Nasceu Allan Stewart Königsberg, em Brooklyn, há quase 84 anos. Curiosamente, o apelido é homónimo da cidade prussiana de Kant. E filósofo, um dos mais consumidos e estudados do nosso tempo, é o que Woody Allen tem certamente sido, mesmo que, muitas vezes, esses consumidores nem deem por isso, iludidos pela leveza e facilidade de absorção do meio cinema, por contraposição a catrapásios com a peitaça duma Crítica da Razão Pura.

Allen já por aqui anda há tanto tempo que é difícil discernir o que teríamos sido ao certo sem ele. Como seria o cinema e o humor, de que maneira olharíamos a velha guerra dos sexos, o amor ou a morte. Como se teria desenvolvido a auto-ironia na cultura ocidental. Quanto tempo teríamos demorado a transformar o nosso pessimismo existencialista numa gargalhada capaz de nos devolver, paradoxalmente, a alegria e o amor de estar vivo.

[o trailer de “Um Dia de Chuva em Nova Iorque”:]

Woody Allen, o intelectual judeu que tornou sexy a insegurança e a timidez do rato de biblioteca. Que fez da terapia um assunto confessável, conversável, a raiar o sofisticado. Que misturou no mesmo jogo e com a mesma dignidade piadas sobre arte contemporânea e masturbação. Que há mais de 50 anos torna mais tolerável a vida, com todas as suas perplexidades, por nos ajudar a desconstruir o que alcançam as nossas dioptrias – e o que lhes escapa.

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Este é um pequeno tour pelo seu pensamento, com dez paragens em dez citações simbólicas.

“Allan: O que é que fazes sábado à noite?
Mulher: Vou-me suicidar.
Allan: Então, e sexta?”
“O Grande Conquistador” (1972)

O filme de Herbert Ross é o único da lista que Woody Allen não realizou. Mas o woodyallenismo é bem visível no guião, escrito por ele, adaptando a sua própria peça de teatro original. Allan (Allen) está numa situação que é a quintessência do autor: amantes falhados, pessimismo existencial, o golpe de asa de, em meia dúzia de palavras, nos fazer rir da morte, ou de coisas ainda mais aborrecidas, como a depressão. Como ele diria num filme de animação não escrito por ele, mas muito à sua medida, “AntZ”, em que dá voz à protagonista Z: “Não é que eu tenha medo da morte, só não quero estar lá quando acontecer.” Ou, mais recentemente, em Cannes, na conferência de imprensa de “Vais Conhecer o Homem dos teus Sonhos”: “A minha relação com a morte permanece a mesma: sou completamente contra.”

“O amor é a resposta. Mas, enquanto esperas a resposta, o sexo levanta uma série de boas questões.”
Numa crónica para o “New York Times” (1975)

O amor e o sexo, em separado, ou assim, perfeitamente interligados, frequentemente condimentados com um travo a psicanálise. Há mais de 50 anos que Woody Allen nos pôs a falar sobre eles com inteligência, subtileza, dizendo sempre tudo, sem nunca ser gratuito. Citamos esta crónica como poderíamos citar qualquer filme – não há, provavelmente, um só deles em que não tenha reflectido sobre o tema. “O sexo alivia a tensão. O amor provoca-a”, expõe em “Comédia Sexual de uma Noite de Verão” (1982). “Trabalhei com Freud em Viena. Separámo-nos por causa da teoria da inveja do pénis. Freud achava que só se aplicava às mulheres”, diz, no ano seguinte, no seminal (é assim que se diz?) mockumentary sobre Leonard “Zelig”, que sofre da extraordinária capacidade de se adaptar ao que quer que esteja em volta. “Tenho um desejo intenso de regressar ao útero. Qualquer um”, arranca uma das mil gargalhadas daquela coisa torrencial que é “O ABC do Amor” (1972). Ou, no capítulo recorrente que sempre reservou ao tema do onanismo: “Não digas mal da masturbação. É fazer sexo com alguém que eu amor” (“Annie Hall”, 1977), ou, entre muitas outras que lhe são atribuídas, já sem sequer precisar a origem: “O sexo é como o bridge. Se não tens um bom parceiro, espero que ao menos tenhas uma boa mão.”

“Fui expulso da Universidade de Nova Iorque no primeiro ano por copiar no exame de Metafísica. Olhei para a alma do rapaz que estava sentado ao meu lado.”
“Annie Hall” (1977)

É Alvy Singer, a personagem de Woody Allen, que faz a piada durante um número de stand-up num dos seus volumes mais essenciais: “Annie Hall”. Na verdade, o próprio Allen já a tinha feito nos anos 60, nos seus tempos de jovem stand-up comedian à procura de um lugar ao sol. Ao longo dos anos, teria sempre essa extraordinária capacidade (não era o único – tínhamos os Monty Python’s – mas seria dos muito poucos) de fazer humor com temas metafísicos. “Será que podemos realmente ‘conhecer’ o universo? Meu Deus, é difícil não nos perdermos em Chinatown!”, escreve em “My Philosophy”, na New Yorker, em 69. Dois anos depois, em livro, “Getting Even”, sempre com um pé no ateísmo, no ceticismo, e outro na dúvida metódico-anedótica: “Não acredito numa vida depois da morte, mas, pelo sim, pelo não, trago sempre uma muda de roupa interior”.

