada na rua a ver a manifestação passar, sem falar nem esboçar mais do que um meio sorriso. Enquanto falava com o Observador, a advogada de 70 anos ia sendo abordada por manifestantes que a insultavam ou que queriam filmá-la. “Faço-lhe um sorriso”, desafiou, respondendo a um destes últimos. E explicou que, tendo nascido em 1954 e “vivido no tempo do fascismo”, passou esta tarde “muito emocionada”: “Nunca pensei ver isto outra vez”. Ao ouvir os insultos de quem ia passando, e garantindo que “é possível resistir a esta gente”, ia registando o teor das palavras que lhe chegavam: “Têm-me insultado como mulher. É este o pensamento destas pessoas”.

Alguns metros atrás, ainda em plena Alameda, Ana Maia, uma mulher de 60 anos, falava de um ponto de vista diametralmente oposto. “Estou aqui porque quero Portugal de volta. Perdemos a nossa identidade”, começou por explicar, garantindo não ser “contra a imigração” em si — uma garantia que quase todas as pessoas abordadas pelo Observador iam dando — mas contra o “descontrolo” das entradas no país.

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A própria Ana Maia, militante do Chega e natural de Barcelos, chegou a ser emigrante em França, em Saint-Étienne, como acabou por explicar ao Observador. “Fui emigrante mas sempre respeitei o país, nunca andámos a fazer distúrbios nas ruas”, acrescentou, recorrendo a um argumento que foi recorrente: a “sensação” de que, embora Portugal seja considerado o sétimo país mais seguro do mundo (desceu um lugar em relação ao ano anterior), há “muito mais insegurança”.

Durante as várias conversas que o Observador manteve, foram frequentes os exemplos de alegados casos de violência não noticiados, por entre acusações contra a comunicação social — “não passa os vídeos, mas tenho-os aqui no meu telemóvel” — e garantias de que o Chega “ajuda a passar a informação” que não chega aos jornais. “A situação tem piorado muito, só não vê quem não quer. No Algarve está insuportável”, desabafava Ana Maia.

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As queixas eram semelhantes às que outros militantes, que se iam reunido na Alameda, saídos dos autocarros organizados pelo Chega, iam referindo (excetuando quem revelava que os “chefes” dos seus núcleos tinham pedido que não se dessem declarações à comunicação social). “Somos contra esta imigração descontrolada e pretendemos que alguém ponha um travão nisto”, argumentava Miriam, de 50 anos, orgulhosa militante do Chega que lamentava que “muitos tenham vergonha de dar a cara”. Ao mesmo tempo, dizia também “sentir cada vez mais insegurança” e dava o exemplo do caso de uma tentativa de abuso de uma criança em Armação de Pêra, embora não haja notícia de que o suspeito fosse um imigrante. “Como este há muitos outros, mas não falam deles”, disse, acusando a imprensa de estar “comprada” mas assegurando que a população e o Chega fazem o trabalhar de “passar informação”.

Histórias e argumentos semelhantes sucediam-se entre quem se encontrava na Alameda: Tiago Filipe, simpatizante de 31 anos que se começou a aproximar do Chega depois de se desiludir com o PSD de Rui Rio, disse não ser contra os imigrantes, mas “contra a maneira como a imigração está a ser feita”, e que promove uma “invasão” do país, incluindo de imigrantes que acusa de não se adaptarem ao país — “há imigrantes e imigrantes”.

O ex-combatente na guerra colonial Vítor Rios, de 74 anos, foi outro dos desiludidos do PSD — era votante social democrata desde a fundação do partido — que vieram parar ao Chega e, neste domingo quente, à Alameda, justificando estar contra a “imigração descontrolada” e a favor de “mais respeito e segurança no país”. Mais uma vez, disse estar “triste” com o que vê na comunicação social, que acusou de prejudicar o Chega, e frisou que os ex-combatentes se sentem abandonados: “Para nós não há nada. Ainda hoje arranjámos dinheiro, numa excursão, para uma protése” de um antigo companheiro, contou.

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Em parte, acredita que a culpa é dos imigrantes, embora o discurso misture vários fatores: acusou quem vem de fora de fazer “sujidade em Lisboa”, mas também os “governantes desde 2015”, de terem criado condições que já não lhe permitem “sair à rua com mulher e filhos para ver uma montra” sem que apareça o medo de que algum seja “assaltado e espancado por qualquer motivo na rua”. “Quando fui para a guerra para Moçambique fiz a minha obrigação, mas nunca tratei mal nenhum africano. E depois os meus filhos também emigraram”, contou. Rematou assegurando que os números que apontam para que Portugal seja um país seguro são usados por partidos como o Bloco de Esquerda para ganhar votos. Por ali perto passava um jovem com um cartaz escrito à mão: “Mãe, não sou racista como dizem na TV”.

