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DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Enriquecimento ilícito. Partidos querem, penalistas têm muitas dúvidas e Tribunal Constitucional já chumbou duas vezes

Enriquecimento ilícito é uma das bandeiras de combate à corrupção, mas caminho de criminalização será difícil, admitem advogados. Apesar dos chumbos do Tribunal Constitucional, partidos têm propostas.

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Na passada sexta-feira, Hugo Soares, líder parlamentar do PSD, voltou a sublinhar que uma das prioridades do partido é a criminalização do enriquecimento ilícito. Logo a seguir, e na sequência das reuniões entre Rita Júdice, ministra da Justiça, e os vários partidos para encontrar soluções de combate à corrupção, Alexandra Leitão, presidente do grupo parlamentar do PS, deixou o aviso: a criminalização do enriquecimento ilícito, a par do confisco, “suscitam muitas dúvidas de trabalho ao nível da constitucionalidade”. E Rita Júdice, depois de ouvir o PAN, o PSD, o PS e o Chega, assumiu que a constitucionalidade será sempre a “linha vermelha”.

A criminalização do enriquecimento ilícito ou enriquecimento injustificado é um dos objetivos de praticamente todos os partidos, da direita à esquerda, e é usada como bandeira no combate à corrupção. Mas transformar em crime todas as situações em que o património adquirido seja superior aos rendimentos declarados não é assim tão simples e o Tribunal Constitucional já barrou, em 2012 e 2015, as normas aprovadas pelo Parlamento. O desafio será agora encontrar uma maneira de passar no crivo constitucional – já há propostas para o fazer –, mas os penalistas ouvidos pelo Observador continuam com dúvidas, tendo em conta todas as críticas feitas no passado pelos juízes do Palácio Ratton.

Políticos e altos cargos públicos a justificar aumento de património

Para já, há partidos que não querem esperar por uma discussão e têm propostas para contornar o crivo do Tribunal Constitucional. O Bloco de Esquerda apresentou logo esta segunda-feira à ministra da Justiça uma forma de criminalizar o enriquecimento injustificado que, aliás, não é nova e já tinha sido avançada em 2021. Para o partido liderado por Mariana Mortágua, a solução passa por alterar a lei 52/2019, que regula o exercício de funções por titulares de cargos políticos e altos cargos públicos. Esta lei já prevê a obrigatoriedade de declarar os respetivos rendimentos e bens patrimoniais e o Bloco de Esquerda quer que exista também o dever de justificação do aumento patrimonial especialmente elevado.

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Neste caso, defende o Bloco, havendo uma obrigação de declaração e justificação do património, a sua omissão deverá ser punida com prisão entre um e cinco anos, como acontece com o crime de fraude fiscal. Além disso, o partido quer ainda que os acréscimos patrimoniais não justificados apurados ao abrigo do regime fiscal tributário de valor superior a 50 salários mínimos sejam tributados com uma taxa de 100%.

Bloco defende que, havendo uma obrigação de declaração e justificação do património, a sua omissão deverá ser punida com prisão entre um e cinco anos, como acontece com o crime de fraude fiscal. Além disso, o partido quer ainda que os acréscimos patrimoniais não justificados apurados ao abrigo do regime fiscal tributário de valor superior a 50 salários mínimos sejam tributados com uma taxa de 100%.

Quem acompanha esta linha de taxar o património de valor elevado a 100% é o PAN. O partido de Inês Sousa Real adiantou, aliás, ao Observador que esta foi uma das propostas feitas a Rita Júdice na passada sexta-feira. O PAN entende que a punição da ocultação de património, através do alargamento das obrigações declarativas dos políticos é o mais “próximo de punição de enriquecimento ilícito que é possível consagrar”. “Contudo, o PAN defende que este regime pode ser melhorado num aspeto e deu essa nota na reunião com a ministra da Justiça: o atual regime obriga a que os acréscimos patrimoniais não justificados sejam tributados com um regime especial de 80% e o PAN entende que a tributação deve ser de 100% para assegurar que esta verba é integralmente devolvida ao erário público, deixando claro que em caso algum o crime não compensa.”

Já o Chega fala apenas em alterar a Constituição para poder contornar as questões de inconstitucionalidade já apontadas pelo Tribunal Constitucional, tal como defendeu em 2021, quando o tema foi também discutido. Neste ano, André Ventura propôs acrescentar na Constituição o seguinte: “O princípio da presunção de inocência não impede a legislação criminal de prever e punir, de forma adequada e proporcional, desde que devidamente identificado o bem jurídico protegido, a conduta daqueles que, sendo titulares de cargos políticos ou de altos cargos públicos, adquirirem, possuírem ou detiverem, durante o período do exercício de funções públicas ou nos cinco anos seguintes à cessação dessas funções, por si ou por interposta pessoa, singular ou colectiva, património ou despesas incompatíveis com os seus rendimentos e bens declarados, ou que devam ser declarados”.

