Na versão original americana, “A Propósito de Nada” esteve para ser publicado na editora Hachette, mas esta era a editora de Ronan Farrow, o filho de Woody Allen que é também um dos que acusa do realizador de agressão sexual para com a filha adotiva, Dylan Farrow. A pressão levou à mudança e o livro acabou por chegar às lojas com o o carimbo da Arcade publishing. Mas este é apenas um dos (grandes) detalhes que faz desta autobiografia um dos livros mais polémicos e esperados dos últimos tempos. Em Portugal é publicado a 23 de julho, pelas Edições 70.
A infância, Nova Iorque, o cinema, a família, Mia Farrow, as mudanças, as desilusões e os escândalos. Todos estes ingredientes compõem a receita de “A Propósito de Nada”, ainda que nem todos tratados da mesma forma, nem todos com o mesmo espaço. O Observador faz a pré-publicação da edição portuguesa, com o trecho inicial do livro, com Woody Allen a recordar os pais e a infância, como o inevitável ponto de partida para o que haveria de acontecer a seguir, nos seus filmes e na sua história particular.
Tal como sucedia com Holden, não me apetece mergulhar em todas aquelas tretas tipo David Copperfield, embora, no meu caso, talvez o leitor achasse mais interessante ler um pouco acerca dos meus pais do que sobre mim. Por exemplo, o meu pai, nascido em Brooklyn quando tudo aquilo eram quintas, um apanha-bolas dos primeiros Brooklyn Dodgers, jogador de snooker matreiro, corretor de apostas, um homem pequeno, mas um judeu duro, de camisas elegantes, com o cabelo liso e brilhante penteado para trás, a la George Raft.
Nada de secundário, Marinha aos dezasseis, parte do pelotão de fuzilamento, em França, quando mataram um marinheiro americano por ter violado uma rapariga local. Atirador medalhado, sempre adorou puxar o gatilho e andou armado até ao dia em que morreu, com uma farta cabeleira grisalha e visão vinte-vinte aos cem anos. Certa noite, durante a Primeira Guerra Mundial, o barco em que seguia foi atingido por um obus, algures ao largo da costa, nas águas geladas da Europa. Afundou-se. Todos se afogaram à exceção de três tipos que conseguiram nadar os vários quilómetros que os separavam da costa. Ele estava entre os três que conseguiram superar o Atlântico.
Woody Allen: uma vida memorável, para sempre refém de um pesadelo
Mas estive perto de nunca chegar a nascer. A guerra terminou. O pai dele, que tinha feito algumas massas, sempre o mimou, favorecendo-o desavergonhadamente em relação aos seus dois irmãos imbecis. E eram mesmo imbecis. Quando era miúdo, achei sempre que a irmã dele me fazia lembrar um idiota de circo. O irmão, fraco, vaidoso e de aspeto degenerado, vagueava pelas ruas de Flatbush, a vender jornais até se ter dissolvido como uma pálida obreia. Branco, ainda mais branco, desaparecido. Então o pai do meu pai comprou ao seu marinheiro preferido um carro mesmo elegante no qual o meu pai passeia pela Europa pós-Primeira Guerra Mundial. Quando regressa a casa, o velhote, o meu avô, acrescentara já alguns zeros à conta bancária e fuma Corona Coronas. É o único judeu a trabalhar como representante de uma grande empresa do ramo do café.
O meu pai faz recados para ele e, certo dia, enquanto carregava umas sacas de café de um lado para o outro, passa por um tribunal e eis que Kid Dropper, um bandido da altura, vem a descer a escadaria. Kid entra no carro e uma qualquer nulidade de seu nome Louie Cohen salta para o carro e espeta-lhe três balázios através da janela, enquanto o meu pai assiste. O velho contou-me esta história muitas vezes, à hora de deitar, o que era muito mais entusiasmante do que Flopsy, Mopsy, Cotton-tail e Peter.
