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Luís Neves é diretor nacional da Polícia Judiciária desde junho de 2018
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Luís Neves é diretor nacional da Polícia Judiciária desde junho de 2018

FRANCISCO ROMÃO PEREIRA/OBSERVA

Luís Neves é diretor nacional da Polícia Judiciária desde junho de 2018

FRANCISCO ROMÃO PEREIRA/OBSERVA

Entrevista a Luís Neves. "Não existe o risco de o primeiro-ministro ter acesso a informações em segredo de justiça"

Diretor da PJ diz que é contra a transferência dos gabinetes da Europol e Interpol para o Sistema de Segurança Interna mas garante que a separação de poderes está assegurada.

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Na estreia do “Justiça Cega”, o novo programa e podcast da Rádio Observador dedicado à área da Justiça, o diretor nacional da Polícia Judiciária (PJ) analisa pela primeira vez a polémica transferência dos gabinetes nacional da Europol e Interpol para o Sistema de Segurança Interna. Luís Neves não hesita: diz que é contra a mudança na lei mas garante que o primeiro-ministro António Costa não terá acesso a informações em segredo de justiça. Se existisse esse risco, Luís  Neves teria apresentado a demissão.

Numa longa e rara entrevista, o diretor nacional da PJ elogia o escrutínio do Parlamento Europeu a esta ideia que António Costa tem vindo a tentar colocar em prática desde 2006 e apoia alterações legislativas que permitam reduzir as manobras dilatórias nos grandes processos económico-financeiros — que apelida de “terrorismo judiciário”.

Luís Neves aborda ainda a nova lei de acesso aos metadados, as competências do SEF que podem ser herdadas pela PJ, fala em pormenor sobre as prioridades da Judiciária (o combate à corrupção e ao cibercrime) e as suas preocupações em relação à segurança interna, com o tráfico internacional de droga e as ameaças ao primeiro-ministro holandês e ao ministro da Justiça belga à cabeça.

O Parlamento Europeu alertou o Governo sobre um “um risco inerente de interferência política ou acesso indevido de informações sobre investigações criminais em curso” com a saída dos gabinetes da Europol e da Interpol da PJ para o Sistema de Segurança Interna, que depende diretamente do primeiro-ministro. Esse risco é real? António Costa poderá ter acesso a informação de investigações em segredo de justiça?
Não. Até porque, se sentisse que existia esse risco, a PJ — que é contra esta alteração e o tem expressado desde há anos — também o teria dito. E, se existisse esse risco, também se colocaria a questão de até que ponto é que a direção nacional da PJ teria disponibilidade para continuar a exercer o seu mandato. Costumo dizer que a confiança é nos dois sentidos: de quem nomeia e de quem é nomeado. A minha confiança mantém-se porque entendo que não há esse risco. Desde a primeira vez que esta situação se colocou — há muitos anos e antes mesmo de eu assumir estas funções — os meus colegas que me antecederam sempre se opuseram a esta transferência. O que é certo é que a mesma está formalizada desde 2017. O PUC – Ponto Único de Contacto [que reúne todas as linhas de comunicação da cooperação policial internacional] existe e funciona nas nossas instalações.

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Há uma recomendação europeia de que o PUC funcionasse sob a alçada da mesma estrutura, sendo certo que o Gabinete Sirene, que funcionava na dependência do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, também tem de fazer parte do PUC. Ora, a partir do momento em que o Gabinete Sirene passou para a alçada do Sistema de Segurança Interna, faltava juntar os gabinetes nacionais da Europol e da Interpol. Por outro lado, o atual secretário-geral da Segurança Interna [Paulo Vizeu Pinheiro] conseguiu encontrar um ponto de equilíbrio que nos parece adequado. A decisão política [na Assembleia da República] está prestes a ser tomada. Apesar de termos manifestado a nossa posição contrária — propusemos outros figurinos que poderiam respeitar a recomendação da Avaliação Schengen — e tendo em conta a inserção da PJ em sede de cooperação policial internacional, em que cerca de 90% das matérias discutidas são da nossa responsabilidade face à Lei de Organização da Investigação Criminal…

