Levantavam-se cedo, às vezes na mesma casa, outras vezes cada um na sua, e esperavam por aquele “pling” que anuncia a chegada de um email ao ecrã do telemóvel. Tinham subscrito os alertas de todas as imobiliárias e de todos os sites que agregam os anúncios das casas disponíveis para arrendar em Lisboa. Algumas um pouco longe, outras um pouco caras, mas com a certeza de que em breve apareceria alguma coisa e poderiam finalmente viver juntos.
“Ao início, enquanto percorria as páginas de anúncios, ia também vendo mobília, decoração, ia planeando os pormenores, aquela possibilidade de ter o meu espaço com ele, dava-me energia. Agora é apenas um processo deprimente, mas necessário, porque não queremos desistir”, diz Sílvia, que tem 27 anos e trabalha numa loja no Chiado. Namora com Eduardo, 34 anos, fotógrafo e arquiteto a tempo parcial.
Começaram à procura de casa em outubro de 2016, e nem um nem outro poderiam sonhar que, chegados quase ao verão de 2017, ainda estariam a viver, não só separados, como tão longe de encontrar um T1 como estavam há sete meses. “Em abril dissemos que não a um senhor que estava a fazer obras numa casa, em Alcântara, e que só teria a casa pronta em julho ou agosto. Agora só faltam dois meses para essa data e nunca pensamos que ainda estaríamos à procura”, diz Eduardo ao Observador, sentado ao lado de Sílvia, numa esplanada do Príncipe Real, um dos bairros mais caros de Lisboa, onde há muito deixou de ser possível para este casal pensar viver.
O tempo foi passando entre viagens à “Outra Margem”, voltas pelas mercearias e cafés dos bairros de Lisboa tentado tropeçar num dos tais “achados” e agentes imobiliários dispostos a oferecer, além de opções de casas, “lições de moral por eu ainda estar a recibos verdes”, diz Eduardo. Os anúncios e as (poucas) casas que foram ver podiam arquivar-se todas em três categorias: casas em estado de conservação precários, casas longe de Lisboa ou casas com rendas muito acima das possibilidades do jovem casal.
“O volume de anúncios está a diminuir e, ao mesmo tempo, a rapidez com que as casas desaparecem é surreal. Ligas 15 minutos depois de o anúncio ter sido colocado na Internet e a casa já não está lá. Se for ao fim do dia, o telemóvel já está desligado. Os senhorios devem comprar um daqueles cartões SIM descartáveis, que só usam para aquele dia e depois deitam fora porque a voragem de telefonemas deve ser uma coisa impossível de aguentar”, ri Eduardo.
Em 2011, a primeira vez que veio viver para Lisboa, Eduardo alugou um T1 na Mouraria e, depois, um outro na Calçada do Combro, perto do Chiado, no centro de Lisboa — ambos por 450 euros. Agora vive num quarto, perto do Saldanha, por 350. A casa não tem sala e vivem mais seis pessoas com ele. Um T1 a 450 euros no centro de Lisboa é hoje em dia um “achado”, apesar de serem normalmente casas desenhadas para ocupação singular ou, no máximo, para duas pessoas.
Um parênteses para uma pesquisa rápida no Casa Sapo. Ali mesmo, através dos dados móveis do telemóvel, o que é que conseguimos ver? Um T1 em Arroios por 750 euros, um outro em Campolide por 1.200 e um outro, na Estrela, por 900 euros. Nenhum deles novo e as áreas variam entre os 50 e os 100 metros quadrados.
A vida de Eduardo acontece dentro do quarto, é ali que janta e ali que trabalha e isso está a deixá-lo “maluco”. Quando não está no Saldanha está na Estefânia, onde Sílvia vive, também com mais seis pessoas. “Pela natureza do meu trabalho acabo por fazer muita coisa a partir de casa e, como não há um espaço comum, estou muito no quarto. Trabalhares no sítio onde dormes, onde comes, não é mesmo nada saudável”, diz. O número de casas para alugar diminui todos os dias. É uma tempestade perfeita criada pela conversão de habitação anteriormente destinada ao arrendamento em alojamento local, para turistas, e pelo aumento da venda de prédios inteiros que depois se tornam hotéis ou hostels reduzindo também assim a oferta de apartamentos para arrendamento. E o aumento da procura não está só patente nas estatísticas, é uma coisa que lhes bate à porta.
“Sábados de manhã é certinho. Estou eu a arrumar ou a fazer o almoço e começam a tocar à campainha lá do prédio, já aconteceu tantas, tantas vezes. Tocam e perguntam se o apartamento é nosso, se estamos interessados em vender, se não é nosso de quem é e se sabemos, então, se o dono está interessado em vender. É que quem procura acha e alguém, eventualmente, lhes dará o contacto do proprietário, que pode muito bem optar do vender”, conta Sílvia.
