Uma empresa detida, em conjunto, pelo ministro das Infraestruturas e da Habitação, Pedro Nuno Santos, e pelo pai (a Tecmacal), beneficiou de um contrato público por ajuste direto, o que constitui uma incompatibilidade de acordo com a lei que estabelece o regime do exercício de funções por titulares de cargos políticos e altos cargos públicos. A sanção prevista na lei para os casos em que um titular de cargo político detém mais de 10% de uma empresa em conjunto com um “ascendente” e faz um contrato público é a demissão.
O ministério de Pedro Nuno Santos, em resposta ao Observador, considera que não existe nenhuma incompatibilidade, escudando-se num parecer da Procuradoria-Geral da República. Mas esse parecer foi feito em relação à anterior lei de incompatibilidades e impedimentos (de 1993). Mais: distingue os casos em que as empresas são dos titulares dos cargos e aquelas em que as sociedades são apenas propriedade de familiares. O parecer em causa não aborda a situação que se verifica neste caso, em que o titular do cargo e o familiar têm ambos participações: Pedro Nuno Santos só tem 1% da empresa, mas, em conjunto com o pai — que tem 44% — e outros familiares ultrapassa em muito os 10% apontados na lei.
Há pouco mais de três meses, no dia 27 de junho de 2022, o Centro de Formação Profissional da Indústria de Calçado — uma entidade pública reclassificada com sede em São João da Madeira, concelho de origem de Pedro Nuno Santos e de onde a família é originária — fez um ajuste direto com a Tecmacal no valor de 19.110,00 euros para compra de equipamentos no setor da marroquinaria.
A atual lei n.º 52/2019 — no artigo referente aos “impedimentos” — diz que “as empresas em cujo capital o titular do órgão ou cargo detenha, por si ou conjuntamente com o seu cônjuge, unido de facto, ascendente e descendente em qualquer grau e colaterais até ao 2.º grau, uma participação superior a 10 por cento” não podem “participar em procedimentos de contratação pública”.
De acordo com o registo comercial, consultado pelo Observador, o pai do ministro das Infraestruturas, Américo Augusto dos Santos, detém uma percentagem de 44% da empresa Tecmacal, enquanto o próprio ministro aparece com 0,5%. Segundo a declaração de rendimentos entregue pelo ministro no Tribunal Constitucional, era de 1% a 28 de junho de 2022. Isto significa que o ministro tem mais de 10% de uma sociedade “conjuntamente” com um ascendente — o que faz com que a empresa fique impedida de fazer contratação pública. A isto — de acordo com o relatório estrutural do diretório E-informa, feito com base em informação cedida pela empresa — ainda ter-se-á que ter em conta uma percentagem da mãe do ministro, que tem 5%, e da sua irmã, a quem é atribuído nesse documento igualmente 0,5%. Os restantes sócios da empresa são da família Laranjeiro, que, de acordo com as últimas informações disponibilizadas pela sociedade, são donos da outra metade da empresa.
O contrato público em causa é assinado pelo pai de Pedro Nuno Santos, Américo Augusto dos Santos, como se pode comprovar no documento. O próprio contrato assume que está sujeito às regras do Código dos Contratos Públicos.
A lei não diz apenas que há um impedimento a que esta situação ocorra, como também estabelece um regime sancionatório para o titular do cargo político. Segundo o seu artigo 11.º, a “infração” implica, “para os titulares de cargos de natureza não eletiva, com a exceção do primeiro-ministro, a demissão”.
A empresa da família Santos (e da família de Fernando Laranjeiro) beneficiou de contratos públicos num valor total de 1,1 milhões de euros desde 2008 até à atualidade. Destes, 517.045 euros foram realizados desde que Pedro Nuno Santos tomou posse como governante até à entrada em vigor da lei n.º 52/2019, em julho de 2019. Desde essa altura, não tinha existido mais nenhum contrato público da Tecmacal. Isto até ao contrato que está agora em causa, de junho deste ano.
A Tecmacal — empresa da qual Pedro Nuno Santos chegou a ser adjunto da Administração entre outubro de 2012 e novembro de 2015 — tem ainda uma participação de 98.91% na empresa OPTIMA, o que significa que o ministro e os seus familiares acabam por deter, de forma indireta, mais de 10% também desta outra empresa.