"A intervenção da Comissão LIBE, do Parlamento Europeu, é importante. É importante que exista escrutínio, vigilância e contraditório ao poder político. Isto é a democracia, e o seu sistema de checks and balances nacionais e europeus, a funcionar."
Luís Neves, diretor nacional da Polícia Judiciária

É a PJ quem mais beneficia deste sistema de cooperação policial internacional.
Não é tanto quem mais beneficia. Todas as forças policiais (GNR, PSP, Autoridade Tributária, Polícia Marítima, ASAE, etc.) beneficiam e precisam de aceder a este sistema de cooperação. Foi já no meu mandato que foram criadas essas condições. Estava escrito na lei que qualquer uma dessas forças poderia ter um oficial de ligação na PJ e isso foi concretizado.

Há uma efetiva cooperação entre a PJ e as outras forças policiais, no que diz respeito ao acesso aos canais de cooperação policial internacional?
Sim. Desde que assumimos funções nunca ninguém até hoje verbalizou um único caso em que a cooperação não tivesse ocorrido. O que quero dizer sobre esta questão [transferência dos gabinetes da Europol e da Interpol para o Sistema de Segurança Interna] é o seguinte: tem de haver ordem, disciplina e respeito pela lei e pelo poder democrático. Nós somos nomeados. Ou concordamos ou não concordamos com o que é decidido. Se tivermos uma discordância que fira os nossos valores e os nossos modelos de vida, temos um caminho certo…

Que é sair.
… que é sair. Não é esse o caso.

O PS apresentou na Comissão de Assuntos Constitucionais do Parlamento uma alteração de última hora à sua proposta de lei original, na qual mantém a transferência dos gabinetes nacionais da Europol e da Interpol para o Sistema de Segurança Interna mas assegura que a respetiva gestão ficará sempre a cargo de quadros da PJ. É esta a solução equilibrada que o deixa a si e à direção nacional da PJ mais confortáveis?
Também. Não quero dizer com isto que os colegas de outras forças policiais não tenham credibilidade para assumir essas funções. É apenas porque o sistema está vocacionado para isto. Não faria sentido de que quem tem a competência para investigar a criminalidade organizada mais grave, mais violenta, mais transnacional, ficasse arredado da liderança de um mecanismo de cooperação com estas características. Também quero dizer o seguinte: a intervenção da Comissão LIBE [comissão do Parlamento Europeu que alertou para o perigo de violação da separação de poderes] é importante. Há uns anos, a Comissão LIBE também deu um alerta importante na questão dos registos de identificação dos passageiros de transporte aéreo que eram transmitidos aos Estados-membros [dados PNR na sigla inglesa] — que acabou por se resolver. É importante que exista escrutínio, vigilância e contraditório ao poder político. Isto é a democracia, e o seu sistema de checks and balances nacionais e europeus, a funcionar. A PJ não concorda com esta alteração mas a decisão está tomada. A PJ vai dar o melhor de si para que esta alteração corra pelo melhor. Aliás, já o estamos a fazer, visto que alertamos o senhor secretário-geral da Segurança Interna para um conjunto de questões acessórias e colaterais que podiam correr mal e era a imagem do país que iria estar em causa. Com a direção nacional da PJ não contam para ser uma força de bloqueio, antes pelo contrário.

Tendo em conta essa posição da Comissão LIBE, e em defesa do princípio da separação de poderes, não seria mais eficaz que os sistemas informáticos de gestão da cooperação internacional ficassem nas instalações da PJ?
Não temos qualquer notícia de que tenha ocorrido alguma exfiltração ou intromissão. Por outro lado, os funcionários da PJ que funcionam nestes gabinetes de cooperação policial internacional são exatamente os mesmos. Os funcionários são sérios. Costumo dizer que a PJ tem duas tutelas. Tem a tutela política porque eu sou nomeado pelo primeiro-ministro e pela ministra da Justiça — portanto, tem de haver uma confiança para que a política criminal seja seguida, porque, enquanto força de segurança, a PJ depende do poder político. E tem a tutela da senhora procuradora-geral da República enquanto órgão de polícia criminal. E as coisas não se podem misturar.