O preço médio de aluguer de um apartamento já está nos 830 euros, 10 euros por metro quadrado ao mês, segundo dados da Imovirtual. O último estudo da consultora imobiliária CBRE confirma estes números e sublinha que o valor dos arrendamentos em Lisboa subiu 23% no último ano. Mediadores imobiliários estimam que, em algumas zonas de Lisboa, os preços do arrendamento tenham disparado entre 30% e 40% desde 2014, o ano em que as plataformas eletrónicas de arrendamento chegaram em força à capital. Só no último trimestre de 2016, as rendas subiram 14,6%, de acordo com o Boletim da Confidencial Imobiliário. Quando passamos para os imóveis novos, o valor médio é de 1070 euros mensais.
As zonas mais caras para arrendar casa em Lisboa são o Parque das Nações, onde a renda média ronda os 1080 euros, e as Avenidas Novas, onde os preços ascendem a 998 euros. Os dados da Uniplaces confirmam essa tendência, apesar de esta plataforma estar apenas destinada ao arrendamento de quartos, que, em Lisboa, registaram um aumento de preço perto dos 10%, bem superior ao apresentado pelos imóveis no Porto (3%). A culpa? É da procura, que cresceu 70%.
Mais uma pesquisa rápida, desta vez na página da Imovirtual, mostra um pouco desta realidade: há um T2 em Belém por 1.200 euros por mês, um T1 no Restelo por 850 euros, e um T2 em Campolide por 1.450 euros. Fica o aviso: é possível que estas ligações já não dirijam o leitor à casa em questão quando estiver a ler este artigo porque mesmo estas casas, com preços que estão muito acima de um ordenado médio português (913 euros, segundo a Pordata), são arrendadas em pouco tempo. Os potenciais inquilinos alimentam a “esperança” numa bolha que eventualmente rebente e obrigue o mercado a oferecer preços mais baixos, mas isso pode estar longe.
“Não há nem se prevê a médio prazo uma queda dos preços. Lisboa é uma cidade que está em todos os guias turísticos do mundo, com história e bairros antigos e pitorescos, mas ao mesmo tempo com bons colégios, hospitais, estradas, transportes: um cenário ideal para qualquer estrangeiro com algum dinheiro e há muitos nesta categoria. Além disso, Lisboa é uma cidade onde as casas são baratas para um francês, um suíço ou um americano com algum poder compra. Muito mais barata que Paris ou Londres”, diz um agente imobiliário da Century 21 ao Observador.
O que se passa em Lisboa, continua, “é uma cruel demonstração da regra mais básica da oferta e da procura”, que, “como em outros negócios”, acaba por obliterar a concorrência mais pequena. Enquanto “a possibilidade de fazer muito dinheiro existir, porque existe e a procura ainda é muito maior do que a oferta, os preços só vão aumentar”, completa.
Bolha? Qual bolha?
“Não pode haver bolha se a procura excede a oferta e é preciso não esquecer que nos países onde houve bolhas imobiliárias, como em Espanha ou nos Estados Unidos, as subidas de preços das casas estavam nos três dígitos”, diz Francisco Quintela, co-fundador da imobiliária especializada em imóveis de luxo Quintela e Penalva, comentando o facto de o Fundo Monetário Internacional (FMI) ter lançado o alerta para os perigos de uma bolha imobiliária em Portugal, já que os imóveis valorizaram 6,4% no último ano, o 15.º registo mais elevado dos países analisados.
Numa entrevista ao Diário Imobiliário, Francisco Quintela disse que, “em primeiro lugar, os bancos estão mais cautelosos e as pessoas também”; e, por outro lado, “os novos empreendimentos que têm sido construídos têm mais qualidade e são baseados em estudos de mercado sólidos”, o que resulta numa venda quase imediata das novas construções. O resultado é serem vendidos pouco depois de comercializados.
Ainda recentemente, Portugal foi considerado pelo segundo ano consecutivo o sétimo melhor destino para investimentos imobiliários na Europa, pelo relatório Emerging Trends in Real Estate Europe, um relatório da consultora PwC que analisa as vagas de investimento no imobiliário a nível europeu. “Estas análises consideram Portugal como um dos destinos mais aliciantes para se realizar investimentos imobiliários, o que por sua vez reflete que há muita procura e que os preços não são considerados demasiado elevados”, disse ainda aquele responsável.
Ao seu lado aparece também Luís Lima, presidente da Associação dos Profissionais e Empresas de Mediação Imobiliária de Portugal (APEMIP) que considera que o preço das casas é “elevado” em “algumas cidades do país”, mas descarta a existência de uma bolha imobiliária. “Em Portugal nunca vai haver uma bolha imobiliária. O que está a acontecer é que em algumas cidades do país, nomeadamente Lisboa e Porto, e numa parte do Algarve, há zonas específicas onde os preços, para mim, estão acima daquilo que é o valor razoável”, mas, acrescenta, “não podemos olhar para o imobiliário como sendo igual em todo o país”, disse Luís Lima depois da publicação do estudo do FMI.
O mesmo organismo ressalva que pode ainda não ser hora de entrar em pânico, mas vai deixando o aviso: Portugal integra um grupo de 18 países aos quais os autores do estudo chamam “dust and boom“, ou seja “queda e explosão”, aqueles onde as casas mais desvalorizaram tendo em pouco tempo ascendido a preços novamente bastante elevados. O estudo nota que esta evolução surge apesar da contração do crédito em Portugal e do quase congelamento dos ganhos médios no país e por isso alertam para o potencial impacto desta escalada na saúde financeira das famílias e nos riscos que possam vir a correr ao sentirem a pressão para adquirir um imóvel.