“Sinto que a vida se divide entre o horrível e o miserável. São as duas categorias. Dentro do horrível, estão por exemplo, sei lá, doenças terminais, cegos, aleijados… Não sei como é que essas pessoas sequer conseguem levar a vida para a frente. É espantoso… Dentro do miserável, está tudo o resto. Portanto, devias agradecer por ser miserável. É uma sorte ser miserável!”
“Annie Hall” (1977)

Allen é um pessimista compulsivo, mas de um pessimismo estranhamente fresco, que há mais de 50 anos opera o milagre de nos pôr a sorrir. É um pessimismo mais revigorante que a maioria dos otimismos, arriscaríamos dizer, destilado em alegria, sublimado para nos oferecer outra atitude perante o mundo (já que não há qualquer hipótese de mudar esse mundo). Não nos tira o mito de Sísifo, não nos tira a pedra, não a torna sequer mais leve, não aligeira a inclinação da montanha, não nos dispensa do eterno recomeço; mas dá-nos um companheiro de viagem e auto-ironia, em vez de auto-comiseração.

Capítulo 1: “Ele adorava Nova Iorque. Idolatrava-a desproporcionalmente… Não, vamos dizer antes: ele… ele romanceava-a desproporcionalmente… Sim. Para ele, não importava a estação do ano, esta era uma cidade que ainda existia a preto e branco e pulsava ao som das grandes canções de George Gershwin.”
“Manhattan” (1979)

Talvez como nenhum outro realizador, Woody Allen ensinou-nos a geografia de Nova Iorque – ou, pelo menos, de Manhattan, ocasionalmente vista de Brooklyn – e a sentirmo-nos em casa lá sem sequer lá ter ido, ou tendo ido, em qualquer recanto. Da Broadway a Central Park, do Upper West ao Upper East, de TriBeCa a Riverside. Quase sempre ao som de grandes standards jazz, pela voz humana ou do clarinete. Em qualquer estação do ano, como diz nesta primeira tentativa de começo de romance Isaac Davis, argumentista frustrado, no começo de “Manhattan”, um dos mais icónicos documentos de Allen, emblema de uma das fases mais férteis da sua carreira, onde o humor se sujeitava, ordeiramente, à melancolia do preto e branco. Davis escreve, rasura e reescreve, oferecendo-nos mais traduções para os sentimentos possíveis por Nova Iorque, terminando neste:

Capítulo 1: ‘Ele era tão duro e romântico como a cidade que amava. Atrás dos óculos de massa pretos, fervilhava o poder sexual de um gato selvagem.’ Adoro isto! ‘Nova Iorque era a sua cidade, e sempre haveria de ser.’
“Manhattan” (1979)

“Não posso ouvir demasiado Wagner. Começa-me a dar vontade de invadir a Polónia.”
“O Misterioso Assassínio em Manhattan” (1993)

Outro ingrediente fundamental da filosofia alleniana: uma ampla bagagem cultural, a que acede sem esforço e redistribui sem pretensiosimo. Melhor: vem frequentemente temperada por um politicamente incorreto que, hoje, é mais necessário do que nunca. Alguns outros exemplos memoráveis:

“Não quero mudar-me para uma cidade onde a única vantagem cultural é poder virar à direita nos sinais vermelhos!” (“Annie Hall”, 1977, referindo-se a uma hipotética mudança de Nova Iorque para Los Angeles).

“Doris: Não tens valores! Contigo, é só niilismo, cinismo, sarcasmo e orgasmo. Harry: Ei, em França, podia candidatar-me a Presidente com esse slogan! E ganhava!” (“As Faces de Harry”, 1997).

“Tirei um curso de leitura rápida e li o ‘Guerra em Paz’ em 20 minutos. Envolve a Rússia.” (“Zelig”, 1983).

“A última vez que estive dentro de uma mulher foi quando visitei a Estátua da Liberdade.”
“Crimes e Escapadelas” (1989)

A auto-ironia e auto-depreciação como ferramentas de trabalho do humor, na sua longa e sempre inacabada obra de nos ensinar a não nos levarmos demasiado a sério. Woody Allen usa-as desde o primeiro dia, nos monólogos de stand-up, nos filmes e até nas entrevistas. “Falhei a entrada na equipa de xadrez por causa da minha altura” é uma dessas tiradas históricas que vem do tempo das atuações ao vivo. Numa conversa com admiradores, renitentes quanto à intenção de Allen dirigir uma ópera; “Não faço ideia do que estou a fazer. Mas a incompetência nunca me impediu de me atirar com entusiasmo a nada.” Em 1987, numa entrevista à Rolling Stone: “Uma vez, perguntaram-me se o meu sonho era viver no coração das pessoas; eu disse que preferia viver no meu apartamento.” Ou finalmente, noutra dessas máximas escritas na pedra que já dispensa contexto e que talvez nenhum guru contemporâneo da auto-ajuda desdenhasse: “O único obstáculo entre mim e a grandeza sou eu.”