Enquanto democracia, já percorremos um longo caminho para que a separação de poderes e a independência do poder judicial seja uma realidade clara.
Sim, já percorremos esse longo caminho. Já trabalhei noutras circunstâncias e noutros cargos com governos com outra origem política e nunca senti que houvesse essa intromissão política. Saliento também que, quando estamos a falar de determinado tipo de informação criminal — que possa tocar em eventuais interesses políticos — o Ministério Público (MP) tem outros canais, nomeadamente através do Eurojust, através dos quais é possível trocar informação mais sensível, de forma mais resguardada — até é trocada pessoalmente, se for caso disso.

A informação financeira e bancária é sempre trocada no âmbito da cooperação judiciária internacional.
Exatamente. É importante o debate e o confronto de ideias, é importante vermos os aspetos positivos e negativos. A partir do momento em que a decisão está tomada, a decisão também é minha e a PJ fará tudo para que esta ideia resulte.

Ponderou demitir-se durante este processo?
Não, não. Nem fazia sentido demitir-me numa altura em que a PJ está a fazer um caminho de recuperação extraordinário.

“Os processos do crime económico têm uma fase de terrorismo judiciário, com recursos permanentes. Temos de alterar isso”

A morosidade da Justiça é uma das grandes preocupações do país nos últimos anos. Se olharmos para os tempos médios de resolução de um processo penal, percebemos que os casos de criminalidade comum demoram cerca de 383 dias. Esse tempo médio dispara para cerca de 10 anos quando analisamos apenas os processos da criminalidade económico-financeira. Que soluções podemos ter para reduzir essa discrepância?
Esse problema tem várias causas. Em primeiro lugar, a cultura de investigação criminal. Não podemos olhar para este tipo de processos com uma lógica de “um processo/um homem”. Esse tipo de inquéritos mais complexos da criminalidade económico-financeira têm de ter uma abordagem multidisciplinar.

Procuradores, inspetores…
E peritos. Do lado da PJ, a questão das perícias é muito importante. Nós temos, entre outras, perícias informáticas, digitais e contabilísticas-financeiras. Quando chegamos, tínhamos perícias atrasadas desde 2013/2014. As perícias contabilísticas-financeiras estão em dia e praticamente estamos a conseguir realizá-las ao momento. Mudamos também a filosofia de trabalho, estabelecendo um espírito de equipa. O magistrado do MP, titular do inquérito, contacta diretamente com os nossos peritos e diz o que precisa ou tira as dúvidas que entender.

Diferentes momentos da entrevista de Luís Neves ao programa "Justiça Cega" da Rádio Observador

FRANCISCO ROMÃO PEREIRA/OBSERVA

As guerras entre a PJ e o MP pertencem ao passado?
Isso comigo acabou, até porque não há nenhuma razão para que exista. Deixe-me só terminar a questão das perícias informáticas e digitais — que é um grande busílis da questão no combate à corrupção e onde estamos a fazer um grande investimento. Se fizermos uma busca a uma grande empresa ou a uma entidade governamental, trazemos de lá com autorização judicial uma grande quantidade de equipamentos eletrónicos: computadores, telemóveis, discos rígidos, pens, etc, que contém milhões de documentos que, antes da era digital, necessitariam de um camião TIR para trazer tanto papel. Antes não tínhamos uma estrutura vocacionada para lidar com essa quantidade avassaladora de trabalho. Criamos em 2019, com a nova lei orgânica, um nova unidade: a Unidade de Perícias Tecnológicas e Informáticas. Muitos dos peritos que estamos a contratar é para essa área. Estamos a comprar com fundos nacionais e europeus a melhor tecnologia de ponta para fazermos essas perícias. Temos de investir porque não podemos estar a pedir a países estrangeiros que nos façam esse tipo de perícias. Por exemplo, estamos a recrutar mais peritos para a área computacional e informacional para criar ferramentas de pesquisa digitais que nos permitam tornar todos os documentos pesquisáveis, que ordenem os mesmos e que tenham uma síntese para serem apresentados em inquérito e um julgamento. Posso dizer que recebi recentemente um relatório sobre essa matéria e constatei que reduzimos drasticamente as nossas pendências. Ainda há tempos elevados, demasiado elevados em algumas áreas, mas estamos muito empenhados em reduzir os mesmos.