“Mesmo que os preços subam só devido à oferta, o impacto no endividamento das famílias pode ser adverso para a estabilidade financeira” uma vez que “se a subida de preços não encontra correspondente nos rendimentos das famílias” e “se a entrada de investidores estrangeiros continua a puxar os preços” as famílias “podem ser obrigadas a um maior esforço (risco) para comprar ou arrendar uma habitação”, alertam os economistas.
Lisboa está a mudar? Sim, “e isso é normal”
O conceito de “gentrificação” teve, desde a sua criação, “uma utilização caótica e muito frequentemente uma apropriação ideológica”, diz ao Observador Walter Rodrigues, professor e diretor do curso de Sociologia do ISCTE-IUL. A sua criação está “diretamente ligada à transformação de áreas residenciais urbanas da cidade de Londres, de composição social operária, em áreas predominantemente reocupadas por uma população com profissões intelectuais, científicas, artísticas e com elevadas qualificações académicas”.
Hoje, o conceito é usado de forma um pouco mais lata, mas continua a referir-se a um processo “de recomposição social”, iniciado em finais da década de 1950, que remete para uma “reestruturação urbana, que por sua vez era uma consequência da reestruturação económica, que afastou definitivamente as fábricas dos centros urbanos enquanto se assistia a um crescimento do terceiro sector económico”.
É um processo que está “a mudar Lisboa há algumas décadas”, pese embora a relativa lentidão das mudanças, que são agora um pouco mais evidentes devido ao turismo, um setor que foi visto — e concretizado — como uma ajuda para sair da crise. Por isso, o investigador argumenta que “o que se passa nos bairros históricos, e já fora deles, é um processo de profunda mudança que reflete a conjugação no mesmo tempo de fatores de mudança conjuntural, que se prendem com as tentativas de sair da crise que vem de 2008 e com as oportunidades criadas para o sector do turismo num país e numa cidade com as vantagens competitivas que tem, nesse sector e neste contexto particular”. Essas mudanças conjunturais passam pelo turismo, mas não param nele.
“O crescimento de sectores económicos que exigem qualificações de topo, o crescimento do leque de escolhas em matéria de estilos de vida, que passam pela valorização de determinados aspetos da vida urbana, do consumo às novas formas de residencialidade, mas também para um incremento da diversidade da ‘etnopaisagem urbana’ (consequência da atual fase da globalização)” são tudo fatores que convergem no sentido de uma recomposição do tecido social e urbano das cidades.
Para Walter Rodrigues é importante que o estudo destas modificações não seja apropriado pela ideologia. Para o professor, as discussões sobre “desertificação” e “desaparecimento das gentes de Lisboa” está “estafada”.
“É preciso dizer isto sem rodeios: a queixa da ‘desertificação dos bairros históricos’ prende-se com uma noção de cidade em que numa parcela muito significativa havia sobreposição num mesmo espaço de todas as funções urbanas: trabalho, residência, consumo, etc.. Ora, essa cidade já não existe, ou quando existe é uma reinvenção de novos residentes, com novas profissões e novos estilos de vida. A população que abandonou os bairros históricos foi maioritariamente uma população jovem que protagonizou um processo de mobilidade social ascendente quando rumou às periferias. A que permaneceu foi, essencialmente, a mais idosa e com menos qualificações escolares e profissionais”.
Na sua opinião, a conceção de “lisboeta”, de “gentes locais” e de bairro histórico “está na base de muitos argumentos que se vêem difundidos, até por especialistas, que têm uma noção equívoca do conceito de identidade e de vida urbana”, porque “as cidades, como as sociedades, como as identidades não são estáticas”.
“Esses bairros históricos ficaram, assim, com um flanco de oportunidades para o mercado imobiliário e para a procura de novos residentes. No caso de Lisboa, as características urbanísticas de uma parte significativa dos bairros históricos reduz o leque da sua procura, sendo sobretudo procurados por jovens em início de vida independente, novos imigrantes, arrendamento turístico.”
Para Eduardo este processo afeta “toda a cidade” o que cria, “mesmo sem ser essa a intenção direta de quem vende ou arrenda a preços elevados”, uma espécie de “barreira social”, impenetrável não só aos mais pobres mas mesmo aos que têm “rendimentos médios”. Sílvia completa: “É a ganância normal de quem esteve muito tempo inerte pela contenção orçamental, sem possibilidade de vender ou rentabilizar os seus bens. Agora querem aproveitar tudo, sofregamente, porque pode vir aí uma bolha, porque esta bonança pode não durar, porque é urgente aproveitar esta onda de investimento, porque em Portugal não se pensa muito no dia de amanhã”. As fotos das filhas de Madonna com camisolas do Benfica, calçada portuguesa debaixo dos pequenos pés e legendas como “onde a vida começa” ajudam à promoção do país, mas não é certo que ajudem a acalmar a situação.