Entretanto, o pai do meu pai, que procurava tornar-se uma indústria, compra uma série de táxis e vários cinemas, incluindo o Midwood Theater, onde haveria de passar tanto da minha infância a fugir da realidade, mas isso virá mais tarde. Primeiro ainda tinha de nascer. Infelizmente, antes desse pequeno acaso cósmico, o pai do meu pai, numa explosão de euforia maníaca, apostou cada vez mais em Wall Street, e já estão a ver para onde é que isto vai.
Numa certa quinta-feira, a bolsa decidiu suicidar-se, e o meu avô, grande apostador que era, foi num instante reduzido a uma pobreza abjeta. Os táxis desaparecem, os cinemas desaparecem, os patrões da empresa de café saltaram das janelas. O meu pai, subitamente responsável pelo seu próprio consumo calórico, é obrigado a fazer-se à vida; conduz táxis, gere uma casa de snooker, ganha algum com toda uma variedade de esquemas e faz apostas. Durante os verões é pago para ir até Saratoga tratar de alguns questionáveis negócios relacionados com cavalos de corrida para Albert Anastasia. Os verões passados no norte do Estado compunham mais uma série de histórias de dormir. Ele adorava aquela vida. Roupas elegantes, um bom rendimento, mulheres sensuais, e depois, de alguma maneira, conhece a minha mãe. Reviravolta.
Como é que acabou com Nettie é um mistério semelhante ao da matéria negra. Duas personagens tão contrastantes quanto Hannah Arendt e Nathan Detroit, discordavam em todas as questões à exceção de Hitler e da minha caderneta escolar. E, no entanto, apesar de toda a carnificina verbal, permaneceram casados setenta anos — por despeito, desconfio. Ainda assim, estou certo de que se amavam à maneira deles, uma maneira que talvez apenas algumas tribos de caçadores de cabeças do Bornéu conhecessem.
Em defesa da minha mãe, devo dizer que Nettie Cherry era uma mulher maravilhosa; inteligente, trabalhadora, abnegada. Era fiel e carinhosa e decente, mas não era, digamos, fisicamente cativante. Quando disse, anos mais tarde, que a minha mãe parecia Groucho Marx, as pessoas pensaram que eu estava a brincar. Nos seus últimos anos padeceu de demência e morreu aos noventa e seis. Por delirante que estivesse, mesmo no final nunca perdeu a sua capacidade de kvetch, algo que transformara numa forma de arte.
O meu pai, dinâmico até aos seus noventa e muitos, nunca permitiu que preocupação ou cuidado lhe perturbassem o sono. Nem pensamento algum as horas de vigília. A sua filosofia era a de que “Se não tiveres saúde não tens nada”, uma sabedoria mais profunda do que toda a perplexidade do pensamento ocidental, tão sucinta quanto um biscoito da sorte. E manteve a sua saúde. “Nada me incomoda”, gabava-se. “És demasiado estúpido para que alguma coisa te incomode”, tentava explicar-lhe a minha mãe, pacientemente.
A minha mãe tinha cinco irmãs, cada uma mais rústica que a outra, sendo a minha mãe, sem dúvida, a mais rústica de todas. Coloquemos as coisas desta maneira: a teoria edipiana de Freud de que todos os homens querem, inconscientemente, matar os pais para casarem com as mães choca contra uma parede de tijolo no que diz respeito à minha mãe.
Tristemente, embora a minha mãe fosse muito melhor progenitora, muito mais responsável, mais honesta e mais madura do que o meu pouco ético e mulherengo pai, eu gostava mais dele. Todos gostavam. Suponho que fosse por ele ser um tipo doce, mais caloroso, mais dado a demonstrações de afeto, ao passo que ela era intratável. Foi ela quem impediu que a família se afundasse. Trabalhava como guarda-livros numa florista. Geria a casa, cozinhava as refeições, pagava as contas, assegurava-se de que havia queijo nas ratoeiras, ao passo que o meu pai sacava notas de vinte, que não podia gastar, e mas enfiava nos bolsos enquanto eu dormia.