Está a falar de soluções para a fase de inquérito. Mas há outras soluções na fase do julgamento e na de recursos para reduzir a discrepância de 1 para 10 anos que referi.
Sim, claro. Os delitos de natureza comum, como já disse, têm um tempo médio de resolução de cerca de um ano. Quando passamos para outro tipo de processos da criminalidade económico-financeira, temos outra plêiade de advogados e outra capacidade económica…

Daí que se fale numa justiça para ricos e outra para pobres.
Eu sei que os senhores advogados não vão gostar do que vou dizer mas não tenho problemas em dizê-lo: quando começam esses processos de criminalidade económico-financeira, entramos numa fase de terrorismo judiciário, com recursos permanentes e incidentes processuais que entorpecem os autos até que se chegue a uma decisão final.

Devemos alterar a lei para se reduzir essas manobras dilatórias?
Naturalmente.

O presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) disse na sua primeira entrevista ao Observador que há “um excesso de garantias de defesa” e que “se queremos ter uma justiça rápida, temos de cortar com isso”. Concorda?
Li essa entrevista com muita atenção e subscrevo tudo o que o senhor presidente do STJ disse a esse propósito. De facto, temos de corrigir isso, em defesa do Estado de Direito democrático. Desde que começa o inquérito, e com todos os recursos interlocutórios e com todos os incidentes processuais que a lei permite, até que se chegue a uma decisão final… Nós temos a investigação, a instrução, julgamento, recursos para a Relação, para o Supremo, para o Constitucional. Os recursos para o Constitucional são apreciados por um juiz mas ainda têm recurso para o plenário… Temos de alterar esse sistema.

"Quando começam os processos do crime económico, entramos numa fase de terrorismo judiciário, com recursos permanentes e manobras dilatórias que entorpecem os autos até que se chegue a uma decisão final. Subscrevo tudo o que o senhor presidente do Supremo disse: temos de corrigir as manobras dilatórias em defesa do Estado de Direito democrático."

Fariam sentido ideias que acabaram por cair ou serem modificadas na versão final da Estratégia Nacional Contra a Corrupção, como uma colaboração premiada mais ambiciosa ou os acordos de sentença para acelerar mais o tempo de resolução?
Sim, na primeira parte. Podíamos e devíamos ter ido bastante mais longe em termos de colaboração premiada. Temos um prazo demasiado curto para que as pessoas digam se querem colaborar. Segundo a minha experiência no combate ao crime organizado, quem colabora com a Justiça, acaba por ser condenado de forma muito séria. E isso não pode acontecer. Temos de encontrar uma forma de encarar a colaboração com a Justiça que permita a descoberta da verdade material. Obviamente que o interesse de quem colabora é não ser condenado a uma pena elevada. Mas temos que valorar essa colaboração na decisão final. E independentemente da área (não é só na corrupção) e independentemente dessa colaboração ter ocorrido dois, quatro, seis meses ou até mesmo depois de a pessoa ser eventualmente detida. Ressalvando, contudo, que o juiz ou o coletivo de juízes têm a independência para avaliar essa colaboração. Já nos acordos de sentença, tenho mais dúvidas. Porque nos aproximamos de um modelo anglo-saxónico de negociação que pode fazer com que situações iguais sejam tratadas de forma diferenciada.

Será uma boa ideia criar um novo tribunal de julgamento que seja uma continuidade do sistema especializado e de competência territorial nacional que nasceu de um Tribunal Central de Instrução Criminal e do Departamento Central de Investigação e Ação Penal.
É preciso que o MP siga uma estratégia diferente daquela que tem sido seguida. Há um gap muito grande que prejudica o interesse e a materialização da justiça. Enquanto que a defesa é sempre a mesma — são os mesmos advogados que acompanham a investigação, o julgamento e os recursos —, os procuradores costumam mudar. Isso é terrível! Nomeadamente nos casos mais complexos.

Sempre que o MP seguiu a estratégia que está a defender, correu genericamente bem. E isso está a ser posto em prática na Operação Marquês e no caso Universo Espírito Santo.
E corre bem porque há razões intrínsecas para isso: conhecem o processo de uma ponta à outra, conhecem bem a prova e sabem defender a posição da acusação. Obviamente que o MP também vive, como nós, com grandes dificuldades de meios. Há muitos magistrados de grande categoria que estão a sair. Eu sei que a senhora procuradora-geral partilha desta preocupação de um determinado conjunto de magistrados acompanharem a fase de inquérito, de instrução, de julgamento e de recursos. Há investigações que valem uma vida de um inspetor ou de um procurador.