O Observador questionou igualmente o PSD e o PS sobre propostas concretas, mas não obteve resposta até à publicação deste artigo.

Primeiro enriquecimento ilícito, depois enriquecimento injustificado, ambos barrados pelo Tribunal Constitucional

Durante o governo de Pedro Passos Coelho, o Presidente da República, na altura Aníbal Cavaco Silva, pediu duas vezes ao Tribunal Constitucional a fiscalização preventiva da norma que pretendia alterar o Código Penal.

A primeira vez foi em 2012, quando foi aprovado na Assembleia da República o crime de enriquecimento ilícito. O decreto definia então que “quem por si ou por interposta pessoa, singular ou coletiva, adquirir, possuir ou detiver património, sem origem lícita determinada, incompatível com os seus rendimentos e bens legítimos é punido com pena de prisão até três anos, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal”. Para o TC, uma das questões era saber se a norma violava o princípio da presunção da inocência através da inversão do ónus da prova. Ou seja, se tinha de ser o acusado o responsável por provar que estava inocente, em vez de ser a acusação a apresentar os factos, como determina a Constituição que, aliás, é bastante clara: “Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”.

Para o TC, uma das questões era saber se a norma violava o princípio da presunção da inocência através da inversão do ónus da prova. Ou seja, se tinha de ser o acusado o responsável por provar que estava inocente, em vez de ser a acusação a apresentar os factos, como determina a Constituição que, aliás, é bastante clara: “todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”

Por isso, neste crime, o Ministério Público, como referiram na altura os juízes do Palácio Ratton, devia “fazer prova da aquisição, posse ou detenção do património, de não ter esse património origem lícita determinada, bem como da sua incompatibilidade com os rendimentos e bens legítimos do arguido”. E era precisamente aqui que estava o problema: sendo a sua origem ilícita, podia o Ministério Público não conseguir provar a sua origem e, por isso, disse o Tribunal Constitucional, a única forma seria colocar essa responsabilidade no arguido, sendo este a revelar a origem do património, não podendo, por exemplo, fazer uso do direito ao silêncio que lhe é dado durante todas as fases processuais. “Tal exigência, admitindo que o arguido se encontra em condições de a cumprir, viola, por si só, o princípio da presunção de inocência na sua dimensão de proibição de inversão do ónus da prova e o direito ao silêncio do arguido”. Além disso, a forma como estava escrita a norma – “sem origem lícita determinada” – já pressupunha que o Ministério Público não conseguiria descobrir a origem do património e, por isso, estava afastada a necessidade de apresentar provas, pois seria impossível determinar a origem do “ilícito”.

Esta era, portanto, a questão central para os juízes do TC, mas existiam outras. No despacho que decidiu pela inconstitucionalidade – uma das juízas era Catarina Sarmento e Castro, ex-ministra da Justiça, na legislatura de António Costa – lê-se ainda que não estava bem definido o bem jurídico que pretendia ser protegido, nem era cumprido o princípio da proporcionalidade e da necessidade. Nestes últimos, a questão feita é sempre a mesma: será mesmo necessário punir este comportamento com recurso a pena de prisão? O TC achou que não. E justificou: “Seria necessário demonstrar que só criminalizando o enriquecimento se conseguiria atingir o resultado visado pelo legislador. Ora, como se viu, podem ser encontradas outras formas de, protegendo os mesmos bens jurídicos, salvaguardar princípios constitucionais fundamentais”.

Os deputados da Assembleia da República não largaram o assunto e voltaram a legislar. Surge então, em 2015, as normas que criminalizavam o enriquecimento injustificado – uma mudança semântica, os mesmos problemas. O decreto manteve a incriminação da aquisição, posse ou detenção de património, mas desta vez apenas se fosse incompatível com os rendimentos declarados. Mas o TC considerou que continuava a violar o princípio da presunção de inocência. “Mesmo na nova formulação, não se vê como poderá o arguido libertar-se da acusação que sobre ele impende”, lê-se na decisão.