Para o casal, há muita coisa a convergir para esta situação. Não são apenas os turistas, ou os investidores estrangeiros ou os senhorios que, findos os contratos, não renovam e sobem as rendas até “onde der”. É tudo isto, e tudo isto “só pode ser controlado pelo Estado”, defende Eduardo. Diz que está “triste e preocupado” e não apenas porque gostava de ter uma casa para viver com Sílvia. É que “há uma sensação de cada um por si” que o “assusta” e o deixa “um pouco desanimado com o futuro disto a que chamamos comunidade”.
“Como o [Michael] Fassbender comprou uma casa em Alfama e a Madonna foi vista por aí a sondar o preço das quintas em Sintra, as pessoas colocam as suas casas a arrendar por valores risíveis à espera de uma sorte dessas. Toda a gente pensa que vai aparecer uma Madonna a quem arrendar a casa“, diz Eduardo.
“Segundo terramoto de Lisboa”
Leonor Duarte, psicóloga e fundadora da Academia Cidadã, parte do movimento Morar em Lisboa, diz que o que se está a passar em Lisboa é “um segundo terramoto”. A diferença é que os terramotos não são premeditados e esta convulsão, na sua opinião, não foi apenas uma fúria da natureza. “Estas coisas não acontecem por acaso: há uma promoção da cidade de Lisboa como um centro para o investimento estrangeiro, querem Lisboa concorrida, cosmopolita, limpinha. Um terramoto é uma coisa destrutiva e, depois de acontecer, normalmente há uma limpeza e constrói-se de novo. É mais ou menos essa a intenção”, refere Leonor Duarte, de 45 anos, ao Observador.
“Eu sou igual a qualquer arrendatário em Lisboa: vivo em Alfama, estou em perigo e estou com medo. O meu contrato pode não ser renovado, mesmo que ainda ninguém me tenha dito que é essa a intenção. Não acredito que haja alguém a arrendar casa nas zonas mais centrais que neste momento possa dizer que não se preocupa com o seu futuro. Não existem contratos estáveis, até porque eles agora são quase todos de um ano ou menos. O medo é generalizado.”
As conclusões da ativista baseiam-se nos emails que a Morar em Lisboa recebe, e que são “cada vez mais”. Segundo conta Leonor Duarte “há pessoas que escrevem emails ‘a gritar’, entre aspas, porque receberam uma carta do senhorio a dizer que o seu contrato não será renovado”. É preciso depois entender exatamente qual a situação do inquilino e muitas vezes, conta, “estas cartas são enviadas às vezes um ano, um ano e meio antes de o contrato acabar”.
São uma espécie de “carta com medo dentro”, diz, porque “os avisos de fim de contrato não têm qualquer fundamento legal se não forem enviados 120 dias antes do fim do contrato”. E, portanto, se por um lado podem ser olhados como benéficas, uma vez que dão mais tempo aos inquilinos para encontrarem nova morada, acabam por ser vistos por muitas pessoas como uma espada pendurada em cima da cabeça.
Foi precisamente uma dessas cartas que fez soar o alerta no número 25 da Rua dos Lagares. Há cerca de um ano, as 16 famílias, cerca de 35 pessoas, que habitam este prédio na Mouraria — na verdade, a meio de uma rua que divide Mouraria e a Graça — receberam uma carta a avisar que o prédio tinha sido vendido e que os seus contratos não seriam renovados.
Todos juntos, e depois de uma reunião no café do bairro, foram à Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, que prometeu apoio jurídico, escreveram cartas a Fernando Medina, Presidente da Câmara de Lisboa, que ainda não respondeu, a António Costa, primeiro-ministro, que lhes respondeu a dizer que o caso está a ser analisado, e a Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República, que lhes disse que o melhor seria encontrarem um advogado para mover um ação coletiva, caso existissem bases legais para isso.
Não é certo que existam. O prédio foi vendido e agora é da Iberaquisições, uma empresa de aquisição de imóveis e o que se diz no prédio é que o novo proprietário, que nenhum dos inquilinos conhece, pensa reconverter o imóvel em alojamento local. A empresa não respondeu aos contactos do Observador e por isso não foi possível confirmar a intenção dos novos proprietários, que, de resto, não têm que dar justificações, perante a lei, sobre o que fazem com os seus imóveis.
Já há, contudo, quatro frações reservadas a este modelo de arrendamento que foram reconvertidas, porque os inquilinos decidiram sair antes do fim dos seus contratos: no número 1 da Travessa do Terreirinho o 1.º e o 2.º direito estão destinados a alojamento local e, no número 3 e no número 5, dois prédios que só têm um apartamento cada por causa da inclinação da rua, ambos estão também apenas disponíveis para arrendamento turístico. Fazem parte do número 25, que é um prédio que ocupa uma rua e duas travessas.
Carla Pinheiro vive na Mouraria desde sempre, 47 anos portanto, e neste prédio há 10. O filho cresceu aqui e também perdeu o pai aqui. Na parede em frente à travessa dos Lagares eles ainda estão juntos, a jogar futebol, nas fotografias tiradas entre 2009 e 2011. É um mural a preto e branco ao qual Carla chama “o mural dos pré-históricos” porque os que ainda não morreram “estão na mesma em vias de desaparecer”.