“Estamos preparados para assumir a divisão de competências do SEF mas temos de ter acesso às suas bases de dados”

Como está o processo de extinção do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), do ponto de vista das competências de órgão de polícia criminal. A PJ vai herdar todas as competências do SEF nessa área?
Que tenhamos conhecimento, após a Avaliação Schengen que vai decorrer brevemente, o Governo vai dar sequência à sua intenção [de extinguir o SEF] e criar a Agência Portuguesa para as Migrações e Asilo que não deverá ter estatuto de órgão de polícia criminal. Se a decisão for a de se manter a divisão de competências com o SEF, a PJ está preparada para continuar a assumir as competências de investigação criminal para os quais já temos competência: o tráfico de seres humanos e o auxílio à imigração ilegal e os respetivos crimes conexos.

FRANCISCO ROMÃO PEREIRA/OBSERVA

Este período de transição que estamos a viver está a provocar algum tipo de constrangimento na investigação desse tipo de criminalidade?
Sim, pode causar algum constrangimento, nomeadamente na investigação dos crimes de auxílio à imigração ilegal. Estamos a criar canais de comunicação com as pessoas do SEF que estão à frente da investigação criminal para tentarmos perceber o que estão fazer — sem atropelos de ninguém e com respeito por todos e, sobretudo, para que não exista nenhum tipo de vazio em termos criminais. Já o disse no Parlamento: a PJ precisa de ter acesso às bases de dados do SEF para conseguir investigar os crimes de auxilio à imigração ilegal e respetivos crimes conexos. O que se passa hoje é que para termos acesso às autorizações de residência, às autorizações de residência para investimento, etc., temos de fazer um email, por exemplo, com 500 pedidos e a investigação tem de parar enquanto a resposta não chega.

Há alguma previsão de quando a PJ terá acesso direto a essas bases de dados?
A partir do momento em que se faça a divisão das competências do SEF, não pode ser criado um vazio, o que faria com que nenhum órgão de polícia criminal tivesse acesso a essas bases de dados. O que temos feito ver é que é necessário termos esse acesso direto.

Tendo em conta o conhecimento que tem do terreno, há alguma relação direta que se possa fazer entre um aumento de imigração ilegal e o aumento de uma criminalidade mais violenta?
Não. Nós vivemos esse fenómeno entre 2007 e 2009, potenciado pela reforma penal de 2007 que entrou em vigor sem vacatio legis [período de tempo que medeia entre a publicação de um diploma e a sua entrada em vigor]. Isso levou à libertação de mil e tal pessoas e levou a um pico de criminalidade violenta associada às vagas de imigrantes. O mesmo aconteceu durante os anos 90 com uma vaga de migrantes do leste europeu, pós-queda do Muro de Berlim. Agora isso não está em causa.

“O combate à corrupção e ao cibercrime são as nossas prioridades”

Continuam a ser regulares as queixas do MP e da própria PJ sobre a falta de meios, o que tem como consequência um aumento do tempo médio das investigações. Anunciou a 26 de setembro a entrada de 97 inspetores para os quadros da PJ. O Governo está mesmo a apostar no reforço dos meios ou o investimento ainda está aquém das necessidades?
Quando assumi funções em junho de 2018, a PJ tinha cerca de 970/980 inspetores com uma média de idades muito acima de 50 anos. Havia um certo desânimo. A partir daí, e mesmo tendo em conta a pandemia, conseguimos fazer entrar nos quadros da PJ cerca de 360 inspetores. Nos próximos meses estará concluída a contratação e a formação de 65 peritos. Havia 11 anos que a PJ não recrutava um perito. No dia 26 de setembro tivemos, de facto, uma cerimónia histórica nas nossas instalações, onde recebemos uma vez mais o senhor primeiro-ministro, a nossa ministra da Justiça, o ministro da Administração Interna, entre outros convidados.

