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Em mais de 20 horas à deriva no mar, Érica entrou em modo de sobrevivência: “Pode ter rido, chorado e gritado”

Numa situação limite, qualquer pessoa entra em modo de sobrevivência, devido à ativação das hormonas do stress. Foi o que terá acontecido com Érica para suportar mais de 20 horas sem comida nem água.

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O caso de Érica Vicente teve contornos de filme de sobrevivência. Depois de mais de 20 horas à deriva no mar em cima de uma prancha de paddle, a jovem de 17 anos foi resgatada com vida. Vestia apenas um biquíni e passou todo aquele tempo sem comida nem água. Acabou por ser encontrada por um navio mercante e transportada pela Força Aérea para o hospital de Faro, numa operação de salvamento que foi “muito complexa” e cujo desfecho poderia ter sido bem diferente. Quem o diz é João Afonso Martins, comandante local da polícia marítima de Vila Real de Santo António e Tavira, que destaca que nestas circunstâncias casos com finais felizes são raros. Mas, afinal, por que estados passa uma pessoa que se vê exposta a condições extremas e como é que se explica um desfecho positivo como o de Érica?

Perante o sucesso da operação de resgate — na qual estiveram envolvidos durante o fim de semana meios terrestres, marítimos e aéreos — o psicólogo João Veloso destaca a resistência da jovem e a capacidade que o cérebro humano tem para enfrentar situações limite. Já Armindo Ribeiro, médico especialista de Medicina Interna, lembra que nestas circunstâncias o corpo humano, “a máquina mais perfeita que nós temos”, ativa os mecanismos de defesa ao seu dispor para garantir a sobrevivência.

Érica, a jovem que sobreviveu durante mais de 20 horas à deriva no mar, já teve alta do hospital de Faro

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Por que estados passa o ser humano numa situação limite?

Rir, chorar, gritar. Numa situação limite, de grande imprevisibilidade ou perante o desconhecido, qualquer pessoa passa por diversas fases e estes são alguns exemplos de manifestações que o ser humano pode ter, explica ao Observador o psicólogo João Veloso, do Centro de Trauma da Universidade de Coimbra. Todas estas situações são suscetíveis de acontecer num caso como o de Érica Vicente, que no sábado passado foi dada como desaparecida por volta das 20h no mar do Algarve, na zona de Vila Real de Santo António, e só foi encontrada já durante a tarde de domingo, em estado de hipotermia e desidratação.

“Durante o processo em que a jovem está à deriva naquela prancha, à partida, existe o potencial de passar por imensos estados. Pode rir, pode chorar, gritar, pode ficar imóvel, sem fazer nada, pode ficar agitada. Todos este tipo de situações são possíveis de acontecer e, provavelmente, algumas aconteceram“, refere João Veloso.

"São situações absolutamente limite. Durante aquele tempo em que a jovem esteve nestas circunstâncias nós, deste lado, imaginamos que tudo lhe passou pela cabeça. E ao passar tudo pela cabeça ela foi conseguindo autorregular-se."
João Veloso, psicólogo

No seu conjunto, explica o psicólogo, todas estas manifestações são regulatórias, estratégias que permitiram otimizar a sobrevivência: “Ajudaram a jovem a conseguir autorregular-se o suficiente para aguentar em cima daquela prancha, aumentando dessa forma a possibilidade de ser encontrada“. “São situações absolutamente limite. Durante aquele tempo em que a jovem esteve nestas circunstâncias nós deste lado imaginamos que tudo lhe passou pela cabeça. E ao passar tudo pela cabeça ela foi conseguindo autorregular-se”, resume.

Como atua a mente e o corpo humano numa situação limite? É possível desligar-se da situação?

Érica Vicente esteve toda a noite de sábado, a manhã e grande parte da tarde de domingo à deriva no mar, acabando por ser encontrada a cerca de 48 quilómetros (25 milhas) da posição inicial. Durante as mais de 20 horas em que esteve desaparecida, exposta ao frio da noite e ao calor do dia, nunca largou a prancha de paddle, a sua tábua de salvação. Neste período o seu corpo entrou em modo de sobrevivência, ativando mecanismos de defesa e, assim, diminuindo os gastos energéticos.

Segundo Armindo Ribeiro, médico especialista de Medicina Interna, esta diminuição dos gastos energéticos é um dos principais mecanismos de defesa do ser humano para permitir suportar tantas horas sem comer ou beber água. Nestas situações, diminui-se o metabolismo e aumenta-se a produção das hormonas de stress, que deixam o corpo em estado de alerta e promovem a sua proteção. No entanto, à medida que o tempo passa e com a diminuição da capacidade nutritiva das células, o corpo vai perdendo essa capacidade e a pessoa vai-se sentido cada vez mais fraca, podendo acabar por desfalecer.