“A vida não imita a arte; imita a má televisão.”
“Maridos e Mulheres” (1992)

Como bom filósofo, Woody Allen procura, fundamentalmente e debaixo do ruído de toda a parafernália de questões e punchlines, uma resposta à pergunta pelo sentido da vida. Isso reflete-se em múltiplas tiradas sobre o amor, a doença ou, simplesmente, o que aqui andamos a fazer, um dia após o outro, quase sempre redundando na perplexidade perante o absurdo. “Podes viver até aos 100 se deixares todas as coisas que te fazem querer viver até aos 100.” (“Intimidade”, 1978) “As pessoas deviam acasalar para a vida, como os pombos ou os católicos.” (“Manhattan”, 1979) “As palavras mais bonitas de toda a língua inglesa não são ‘Eu amo-te’; são: ‘É benigno’.” (“As Faces de Harry”, 1997)

“Se Deus existe, espero que tenha uma boa desculpa.”
“Nem Guerra, Nem Paz” (1975)

Intelectual, judeu, filósofo e pessimista. Sem surpresa, Deus é um dos alvos mais recorrentes na mira de Allen. “Não é só não haver Deus”, diz, numa das ‘quotes’ mais populares na net; “tentem lá encontrar um canalizador ao fim-de-semana”. Ateu convicto, admite, apesar de tudo, a possibilidade de estar errado – “Se ao menos Deus me disse um sinal claro! Por exemplo: um depósito generoso em meu nome, num banco suíço!”, num stand-up de 1973 – ou mesmo de haver algo mais do que apenas isto: “Acredito que há qualquer coisa lá fora a observar-nos. Infelizmente, é o governo.”

“80% do sucesso consiste em aparecer.”

A frase é abundantemente atribuída a Woody Allen, já sem localizar a circunstância exata em que teria sido proferida. A verdade é que o próprio não nega a paternidade, mas fez questão de lhe clarificar o sentido numa entrevista à Collider, em 2008:

“As pessoas estavam sempre a dizer-me que queriam escrever uma peça, queriam escrever um filme, queriam escrever um romance. A meia dúzia que efetivamente o fez ficou a 80% do caminho de acontecer alguma coisa. Todos os outros se excluíram sem sequer chegarem aí. Não conseguiam! Não tinham o que queriam porque nem sequer conseguiam fazer o que queriam. Se o fizeres, se escreveres realmente o teu argumento ou o teu romance, estás a mais de meio caminho de alguma coisa boa acontecer. Essa foi a lição mais importante que aprendi e que funcionou. Todas as outras falharam.”

Esclarecimento importante, certo? Portanto, à décima lição, deixamos o humor de lado. Porque Woody Allen é, para além de tudo o mais, um criador disciplinado e perseverante com quem talvez tenhamos ter muito a aprender, mesmo quando não está no auge do seu show. Não alcançou o sucesso por “aparecer” no sentido mais imediato que lhe poderíamos atribuir e que hoje talvez se confunda com 99% da receita, mas por “aparecer” todos os dias para trabalhar – por, digamos, se chegar à frente. Ao contrário de um certo desequilíbrio e imprevisibilidade que reconhecemos noutros criadores geniais e, porventura, temperamentais, Allen trabalhou sempre com a consistência e a regularidade de um relógio, pondo cá fora praticamente um filme por ano, há meio século. Teve momentos muito altos e outros mais baixos, foi o génio do ano muitos anos e despachado com duas frases irrelevantes no jornal noutros. Como o próprio dizia numa entrevista em 2007, a propósito da estreia de “O Sonho de Cassandra”, em qualquer dos casos, “não aconteceu nada”. O importante era continuar, se o criador, por ele mesmo, sentia que tinha de continuar. Quando ganhou os Óscares por “Annie Hall”, nem sequer foi à cerimónia. Não se deu ao trabalho de ir à cidade que deu à civilização a hipótese de se virar à direita nos vermelhos. Foi tocar clarinete ao Michael’s Pub, como de costume, todas as semanas, e, antes de se deitar, tirou o telefone do gancho. Só soube da notícia no dia seguinte, lendo o “New York Times”.

Talvez não seja obrigatória uma opção tão radical. Recolher os frutos do trabalho que se fez dá certamente ânimo para muitos mais. Mas, se quiser levar a sério os ensinamentos do outro senhor Königsberg, siga ao menos este último pedaço de sabedoria, debitado numa entrevista nos idos de 1980, bem antes da democratização do computador pessoal:

Se trabalhar pelo menos três a cinco horas por dia, vai tornar-se muito produtivo. É a regularidade que conta. Sentar-se em frente à máquina de escrever todos os dias é o que faz a produtividade.

Alexandre Borges é escritor e guionista. Assinou os documentários “A Arte no Tempo da Sida” e “O Capitão Desconhecido”. É autor do romance “Todas as Viúvas de Lisboa” (Quetzal).