É um tema que emociona toda a gente. A conversa ainda só vai na parte burocrática e Rosário Conceição já está a chorar, olhos postos em Carla. “Eu prometi ao marido desta miúda que tomava conta dela e do filho dele, prometi-lhe no caixão e agora se me tiram aqui de ao pé dela o que é que eu faço? Como é que eu cumpro esta promessa?”, pergunta Rosário que dali a pouco tem que voltar para o armazém de distribuição de mercadoria chinesa onde trabalha. Carla, por seu lado, acabou de chegar do seu turno como encarregada de limpeza num hotel do Martim Moniz. Agora tem que ir para a casa ficar com a mãe, que tem 85 anos, está praticamente cega e não pode estar sozinha. Daqui a pouco, Nelson chega da escola e há que fazer o jantar. E porque Carla já está ciente de que vai ter mesmo de sair da casa onde vive, já começou a fazer prospeção de mercado. “Os T2 que tenho visto passam os 900 euros e eu, pelo menos para o meu filho, tenho que ter um quarto, mesmo que eu durma com a minha mãe”, conta Carla, que tem 48 anos recebe um ordenado mínimo.
À frente de Carla, no 1.º direito, está Rosário, de 54 anos, habitante do número 25 há sete e da Mouraria desde sempre. Costumava viver em frente, num T1 com Carlos, seu marido, mas decidiram adotar Marlisa, agora com 7 anos, e começaram um ambicioso plano de remodelação para receber a bebé. Alugaram o andar abaixo do seu, do mesmo senhorio, e ligaram os dois. Os preparativos afundaram a família em dívidas. Iam pedindo créditos para pagar outros e “às tantas só pagavam juros”. O tribunal fez-lhes um plano de reestruturação da dívida que pagam “religiosamente” todos os meses, mas depois disso e da renda não sobra muito.
Marlisa irrompe da porta do prédio em direção à mãe. Diz que esteve a ouvir a conversa da janela e começa a chorar, aos soluços, que não quer sair daqui. Enumera uma data de amigas e amigos e sai a correr pela Rua dos Lagares fora, à procura deles. “Agora vai ter com eles e esquece mas é só até se voltar a lembrar”, diz Rosário. “Eu já não lhe posso dar propriamente uma vida de luxos e agora ela pede-me para lhe prometer que ficaremos na única casa que ela conhece e é só mais uma coisa que eu não posso assegurar”, diz.
Constância Lopes, do rés-do-chão esquerdo, ainda não sabe se terá que sair porque lhe disseram que a lei não permite o desalojamento de alguém com mais de 65 anos, só se ela deixasse de pagar a renda. É de facto isto que diz a lei, mas ficar aqui sem nenhuma das pessoas que conhece “não seria a mesma coisa”. No 2.º esquerdo vive a família Bernardino. Olinda vive nesta casa há mais de 50 anos, veio para aqui com 9.
A mãe era a cabeleireira mais requisitada do bairro e ela também o foi durante mais de 30 anos. Ainda tem tudo montado, mas o salão já não funciona. Casou com Gentil Bernardino, de 68 anos, e teve uma filha já com 42, Lara, que agora tem 23. Na casa dos Bernardino ainda vive São, cunhada de Olinda, e Solange, filha de São. É uma casa apertada, tetos baixos e colchas e renda por cima das camas, um sótão com escadas de acesso totalmente na vertical, onde Lara dorme. “Eu não entendo muito bem isto, porque isto é um bairro, não é o Chiado com monumentos e igrejas e lojas famosas. Isto é um sítio residencial não faz sentido que isso se perca para uma população sazonal que não vai fazer disto a sua casa”, diz Lara que come rápido para ir trabalhar para a Baixa.
Olinda diz que não tem nada contra a habitação turística mas que isso “não pode colocar as famílias em causa”. E o problema é que já nem há comércio, e mesmo os turistas já notaram isso. “Não é só o problema da habitação, o comércio tradicional também está a desaparecer. Os prédios já não têm lojas por baixo, nós aqui até tínhamos uma loja que vendia galinhas e coelhos, isso já foi há muito tempo mas até há pouco existia uma mercearia e uma loja com os vegetais mais frescos de toda a Mouraria”, diz Olinda.
Carla lembra um dia em que estava a estender a roupa e que um turista francês lhe perguntou, improvisando ele o português e ela o francês, onde estavam as varandas cheias de roupa que se viam nas fotografias de Lisboa. “Pois, olhe, agora é só hotéis e esses têm lavandaria”, disse ela.
A família de Olinda vive com a pensão de Gentil, de 400 euros, tem duas jovens em casa, uma delas na Universidade, e é apenas o ordenado dele e o de São, que trabalha numa livraria, que sustenta a casa. Um T3 onde as duas jovens dividissem um quarto, na mesma área, pode custar perto de 2.000 euros.