Também o cérebro “está preparado para sobreviver”, explica ainda o psicólogo João Veloso, destacando que a experiência de sobrevivência é tão antiga “como a existência da espécie humana”. Mesmo numa situação limite, a mente é capaz de encontrar formas para descansar e desligar-se da situação presente.

“Há um fenómeno psicológico muito intenso e que é muito útil em determinadas circunstâncias, um processo dissociativo (…). Permite simular junto do cérebro que eu estou ali, mas não estou, vai fazendo uma espécie de on e off e que, tendencionalmente, para que a pessoa consiga sobreviver, a leva para situações onde o desconforto daquele momento não está presente“, aponta. Um processo de proteção que nem sempre o indivíduo têm consciência.

Que elementos foram determinantes para a sobrevivência?

Perante o sucesso do resgate, vários responsáveis que estão a acompanhar a situação de Érica Vicente têm destacado a resistência da jovem, numa situação cujo desfecho se previa muito diferente. A pediatra Elsa Rocha, chefe da equipa que a avaliou à chegada, descreveu a jovem como “uma guerreira”, enquanto Horácio Guerreiro, diretor clínico do hospital de Faro, destacou tratar-se de uma jovem resistente, “muito tranquila” e com uma “perspetiva otimista”, confessando que este é um caso que “surpreende” toda a gente.

O facto de ser uma rapariga jovem e saudável, de acordo com o médico Armindo Ribeiro, foi determinante para a sobrevivência de Érica. “A idade ajudou a superar seguramente a situação, mas eventualmente a sua experiência pessoal e o facto de se ter segurado na prancha, bem como não ter estado submersa, em contacto direto com o mar, também.” Aponta, dizendo que mesmo assim a probabilidade de um desfecho negativo era, à partida, superior.

"A idade ajudou a superar seguramente a situação, mas eventualmente a sua experiência pessoal e o facto de se ter segurado na prancha, bem como não ter estado submersa, em contacto direto com o mar, também."
Armindo Ribeiro, médico especialista de Medicina Interna

Um fator que merece especial destaque foi, como já tinha apontado na segunda-feira o comandante local da polícia marítima de Vila Real de Santo António e Tavira, ter estado sempre em cima da prancha e não em contacto direto com a água. “O facto de nunca a ter largado aumentou a capacidade de flutuação e de suportar o frio, estando dentro de água seria muito pior”.

Paradoxalmente, foram precisamente as características deste tipo de prancha, que são mais influenciadas pelas correntes do mar do que pelo vento, que dificultaram o cálculo da posição em que a jovem se encontrava. “Aquilo que foi uma vantagem em termos de sobrevivência torna-se uma desvantagem em termos de cálculo de posição estimada”, explicou. Segundo o comandante, nenhum dos modelos desenvolvidos pelas autoridades apontava para uma distância tão longa, apesar da área de buscas estimadas chegarem à posição onde acabou por ser resgatada.

Há potencial de trauma psicológico? Como se lida com isso?

A jovem deu entrada no hospital no domingo à noite e teve alta esta quarta-feira de manhã. À chegada ao Centro Hospitalar Universitário do Algarve, Érica permanecia consciente e já não se encontrava em situação de hipotermia nem desidratada, mas apresentava uma queimadura solar, como explicou na altura aos jornalistas a médica Elsa Rocha. Mas para além do trauma físico, nestes casos importa ter em conta a carga psicológica. “O potencial de instalação de trauma nestas circunstâncias é grande”, refere João Veloso.

Sem conhecer os detalhes particulares deste caso, o psicólogo do Centro de Trauma da Universidade de Coimbra aponta que é importante em situações desta natureza algum tipo de acompanhamento, algo que depende de caso para caso e da necessidade que as pessoas sentem na sequência de um episódio traumático.

Nesse sentido, o trabalho dos profissionais de saúde é ajudar as pessoas que passam por uma experiência traumática a “construir uma narrativa que integre a experiência vivida”. O objetivo passa por ajudar a conseguir olhá-la como uma memória e não um acontecimento que se está permanentemente a reviver, cenário no qual se pode instalar uma situação de stress pós-traumático.

[Já pode ouvir a série toda: ouça aqui o sexto episódio da série em podcast “O Sargento na Cela 7”. E ouça aqui o primeiro episódio, aqui o segundo episódio, aqui o terceiro episódio, aqui o quarto episódio e aqui o quinto episódio. É a história de António Lobato, o português que mais tempo esteve preso na guerra em África.]

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