Nas raras ocasiões, ao longo dos anos, em que lhe saía a sorte grande, todos recebíamos um bom quinhão. O meu pai jogava todos os dias, fizesse chuva ou sol. Foi o mais próximo que chegou da prática religiosa. E quer saísse de casa com um dólar ou cem, gastava tudo antes de regressar. Em quê? Bem, roupas e outros artigos essenciais, como bolas de golfe engraçadas que não rebolavam a direito e que podia utilizar para enganar os seus amigos. E gastava-o comigo e com a minha irmã, Letty. Ele mimava-nos com a mesma liberdade generosa com que o pai o havia mimado a ele.
Exemplo: a certa altura, o meu pai foi empregado do Bowery, trabalhando durante a noite sem receber salário, apenas gorjetas. Ainda assim, todas as manhãs, quando eu acordava — estava na altura no secundário — tinha na mesa de cabeceira cinco dólares. Os outros miúdos que eu conhecia recebiam, talvez, cinquenta cêntimos ou um dólar de semanada. Eu recebia cinco dólares por dia! O que é que fazia com aquilo? Comia fora, comprava truques de magia, usava-o para sustentar os meus jogos de cartas ou dados.
Sabe, tinha-me transformado num mágico amador porque adorava tudo em relação à magia. Sempre gostei de tudo aquilo que exigisse solidão, como praticar o truque de mãos, ou tocar corneta, ou escrever, dado que isso me impedia de ter de lidar com os outros seres humanos de quem, por um motivo inexplicável, não gostava e em quem não confiava. Digo “inexplicável” porque provenho de uma família alargada, grande e carinhosa, que sempre foi simpática comigo. É como se eu tivesse nascido geneticamente chato.
Entretanto, sentava-me sozinho e praticava os meus passes de cartas e de moedas, manipulando o baralho, fingindo baralhá-lo, fingindo cortá-lo, dando do fundo do baralho, escondendo as cartas na palma da mão. Para todos os efeitos, foi um curto salto para um chato, de sacar um coelho da cartola para me aperceber de que conseguia fazer batota nas cartas. Tendo herdado o ADN do meu pai para a desonestidade, em breve estava a fazer batota no póquer, limpando os mais incautos, dando a segunda carta, cortando o baralho e metendo ao bolso as semanadas de toda a gente.
Mas basta de falar sobre mim e sobre o marginal que comecei por ser. Estava a falar dos meus pais e ainda não cheguei à parte em que a minha mãe dá à luz o seu pequeno herege. O meu pai levava uma vida encantada e a minha mãe — que, por necessidade, tinha de lidar com todos os problemas sérios da sobrevivência diária — era só trabalho e nada divertida ou interessante. Era inteligente, mas não era esperta — algo que a própria lhe diria de imediato, orgulhosa do seu “bom senso”. Para ser sincero, achava-a demasiado rígida e exigente, mas isso era porque ela queria que eu “fosse alguém”.
O amor, a morte e tudo que fica no meio: 10 lições de vida que aprendemos com Woody Allen
Vislumbrou os resultados de um teste de QI que fiz aos cinco ou seis anos e, embora não vá revelar o valor ao leitor, este impressionou a minha mãe. Foi-lhes recomendado que eu fosse enviado para Hunter College, uma escola especial para miúdos inteligentes, mas a longa viagem de comboio todos os dias, de Brooklyn até Manhattan, era demasiado extenuante para a minha mãe ou para a minha tia, que alternavam a levar-me de metro. Por isso, voltaram a meter-me na P.S. 99, uma escola para professores menores. Eu odiava todas as escolas e, provavelmente, teria retirado pouco ou nada de Hunter caso tivesse ficado.
A minha mãe estava sempre a censurar-me, perguntando-me o porquê de, tendo um QI tão alto, ser um tão grande idiota na escola. Exemplo da minha idiotice escolar: no secundário tive dois anos de espanhol. Quando entrei na universidade de Nova Iorque consegui convencê-los a deixarem-me fazer o primeiro ano de espanhol, como se fosse uma novidade absoluta. Acredita que chumbei?