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Nas suas memórias, o antigo Secretário da Defesa Robert Gates descreveu Joe Biden como um homem íntegro que esteve quase sempre do lado errado nas decisões mais importantes da política externa nos seus 40 anos de carreira. Essa asserção tornou-se célebre durante a campanha eleitoral e reapareceu na última semana, enquanto o Afeganistão se ia perdendo, como um aviso que não devia ter sido ignorado quando o novo presidente anunciou a retirada das forças militares no país.
A guerra mais longa da história da América começou em 2001, como reação aos ataques de 11 de setembro e à recusa ao ultimato feito pelo presidente Bush ao governo Talibã, exigindo a extradição de Osama Bin Laden. A operação no Afeganistão foi apenas uma parte da mais abrangente Guerra ao Terror e começou como um sucesso militar que rapidamente se transformou num problema político. Todos os presidentes que se seguiram tentaram retirar as tropas, mas todos acabaram por ceder à oposição de militares e diplomatas, que pediam mais tempo para encontrar o momento certo para uma transição que não condenasse o regime débil que tinham criado.
Sem que se imaginasse um momento certo, a presidência Obama conseguiu uma redução do número de militares no terreno e uma nova estratégia, mais concentrada na necessidade de as forças de segurança locais eventualmente se sustentarem por si. Com o presidente Trump, a oposição dos generais não venceu o debate de ideias, mas as ordens presidenciais acabaram engolidas pela burocracia e ignoradas na prática, um acontecimento que gerou algumas dúvidas constitucionais. Apesar da resistência do “aparelho”, no final do seu mandato o número de militares americanos no Afeganistão era o mais baixo desde 2001 e havia um acordo polémico com os talibãs para uma retirada total até maio deste ano.
Joe Biden foi um adversário tardio e especialmente feroz da presença militar no Afeganistão. Apesar de ter apoiado no Senado a base das intervenções no Grande Médio Oriente, a sua oposição à manutenção das tropas no Afeganistão foi uma das características distintivas do seu papel na administração Obama e um dos pontos cruciais da sua campanha presidencial. A evolução do presidente Biden acompanhou e excedeu uma mudança de opinião na América, onde a vontade de uma resposta avassaladora ao terrorismo deu lugar à fadiga perante um conjunto de guerras distantes e intermináveis.
Quando Biden confirmou que ia cumprir o essencial do acordo de 2020 com os talibãs, a alteração mais importante estava relacionada com o seu simbolismo. O final do processo foi adiado para 11 setembro de 2021, assinalando 20 anos dos ataques terroristas que levaram as forças americanas para a região. A decisão de abandonar o Afeganistão não foi unânime, mas também não enfrentou um clamor público. Alguns especialistas alertaram para o risco de instabilidade na região e alguns republicanos tentaram imaginar um plano que mantivesse uma presença mínima e dissuasora. O calendário era duvidoso, forçando o poder simbólico de um dia de luto e mostrando pouca prudência em relação à evolução das condições no terreno, mas já pouca gente estava disposta a defender em público a continuação das “guerras eternas”.
A realidade da rapidez dos acontecimentos na última semana foi uma surpresa para todos. O acordo com o presidente Trump deu aos talibãs um ano para se reorganizarem e planearem o curso da história, ao mesmo tempo que o governo do Afeganistão teve de enfrentar o resultado de anos de inflação do número real das suas tropas, a inabilidade estratégica e logística que deixou parte das forças sem salário ou abastecimento durante os combates e um sistema de corrupção que substituiu as instituições quando se tornou necessário defender o território. Em vez de uma guerra civil pelo controlo do país, o regime desabou perante a hipótese de um confronto com os talibãs. Gastos mais de 80 mil milhões de dólares em armas, equipamento e formação das forças de segurança nacionais, a luta armada quase não aconteceu. No conforto da Casa Branca, o presidente Biden criticou a “falta de vontade” dos afegãos para lutar pelo seu futuro, aproveitando a superioridade tecnológica que lhes foi deixada.
A queda de Cabul no domingo foi a derrota de uma forma de fazer política no Afeganistão, aparentemente insustentável sem a presença externa que a criou. Quando o presidente Ashraf Ghani abandonou o país, para “evitar o derrame de sangue”, os americanos encontraram a prova final de que 20 anos se tinham desperdiçado e que ter ficado mais tempo não poderia mudar o rumo dos acontecimentos. Os erros de previsão quanto à velocidade do avanço dos talibãs foram, afinal, falhas de julgamento sobre as capacidades do Estado afegão para, sucintamente, funcionar e sobreviver. As críticas ao governo e à liderança militar são justas, mas parece difícil exigir às forças de segurança maior compromisso com o combate enquanto os americanos se retiravam e o seu próprio governo se desmoronava.