Na concentração do Intendente, havia quem discordasse. À conversa com uma amiga, Mafalda Jacinto, que tinha estado na manifestação da véspera pelo direito à Habitação, disse ter-se decidido a juntar-se à concentração depois de ver os diretos televisivos do início da tarde e ficar “muito assustada”. “Ouvi o Ventura a falar e decidi vir, achei que havia muita desinformação e mentiras. Faz-se uma ligação absurda entre imigração e criminalidade que não é verdade, e estão sempre a falar de quem vem imigrar nas condições que sabemos — nunca se fala de nómadas digitais, etc. Pena que não haja educação suficiente, porque ser nacionalista é uma ideia tão arcaica”, disparou. “Ninguém faz mal a ninguém”.

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Os apelos de Ventura rumo à “reconquista”

A manifestação seguiu o percurso desenhado, com a linha da frente, liderada por André Ventura, a lançar cânticos como “Portugal, escuta, aqui não queremos burcas” ou “Portugal é nosso e há de ser até morrer”, tendo como pano de fundo cartazes contra a chamada “invasão migrante”. Perto dos dirigentes do Chega, um homem aproximava-se, entusiasmado, com um câmara na mão, anunciando: “Vejam a cara dos verdadeiros patriotas!”.

Com Ventura a frisar em várias ocasiões que a manifestação não era contra a imigração em si, ainda assim foram múltiplos os momentos em que referiu a quantidade de imigrantes em Portugal provocando fortes vaias na sua audiência ou em que manifestantes usaram o termo “remigração”, usado por grupos de extrema-direita para defender o retorno forçado de imigrantes aos seus países de origem.

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Sobre esses grupos, e nomeadamente sobre a presença de Mário Machado na manifestação, Ventura disse querer que “toda a gente venha por bem” e ter feito a “pedagogia permanente” sobre esta ser uma manifestação “pacífica”. E depois, reconhecendo que muitos imigrantes não vêm para causar insegurança, defendeu que o problema é a entrada de demasiadas pessoas: “A amálgama e a confusão de gente dá nisto”.

A manifestação, que em muitos momentos se assemelhava a uma grande arruada do Chega, com bombos e cartazes do partido um pouco por todo o lado, acabou com uma espécie de comício, com imagens de André Ventura a passar como pano de fundo, bandeiras de Portugal penduradas no palco — e no cinto de Ventura — e músicas em registo épico a intervalar as passagens do discurso do líder. Os agradecimentos aos responsáveis pela logística, segurança e organização dos autocarros também faziam lembrar um momento de campanha, momentos antes de o “speaker” Manuel Matias garantir que o Chega não tem medo de eleições.

Chegou então o momento do discurso final de Ventura, que foi entusiasmando os milhares concentrados no Rossio: “É a primeira vez em toda a enorme história de Portugal que milhares de pessoas saem às ruas para dizer que Portugal ainda lhes pertence, que quem não vem por bem tem de sair e que este país ainda é nosso”, começou por anunciar. E falou por “um país indignado”, sujeito a uma “invasão” a uma “insegurança nas ruas” que diz ser crescente.

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“Hoje não foi só uma manifestação, foi o primeiro sinal de que o país muda ou nós faremos mudar o país”, anunciou, num discurso dividido entre o “nós”, os militantes e simpatizantes do Chega, e o “eles”, que não queriam que a manifestação corresse bem 0u não querem que o Chega cresça — mas “não há força no mundo capaz de nos bloquear”, anunciou Ventura, perante um público êxtase.

Foi diante desse público que Ventura foi aumentando o tom da intervenção, falando para quem “sente que o país nos está a escapar das mãos”, que “estamos a perder o controlo das nossas ruas”, nomeando sem referências mais específicas “tiroteios”, “facadas” e um “caos” que diz estar instalado em Portugal.

“Não tenham medo. Eles vão invadir-vos de medo nos próximos meses, nos próximos anos. Mas as grandes transformações da História sempre aconteceram assim”, anunciou, lançando um grito repetido várias vezes: “Aqui mandamos nós!”. Para Ventura, este foi o tiro de partida de uma “grande batalha por Portugal”, uma “primavera lusitana” que chegará e levará à “reconquista da alma nacional”. Na mão segurava a bandeira “que há de ser nossa até morrer”. Os manifestantes, entre gritos e tentativas de chegar à fala com Ventura ou pedir uma fotografia ao líder, acabariam por ir dispersando ao som de “Conquistador”, dos Da Vinci, rumo aos autocarros que os levariam de volta a casa.

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