"Conseguimos que entrassem nos quadros da PJ cerca de 360 inspetores desde 2018. Nos próximos meses estará concluída a contratação e a formação de 65 peritos. Também conseguimos que o Executivo aprovasse um plano plurianual entre 2022 e 2026 para a contratação de mais 150 inspetores, 50 peritos e 20 seguranças. A direção nacional tem agora um plano para investir e definir as prioridades de investimento."

Até se emocionou um pouco.
Emocionei-me um pouco por esta ser uma missão coletiva. Este ano, recebemos 200 pessoas na investigação criminal.

Isso é suficiente?
Já lhe vou responder a isso. Pela primeira na nossa história, vamos receber no mesmo ano quadros por via de dois cursos que conseguimos abrir com a autorização do Governo. Também conseguimos que o Executivo aprovasse um plano plurianual entre 2022 e 2026 para a contratação anual de mais 150 inspetores, 50 peritos e 20 seguranças. Isto é, vão entrar até 2026 um total de 750 inspetores, 250 peritos e 100 seguranças. A direção nacional tem agora um plano para investir e definir as prioridades de investimento.

Qual é a área preferencial de investimento definida pela direção nacional da PJ para os próximos anos?
O Governo anterior aprovou uma Estratégia Nacional Contra a Corrupção e nós apresentamos um plano estratégico à tutela que define o combate à corrupção e à criminalidade económico-financeira associada como a nossa prioridade. Seguido pelo cibercrime, que tem tido um aumento exponencial — não só em termos quantitativos, mas também termos de gravidade dos ataques a infra-estruturas críticas para o país, quer públicas, quer privadas. Este último ano foram conhecidos ataques de grande relevo. Foi no âmbito dessa proposta estratégica, que o Governo veio ao nosso encontro em termos de reforços de meios e aos interesses da instituição para levar a cabo a sua missão. Queremos que as pessoas que estão a entrar fiquem muitos anos nas respetivas unidades, para retermos conhecimento e ganharmos know-how. Queremos formá-los e dar-lhes um conhecimento específico em áreas determinantes, como os fundos europeus, a contratação pública, o direito bancário, o direito urbanístico ou as sociedades offshore.

“O tráfico de estupefacientes regressou em força”

De acordo com o último relatório de segurança interna, continuamos com níveis de criminalidade historicamente baixos — o que é um facto económico fundamental para um país, como Portugal, que depende muito do turismo e do investimento estrangeiro. Já falou do cibercime. Essa é a área que mais o preocupa, em termos de segurança interna?
A corrupção e o cibercrime são as nossas principais preocupações. A primeira área porque é um atentado contra todos nós. Costumo dizer que quando estamos a combater a corrupção, estamos a tratar de direitos humanos porque tem a ver com a distribuição da riqueza. Se conseguirmos combater com eficácia a corrupção, estamos a dotar o Estado de mais meios para combater a pobreza e as franjas de miséria que ainda existem na nossa sociedade. O cibercrime aporta muito em termos de criminalidade transnacional porque muitos dos ataques informáticos têm origem no estrangeiro. Por outro lado, há burlas em massa (os casos do MB Way e outros), enormidades de transferências bancárias e respetivas ações de branqueamento de capitais. Mas temos outras vertentes de preocupação. Passadas décadas, temos novamente o regresso do tráfico de estupefacientes em grande força. Quer em termos nacionais, quer em termos internacionais, o lucro permitido pelo tráfico de droga é a principal causa de violência. Há homicídios e raptos cometidos pelo domínio do território, há brutais operações de branqueamento de capitais sempre orientadas para os mesmos países — tudo em nome do tráfico internacional de estupefacientes. Pela primeira vez na história da Europa, temos o primeiro-ministro holandês e o ministro da Justiça belga a serem ameaçados diretamente devido ao tráfico internacional de droga e a serem obrigados, assim como os familiares mais diretos, a andar com segurança reforçada.

"O tráfico de estupefacientes regressou em grande força e é a principal causa de violência. Há homicídios e raptos cometidos pelo domínio do território, há brutais operações de branqueamento de capitais — tudo em nome desse tráfico internacional. Temos o primeiro-ministro holandês e o ministro da Justiça belga a serem ameaçados diretamente devido a essa criminalidade."