Ghani, o presidente criado pelos EUA que nunca foi certo para o cargo
Na história desse falhanço, o percurso de Ghani lê-se como alegoria. Um antropólogo de 72 anos, doutorou-se em Nova Iorque e trabalhou para o Banco Mundial, aconselhando países em desenvolvimento sobre as melhores políticas públicas. Passou mais de 20 anos fora do Afeganistão, mas continuou a discutir o futuro do país à distância e nos grupos certos, o que lhe garantiu um lugar no primeiro governo formado após a intervenção americana, liderado por Hamid Karzai. Depois de um período prestigiante como ministro das finanças, fez inimigos suficientes para passar a reitor da Universidade de Cabul, gravar uma TED talk com mais de um milhão de visualizações e fundar um think-tank focado na eficácia estatal e qualidade de governação. Concorreu à presidência em 2009, perdeu com estrondo, mas venceu em 2014 e 2019, no meio de alegações de fraude eleitoral que forçaram um acordo complexo de partilha de poder com o candidato derrotado, Abdullah Abdullah, que se tornou o primeiro (e único) “CEO do Afeganistão”.
A carreira profissional de Ashraf Ghani é uma criação essencialmente americana, mas as suas qualidades intelectuais nunca apagaram os traços de personalidade que o tornaram desajustado à função presidencial. Irascível, dado aos detalhes e a planos megalómanos para reformar profundamente o país, acabou por alienar aliados e apoiantes ao embarcar num conflito contra “as elites” que, no seu entender, impediam o desenvolvimento do país e preservavam a corrupção. Parece a história típica do tecnocrata que conquista o poder e depois mostra relutância no cumprimento das tarefas menores da política, indisponível para audiências e alianças. Durante a sua presidência, o Afeganistão foi um território em perigo, ocupado por uma potência estrangeira e ameaçado pelos representantes do regime anterior. Construir um corpo político resiliente e funcional não era uma tarefa menor. Histórias sobre como era capaz de dedicar horas a estudar o mais moderno sistema para tratamento de resíduos, enquanto as ruas da capital se enchiam de lixo por não ter nomeado um responsável municipal, mostram como as suas opções impopulares parecem tomadas por alguém que confiava na segurança da continuidade americana e que, por isso, podia prescindir de controlar o dia a dia do país e cultivar relações pessoais alargadas. Soldados que preferiram render-se a lutar, instituições que soçobraram e uma fuga apressada enquanto o inimigo se aproximava da capital são o legado irónico do autor da obra “Fixing Failed States: A Framework for Rebuilding a Fractured World”.
O potencial de embaraço para a carreira literária de Ashraf Ghani não comoveu Joe Biden. A importância de sair do Afeganistão a qualquer custo era clara para si ainda antes de o conflito fazer 10 anos. A Richard Holbrooke, representante especial da administração Obama para o Afeganistão e o Paquistão, terá dito em 2010 que era importante retirar tropas “independentemente das consequências para as mulheres ou seja quem for” e seria possível fazê-lo, uma vez que o presidente Nixon tinha sobrevivido politicamente à retirada do Vietname em 1973.
A decisão da retirada e o acordo de paz de Trump
Nessa altura a posição de Biden já era a expressão radical de uma opinião que se consolidou na política americana, mas que não é assim tão consensual na sociedade. Fazer regressar tropas é uma ideia genericamente popular, mas os inquéritos tendem a mostrar que a guerra no Afeganistão não suscita opiniões fortes; depois da última semana, a retirada tornou-se um assunto divisivo e sobre a Guerra ao Terror ainda não há uma perspetiva claramente dominante. O pessimismo sobre as intervenções americanas é muito mais fácil encontrar junto das elites, especialmente na classe política. Isso ajuda a explicar a diferença entre sondagens inconclusivas e o clima de quase unanimidade que se seguiu ao anúncio do presidente Biden em abril. Criticar a decisão de retirada era tão impopular que Hillary Clinton e Condoleezza Rice o fizeram em privado.