Isto torna problemático um outro contrato. A empresa OPTIMA, gerida pelo pai de Pedro Nuno Santos, beneficiou de um outro contrato, no valor de 11.500,00 euros, num procedimento por consulta prévia que teve como adjudicante o Instituto Politécnico de Leiria.
A defesa do ministro: situação é a mesma de 2019
Pedro Nuno Santos acredita que não existe qualquer incompatibilidade, tendo por base um parecer pedido pelo primeiro-ministro António Costa à Procuradoria-Geral da República, em 2019. Nessa altura houve um grande debate público centrado no facto de a contratação pública por parte de familiares de governantes poder levar à demissão imediata de governantes e António Costa pediu um parecer à Procuradoria-Geral da República, que foi publicado em setembro de 2019, já depois da entrada em vigor de uma nova lei (n.º 52/2019), mas que incidiu ainda sobre a anterior (a lei n.º 64/93).
Há, portanto, uma lei nova — mas, para Pedro Nuno Santos, nada mudou. “As questões agora colocadas são inteiramente coincidentes com as que motivaram, em 2019, a solicitação de um pedido de parecer do Governo ao Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República, o qual concluiu pela inexistência de incompatibilidades“, diz o ministro das Infraestruturas.
O ministro diz ainda que o parecer “concluiu que o então artigo 8.º da Lei n.º 64/93, de 26 de agosto (entretanto revogada, mas substituída pelos n.º 2 e 3 do artigo 9.º da Lei n.º 52/2019, de 31 de julho, com redação idêntica para os efeitos em causa), deve ser objeto de redução teleológica, ou seja, excluir situações à partida abrangidas pela letra da lei”.
E, continua o ministro, o mesmo parecer diz que, “ao proibir a participação em todos os concursos públicos, por empresas detidas por familiares dos titulares de cargos políticos, atentaria contra a liberdade de iniciativa económica privada de forma desproporcional, o que, em última análise, implicaria a sua inconstitucionalidade — por violação do n.º 2 do artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa”.
O parecer diz assim que, se as empresas forem do próprio titular do cargo político e este tiver mais de 10%, pode ser aplicada a letra da lei: há um impedimento. Se o que estiver em causa forem empresas detidas apenas por familiares, estes só estão impedidos de fazer contratação pública caso a entidade pública que faz o contrato dependa diretamente do titular do cargo. Porém, o caso desta contratação da Tecmacal, de junho de 2022, é diferente do que foi abordado no parecer: é um caso em que o ministro, “conjuntamente” com um familiar, detêm mais de 10%.
O parecer diz que a referida “redução teleológica” — que, segundo o ministro, o iliba do impedimento — é relativa não a todo o artigo 8.º da lei n.º 64/93, mas apenas à alínea a).
Acontece que, o que está em causa nesta situação não é a alínea a) do n.º 2 do artigo 8.º — que é referente aos casos em que as empresas são detidas apenas por familiares –, mas sim a alínea b), que trata de empresas detidas “conjuntamente” pelo titular do órgão e um seu familiar.
A juntar a isso, o parecer da PGR — embora aborde as alterações em curso e lembre que estava para ser publicada uma nova legislação — incide de uma forma mais direta sobre a lei de 1993, não sobre a atual. Entretanto, foi aprovada a nova lei, em que este impedimento é mantido.
A nova lei mantém também o regime sancionatório para estas situações — no caso dos ministros, é a demissão.
O Observador questionou ainda o ministro Pedro Nuno Santos sobre a diferença de valores que existe no relatório comercial do diretório de empresas (que lhe atribui 0,5% da empresa) e o que registou na declaração de rendimentos (1% da empresa) — mas o governante não quis esclarecer as percentagens exatas que os seus familiares têm atualmente na Tecmacal.
O Observador tentou ainda contactar Américo Augusto dos Santos, telefonando para dois edifícios da Tecmacal, mas foi informado por uma funcionária da sede onde o administrador habitualmente trabalha, a de São João da Madeira, que o pai do ministro não estava presente.