Depois desta decisão, os deputados da Assembleia da República não largaram o assunto e voltaram a legislar. Surgem então, em 2015, as normas que criminalizavam o enriquecimento injustificado – uma mudança semântica, os mesmos problemas. O decreto manteve a incriminação da aquisição, posse ou detenção de património, mas desta vez apenas se fosse incompatível com os rendimentos declarados. Mas o TC considerou que continuava a violar o princípio da presunção de inocência. “Mesmo na nova formulação, não se vê como poderá o arguido libertar-se da acusação que sobre ele impende”, lê-se na decisão.

Além disso, referiu ainda o Tribunal, “a incriminação da incompatibilidade entre a declaração e o património já existe no ordenamento jurídico português”, o que tornava “incompreensível – e inconstitucional – esta redundância normativa”, pela violação do já referido princípio da necessidade. E a definição apresentada poderia levar para os crimes fiscais, como é o caso da fraude fiscal ou para os crimes de branqueamento de capitais. E, “das duas uma”, referiram os juízes do Constitucional: ou o crime do enriquecimento ilícito ganha autonomia em relação aos crimes fiscais, com todas as dificuldades já encontradas, ou “não se distingue de outros crimes, inexistindo razão substancial para a sua manutenção, o que sempre violaria, entre outros princípios, o da proporcionalidade na vertente necessidade”.

E agora? “Há um obstáculo muito difícil de ultrapassar”, afirma penalista

Com a maioria dos partidos a avançar que uma das prioridades é a criação deste tipo de crime, seja na forma de enriquecimento ilícito, seja na forma de enriquecimento injustificado, os penalistas mantêm as dúvidas sobre o assunto, que já não são novas e têm sempre em conta as decisões do Tribunal Constitucional.

“Há aqui um obstáculo muito difícil de ultrapassar”, começa por explicar ao Observador Rogério Alves, advogado. “O enriquecimento ilícito é o enriquecimento cuja origem se desconhece e que, por se desconhecer a sua origem, se presume ilícito. Ora, sendo assim, se não houver produção de prova, para além da comparação entre os rendimentos e o património, então há uma inversão do ónus da prova, uma vez que não se provou a natureza ilícita, presume-se apenas a ilicitude”, acrescenta, em linha com as declarações do TC.

“Há aqui um obstáculo muito difícil de ultrapassar”, começa por explicar ao Observador Rogério Alves, advogado. “O enriquecimento ilícito é o enriquecimento cuja origem se desconhece e que, por se desconhecer a sua origem, se presume ilícito. Ora, sendo assim, se não houver produção de prova, para além da comparação entre os rendimentos e o património, então há uma inversão do ónus da prova, uma vez que não se provou a natureza ilícita, presume-se apenas a ilicitude”, acrescenta, em linha com as declarações do TC.

E há ainda mais uma questão. Para Rogério Alves, o enriquecimento nasce de outros crimes, como o de corrupção, tráfico de influências, ou abuso de poder. “O enriquecimento nasce da prática de um crime. O que se está a dizer às pessoas é que o enriquecimento inexplicado passa a ser ilícito. Ora, isso não é compatível com a prova penal”, acrescenta.

Na mesma linha segue Mónica Quintela, advogada, antiga deputada do PSD e porta-voz para a Justiça durante a liderança de Rui Rio, que defende que as normas relacionadas com o crime de enriquecimento ilícito “não passam nunca no crivo do Tribunal Constitucional”, uma vez que “o Ministério Público é que tem de provar” e não o acusado. “Seria uma alteração total de todo o nosso sistema jurídico”, considera.

“Porque é que se alguém matar uma pessoa a investigação é que tem de provar que ele matou essa pessoa e na criminalidade económica é diferente? A criminalidade económica não é mais grave do que o crime de sangue.”

Ministra da Justiça já pediu propostas à PGR, ao Tribunal de Contas e ao CSM

Ainda no âmbito desta corrida para encontrar medidas de combate à corrupção, Rita Júdice anunciou esta segunda-feira que não ficaria apenas com as propostas dos partidos e que prometeu alargar a discussão a outras entidades. E assim fez. Depois de ouvidos todos os partidos, adiantou fonte do ministério da Justiça, Rita Júdice pediu diretamente contributos ao Mecanismo Nacional Anticorrupção, ao Tribunal de Contas, à Procuradoria-Geral da República e ao Conselho Superior da Magistratura.

Ministra da Justiça pede propostas de combate à corrupção ao CSM, ao Tribunal de Contas, à PGR e ao Mecanismo Nacional Anticorrupção

A lista é mais extensa e inclui ainda, por exemplo, a Associação Sindical dos Juízes Portugueses. “A associação sindical recebeu um ofício a pedir um contributo para essa matéria e estamos a elaborar um documento para propor medidas”, adiantou Nuno Matos, presidente deste sindicato, ao Observador.

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