“Os pequenos empresários de alojamento local não são sanguessugas”
O alojamento local foi a salvação de muitas famílias, cerca de cinco mil, segundo a Associação do Alojamento Local de Portugal, que, nos anos mais críticos da crise, conseguiram assim equilibrar as suas finanças. É o caso de Sofia Santos, de 35 anos, que tem um apartamento arrendado perto do Miradouro da Graça que deixou de pagar quando o escritório de arquitetos onde trabalhava resolveu reduzir a equipa. Como não estava nos quadros, acabou por sair, tal como mais dois outros empregados. “Era impossível pagar a renda sozinha. Fiquei desempregada em 2015, pouco tempo depois de ter acordado com os proprietários um aumento de renda de 600 para 750 euros pelo T2 que dividia com o meu namorado. Era impossível apenas uma pessoa suportar aquela renda e se não tivéssemos colocado o outro quarto a arrendar teríamos que nos mudar”, diz.
Mudar, contudo, não era opção, porque o namorado de Sofia tem a mãe bastante doente, e precisa de estar perto dela. A solução passou por alugarem um dos quartos da casa, com autorização do senhorio. Sofia entretanto está a trabalhar. Reconhece as dificuldades de arrendar um apartamento, e que o turismo está a tirar lugares a pessoas que queiram viver em Lisboa, mas foi esse turismo que lhe permitiu manter a casa onde vivia.
Xana Libano, programadora cultural de 40 anos, começou por sub-arrendar uma casa na Mouraria, de onde se mudou depois de ter um filho porque a casa tinha acessos difíceis. Reparou que o senhorio tinha intenção de rentabilizar a sua propriedade através do arrendamento turístico e propôs geri-la, pagando uma renda e assinando um contrato com possibilidade de arrendar a terceiros. Esse dinheiro extra possibilitou-lhe fazer uma pausa no trabalho a tempo inteiro e investir na família. “Na altura foi este pequeno negócio que me possibilitou dedicar-me ao meu filho, ter uma vida mais sossegada e mesmo assim ser independente financeiramente“, diz Xana.
“Alguns proprietários percebem que há este potencial, mas não querem ser eles a fazer a exploração do negócio e a arriscar com a sazonalidade. É um negócio como outro qualquer, que envolve renovar e melhorar os apartamentos e que acarreta custos”, acrescenta Xana, que considera que os meios de comunicação social “diabolizam” o alojamento local mas que este modelo de negócio ajuda muita gente que precisa de completar o seu rendimento e dinamiza as zonas onde se insere. “Os pequenos empresários de alojamento local não são umas sanguessugas oportunistas. Estão dispostos a pensar no melhor para o território ou bairro onde intervêm. E não enriquecem com este negócio. É apenas uma oportunidade de negócio que acaba por resultar quase sempre no desenvolvimento do próprio bairro ou rua”, diz Xana.
Com a nova proposta de lei de dois deputados socialistas para o alojamento local, que prevê que sejam os condóminos a decidir se um determinado prédio pode ou não ter frações destinadas a alojamento, as opiniões voltaram a dividir-se. O presidente da Associação Lisbonense de Proprietários (ALP), Luís Menezes Leitão, diz ao Observador que “o projeto do PS é precipitado e muito radical — as assembleias de condóminos têm a responsabilidade de gerir espaços públicos, não de ditar o que cada proprietário faz com o seu apartamento”.
Garantindo que a “grande maioria dos apartamentos em Lisboa são alugados a longo prazo” e que apenas “cerca de 45 mil” são destinados ao alojamento local, Luís Menezes Leitão rejeita que a culpa da escassez de casas para arrendar seja deste modelo de alojamento. “As rendas estão a disparar porque o mercado de arrendamento esteve congelado anos e anos e enquanto as rendas não foram liberalizadas os senhorios preferiam sempre vender”.
“O arrendamento é um negócio de risco em Portugal, há gente que simplesmente não paga as rendas e um processo de despejo pode demorar um ano a ser concluído enquanto que, nesse espaço de tempo, o senhorio não tem como reaver o seu imóvel.” Na opinião de Menezes Leitão, há bairros no centro onde a escassez de oportunidades de arrendamento acessível “é uma realidade”, mas, defende, no resto de Lisboa isso ainda não se verifica.
O presidente da ALP diz também que todo o investimento em reabilitação que Lisboa tem experimentado é “muito benéfico” e que “não teria acontecido se os senhorios estivessem a cobrar rendas muitas pequenas”. “Só existe um interesse na reabilitação urbana porque o mercado oferece vantagens em reabilitar para arrendar ou vender”, conclui. Está a comprar-se mais e isso também reduz o número de frações disponíveis.
O retorno do acesso mais fácil ao crédito, as taxas de juro em baixa e os spreads dos bancos um pouco mais contidos fizeram disparar os créditos à habitação. Uma renda pode hoje ser equivalente ou até mais alta do que uma prestação ao banco. O facto de Portugal estar a atrair cada vez mais turistas, se bem que com incidência em focos geográficos específicos como Lisboa, Porto, e Algarve, tem levado os portugueses a apostar em casas para arrendar.
“Enquanto no arrendamento tradicional se consegue uma taxa de rendimento da ordem dos 4% ao ano, no arrendamento turístico chega-se facilmente a taxas de 10% ou até mais”, disse Miguel Poisson, presidente executivo da ERA, ao semanário Expresso. Segundo a OCDE, Portugal é o país onde o preço das casas mais desvalorizou desde o ano 2000 — cerca de 26%. Ou seja, a atual valorização das casas, aliada ao potencial de rentabilizar o investimento através do mercado de arrendamento, torna o mercado imobiliário nas grandes cidades bastante atraente. Segundo o Global Property Fund Index, num universo de 32 países analisados, Portugal está entre os países que geraram retornos mais elevados em 2015.