O presidente Trump, responsável pelo acordo que a atual presidência alega estar a seguir, também foi um entusiasta do anúncio da retirada, contrariando a oposição de algumas figuras importantes do seu partido. Numa declaração de abril, criticou apenas a intenção de atrasar o prazo original e o aproveitamento do 11 de setembro, mas insistia que o regresso das tropas era algo “magnífico” e “positivo” e que podia ser acelerado. Nos últimos dias, defendeu que o seu plano não foi seguido, que era mais sensível às circunstâncias do terreno e assegurava a segurança e a credibilidade da América.
Ao contrário do que defende a sabedoria popular, a culpa pode morrer bígama. A posição do presidente Biden envolve defender que o acordo do seu antecessor era péssimo, mas ainda assim extraordinariamente vinculativo e impossível de alterar (ainda que não no calendário, que foi possível mudar sem problemas aparentes). Trump foi coerente no essencial da sua crítica, focando-se no processo de retirada e não na decisão de o fazer, mas acabou a criticar a sua urgência depois de ter começado por criticar a lentidão, o que não se compreende facilmente.
À época, o acordo de Trump com os talibãs foi censurado pelo seu minimalismo. O único objetivo das negociações era garantir uma retirada, independentemente das soluções para o futuro da partilha de poder no país. A mensagem era clara e foi recuperada pelo presidente Biden no seu discurso de segunda-feira: a América precisa de acabar com a sua guerra mais longa. Essa ideia, que uniu todos os presidentes que tiveram de lidar com o conflito sem o terem começado, precisou de Biden para vencer as resistências internas e aceitar a realidade dramática dos últimos dias. Mesmo sem a velocidade inesperada, era provável um conflito pesado e desolador, com boas hipóteses de um governo Talibã como resultado final.
A China como prioridade (que exigia mais cautela)
Decidir retirar implicou fazer as pazes com uma derrota sob qualquer forma, o que não é uma tarefa menor da política, mas também não é exatamente uma expressão de coragem. O que separa Biden dos seus antecessores não é a valentia de condenar um país aos talibãs, nem uma convicção particularmente profunda quanto à justiça da guerra. É antes uma ideia da política e da sua presidência, ambas fundamentalmente domésticas. O desejo de “unir a América” e despolarizar os americanos construiu uma política externa que escapa das guerras eternas e que procura acolher os instintos do descontentamento americano.
Um bom exemplo dessa tendência encontra-se na vontade de assumir uma competição estratégica com a China, até agora a ideia mais forte da política externa desta presidência, que combina duas dimensões: popularidade junto do eleitorado de Donald Trump e a possibilidade de ser quase totalmente nacionalizada. Competir com a China para provar que a democracia funciona serviu de justificação para o plano de infraestruturas, a principal iniciativa da presidência. No entanto, uma perspetiva adversarial em relação à China devia ter trazido mais cautela no Afeganistão. O governo chinês recebeu com estima uma comitiva Talibã dias antes de conquistarem o país, mantém uma relação de especial proximidade política e económica com o Paquistão e assinou este ano com o Irão um acordo de cooperação para os próximos 25 anos. Sair da região para contrariar a influência chinesa no mundo é uma contradição que dificilmente se pode resolver com pontes e autoestradas no Wisconsin.
As relações com o exterior estão longe de ser o tema mais importante na política americana. A intenção de abandonar problemas distantes não é original, corajosa ou impopular: é uma opção persistente, bipartidária e sancionada pela opinião pública. Ainda assim, nenhum presidente sai mais forte de um desaire internacional e a popularidade de Biden parece estar no fim do seu estado de graça. A ideia de que a América “está de volta” para conquistar o respeito do mundo torna-se mais implausível com cada nova imagem do aeroporto de Cabul. Há 20 anos, a reação a um ataque terrorista foi brutal e sentimental. A América quis castigar os seus agressores, mas acreditou que podia fazê-lo enquanto exportava o seu sistema de governo e liberdades para os lugares mais difíceis do mundo. Até à última semana, foi quase impossível arguir a necessidade de continuar a lutar pela segunda parte da proposta. O proselitismo falhou, a região intervencionada tem um futuro muito parecido com o seu passado e a situação doméstica degradou-se. O caos na retirada trouxe tragédias pessoais e derrotas políticas, mas lembrou o propósito emocional do combate. A posição mais fácil de defender em público mudou outra vez. Ao tentar matar a ideia da América que criou esta guerra, a inabilidade de Joe Biden pode ter garantido a sua sobrevivência.