De dois a dez mil apartamentos para alojamento local
Até quem trabalha no ramo imobiliário é apanhado desprevenido quando tenta alugar uma casa. A diretora de uma imobiliária em Lisboa aceitou contar ao Observador a sua própria experiência, tanto a pessoal como aquela que adquiriu trabalhando na área, desde que o pudesse fazer sob anonimato. Diz que “a mínima perceção” de que ela possa estar “contra os proprietários” ou “preocupada com a situação do alojamento local” pode levá-la a perder a confiança dos clientes.
Conta que “também sofreu na pele as mudanças bruscas no mercado” e entendeu que “é uma situação que afetava cada vez mais pessoas”. Desde 2009 que vivia no Saldanha, onde arrendou um último andar — tipo loft — por 650 euros.
Na altura os amigos acharam “caríssimo”, mas como a casa era o que pretendia e considerava o valor justo, avançou. “Após o primeiro ano de contrato, a renda já tinha subido para 750 euros, mas mesmo assim a minha senhoria não pareceu satisfeita. Disse-me que gostava de fazer a experiência de arrendar a turistas e perceber quanto poderia ganhar”, diz. Em meados de 2014 a senhoria disse que queria terminar o contrato porque precisava da casa, mas mais tarde veio a colocá-la no Airbnb e recusou a proposta de aumento de renda para 1.000€ por achar o arrendamento a turistas mais lucrativo e conveniente.
“Fiquei triste, porque tinha sido cumpridora, tinha cuidado da casa, estava ali há vários anos e assim, de repente, estava sem a minha casa”, conta a responsável, que considera que o arrendamento se tornou um negócio “frio”, onde as pessoas “cada vez contam menos” e que, apesar dos inúmeros benefícios trazidos pelo turismo e investimento estrangeiro, a cidade parece ter perdido um pouco a noção de qual é a sua função principal: “Ter pessoas a viver nela”.
Apesar de o Saldanha não ser uma zona tão turística como a Baixa, já começa a sentir-se também a pressão. O preço médio de um quarto perto das Avenidas Novas na plataforma de alojamento local ronda os 73 euros por dia. Zona onde esta agente imobiliária chegou a arrendar um T2 por 1.500 euros, antes de o mesmo apartamento ser alugado em janeiro de 2017 a um estrangeiro por 3.000 euros por mês. Atualmente, são diversas as pessoas que a procuram com histórias semelhantes. As circunstâncias não afetam apenas as rendas mais baixas, a maioria dos clientes são de classe média com contratos de arrendamento a terminar, na ordem dos 600 a 1.000 euros.
Quase todos já procuraram sozinhos e viram as suas tentativas de arrendamento frustradas. Jovens médicos, advogados, consultores, que sempre residiram no centro em casas arrendadas, por estarem numa fase inicial de carreira, também estão a ter dificuldades. “Alguns tentaram ganhar tempo, optaram por suportar uma renda mais elevada durante um ano enquanto procuram a casa que irão comprar, não sentem confiança no mercado e em tomar decisões sob pressão e sem aconselhamento”, acrescenta ainda.
Em 2009 existiam dois anúncios de casas disponíveis para arrendar na plataforma Airbnb. Hoje são cerca de 1o mil frações disponíveis. A própria empresa disponibiliza, mediante pagamento, vários gráficos sobre a evolução da sua presença nas principais cidades do mundo. Este gráfico, feito a partir de números da página AirDNA, mostra os números relativos a Lisboa.
Só em Lisboa, a Airbnb registou no ano passado 718 mil hóspedes, que geraram uma faturação de 72 milhões de euros para os proprietários dos imóveis. Segundo um inquérito da Airbnb, os hóspedes que ficaram alojados em Lisboa gastaram ainda 404 milhões de euros, deixando um impacto na economia da capital da ordem dos 476 milhões de euros.
Também Maria e Nuno Brazão, com 36 e 37 anos respetivamente, e cujo agregado familiar dispõe de um rendimento cerca de um terço superior à média registada em Portugal (cerca de 28.700 euros por ano segundo dados do portal Pordata), estão a ter muita dificuldade em encontrar uma casa maior, para expandirem a família. Atualmente vivem em Campo de Ourique. Ela é da área de comunicação na MEO, ele diretor de projetos na PT e estão “está sempre à espera que o senhorio se vá informar dos preços que se estão a praticar no bairro” e lhes peça um aumento equivalente. Quando começou a reparar “nos preços que se cobram por garagens em Campo de Ourique”, decidiu começar à procura de alternativas.
A ideia, ao início, não era comprar — era só mudar para uma casa maior, ficar no centro de Lisboa, mas os preços “são uma autêntica loucura”. Maria admite que a família não tem as mesmas restrições orçamentais que outras pessoas que também possam estar à procura de uma casa maior, mas mesmo assim tudo o que viu para arrendar significaria “dar mais de metade do rendimento para renda“, uma espécie de “linha vermelha” para a família, que “prometeu a si mesma” que o dinheiro seria usado para lazer, viagens, cultura, e outras experiências.
“Não há quase casas para arrendar porque quem tinha prédios inteiros, aqui na zona, vendeu-os. E agora as únicas coisas disponíveis ou são mesmo muito caras, de luxo, ou são, por exemplo, casas com áreas de T2 que se anunciam como T3, mas que depois vamos ver e dois dos quartos são interiores, como já nos aconteceu. Já não é certo que, mesmo as casas mais caras, tenham aquelas condições que se esperavam desses preços”, conta Maria, que decidiu começar a procurar casa para comprar na zona de Arroios ou Penha de França. “É que entre arrendar um T3 por 1.500 euros ou pagar 700 por um empréstimo à habitação, não restam muitas dúvidas”.
Último recurso: a “carta violino”
À porta da Associação dos Inquilinos Lisbonenses (AIL) está uma senhora de braço dado com a filha, ambas abaladas pela conversa no gabinete de um dos funcionários. Vive na zona do Intendente e que, de há um ano para cá, conta, não tem tido sossego. Faz 65 anos em novembro e, porque as pessoas com mais de 65 anos estão protegidas do aumento das rendas e da transferência de contrato, a menos que isso seja acordado entre ambas as partes, acusa o senhorio de ter feito tudo para a retirar de casa antes de completar essa data. “Quer que eu saia porque tem que alugar a casa por mais dinheiro, porque os valores do mercado estão muito mais altos e eu tenho medo porque ele telefona e escreve cartas e depois volta a telefonar, e pressiona-me e isto é todos os dias”, conta.
O secretário-geral da AIL está a olhar para ela e a abanar a cabeça. “As pessoas não podem assinar coisas sem falarem connosco ou com um advogado, porque depois ficam sem armas legais com as quais lutar”, diz António Machado. O próximo, e último, passo, é agora a redação daquilo que por aqui já se chama “a carta violino”, um apelo à compaixão dos senhorios, uma última tentativa, mas sem força legal.
A associação que António Machado dirige está assoberbada de pedidos de ajuda. Gente que pede ajuda para declarar carência financeira e impedir o aumento da renda, outros que trazem as cartas dos senhorios a informá-los de que os seus contratos não serão renovados, outros que receberam, por baixo da porta, panfletos de alguma agência imobiliária a perguntar se o proprietário quer vender o apartamento e acham que aquilo quer dizer que a casa vai ser vendida. “O que se passa em Lisboa é uma subversão significativa do uso dos prédios para habitação, que pressiona as pessoas nas zonas mais centrais de Lisboa a saírem dos seus bairros e isso afeta particularmente os mais idosos e os mais fragilizados”, diz António Machado no seu gabinete na sede da AIL.
Dos problemas passa logo para as suas propostas de solução, que não divergem muito das que são defendidas pelas associações que têm surgido nos últimos anos com a intenção de alertar para aquilo que consideram um problema de falta de casas para arrendar.
Propõe, por exemplo, que se reservem pelo menos metade das frações de um prédio para arrendamento de longa duração, que os impostos sobre o alojamento local subam dos 13%, quando os que são cobrados aos senhorios que arrendam fora desse modelo são de 28%, que se construa mais habitação e que a Câmara seja chamada a intervir quando um prédio que está licenciado para habitação passa a alojamento.
A lei que acaba com os limites mínimos dos contratos de arrendamento, que neste momento são de “0 a 30 anos”, também são, segundo António Machado, um problema. “A larga maioria dos contratos celebrados hoje em dia em Lisboa tem a duração de um ano apenas, mas nem a esse mínimo o senhorio está obrigado”. Quem tem que resolver estes problemas, na sua opinião, é a Câmara Municipal, porque apesar de existir uma lei que permite que o alojamento local seja considerado habitação, as coisas “têm que ser analisadas ao nível local”.
“Se a Câmara reconhece que 70% das famílias não têm acesso ao arrendamento nem ao crédito, que a oferta está a decrescer todos os dias, então é uma obrigação de quem decide que haja oferta, porque eu não sou contra a existência de propriedade, sou é contra as ameaças à coesão social e ao abandono dos nossos bairros”, resume António Machado.
Fernando Medina, presidente da Câmara Municipal de Lisboa, frisou isso mesmo quando anunciou a construção de entre cinco e sete mil novos apartamentos com rendas abaixo dos valores do mercado. Por outro lado, a Ordem dos Advogados nota que, apenas em 2016, foram despejadas quase 1800 famílias através do Balcão Nacional do Arrendamento (BNA), que processa e oficializa os pedidos de despejo por parte dos senhorios, por falha de pagamento de pelo menos duas rendas.
O sociólogo Walter Rodrigues diz que “o arrendamento urbano para fins turísticos tem vantagens claras para a economia da cidade e do país”, mas concorda que faz falta “uma mais eficaz regulação desse setor para haver equilíbrio e razoabilidade” — uma regra “válida para a economia em geral”, porque “um mercado sem regras não é um mercado, é apenas um caos de que alguns se aproveitam sem benefício de todos, isto é, do bem comum”.