Isso nunca aconteceu em Portugal?
A esse nível político, não. Temos que olhar com grande preocupação para este tipo de ameaças. Outra questão são os extremismos. Não só em termos de terrorismo, mas também extremismos politicamente motivados, quer à esquerda, quer à direita, que têm uma fortíssima implantação nas redes sociais, doutrinando e radicalizando os mais jovens. Isso é muito perigoso para o tipo de democracia ocidental, de vetor humanista, que nós temos. Temos instrumentos jurídicos que nos permitem combater estes fenómenos e estamos a fazê-lo. Em termos de crimes de rua, que são aqueles que podem ter uma maior perceção de insegurança aos cidadãos, temos tido uma resposta eficaz. Esse é um trabalho articulado com a GNR e com a PSP, que juntas têm cerca de 44 mil homens inseridas no terreno. E digo isto desde o início: se não fosse essa ação concertada com a GNR e a PSP, Portugal não tinha a sensação de segurança que tem. Na semana passada, desmantelamos um grupo organizado que assaltava casas de estrangeiros na zona de Cascais. Havia inclusive pessoas que estavam a pensar em regressar aos seus países. Em conjunto com outros órgãos de polícia criminal, conseguimos resolver a questão.

Somos efetivamente um dos países mais seguros do mundo?
Sim, somos. O nosso país é procurado por cidadãos dos cinco continentes devido a esse vetor da segurança. Não temos assaltos, homicídios ou raptos nas nossas ruas, como outros países têm. Não tendo procuração das outras forças policiais, todos temos noção de que o nosso trabalho diário é relevante para a economia do país, nomeadamente para o turismo. Há efetivamente um grande sentimento de segurança.

“A nova lei não vai ao encontro das necessidades da investigação criminal”

Falando da nova lei de acesso aos metadados que está em discussão no Parlamento para colmatar a inconstitucionalidade detetada, na sequência de uma decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia. A proposta em cima da mesa vai permitir dar instrumentos à PJ para continuar a fazer o seu trabalho?
Este tema não é só da PJ, é uma questão central para a Justiça. As grandes organizações criminosas cresceram muito em termos de meios. Têm comunicações encriptadas, têm comunicações de satélites, utilizam a Darkweb, utilizam as criptomoedas para branquearem capitais, têm capacidade financeira para contratarem os melhores peritos informáticos, de segurança, de direito bancário e financeiro. Nós, órgãos de polícia criminal, não estamos a conseguir acompanhar este desenvolvimento. Isto já é grave. Mais grave ainda: o pouco que temos, querem-nos retirar. A proposta que está em discussão no Parlamento pode minimizar mas não vai ao encontro das necessidades da investigação criminal. As pessoas desenganem-se: as operadoras têm os dados dos cidadãos bem guardados. Não há notícia de que alguma vez essas bases de dados tenham sido alvo de intromissões ou tenham sido exfiltradas. Há um conjunto de bases de dados do próprio Estado (da Segurança Social, da Autoridade Tributária, etc.) que têm um conjunto de informação privada muito superior e não têm a guarda devida — e são exfiltradas, como sabemos.

"As operadoras de telecomunicações têm os dados dos cidadãos bem guardados. Não há notícia de que alguma vez essas bases de dados tenham sido de alvo de intromissões. Há um conjunto de bases de dados do próprio Estado (da Segurança Social, da Autoridade Tributária, etc.) que têm um conjunto de informação privada muito superior e não têm a guarda devida — e são exfiltradas, como sabemos."

O problema, contudo, reside numa decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia.
Sim, é onde está o busílis da questão. Nós vamos organizar uma reunião em Portugal no início do próximo ano com as polícias europeias e o apoio da direção executiva da Europol, para a qual iremos dirigir convites ao Parlamento Europeu (à Comissão LIBE, naturalmente) e ao Tribunal de Justiça da União Europeia. O Tribunal faz uma interpretação a latere do artigo 52.º da Carta Europeia Direitos Fundamentais. A Carta diz que o acesso às bases de dados tem de ser proporcional. Ora, o Tribunal faz uma interpretação de quem não percebe rigorosamente nada do que é investigação criminal. E que permite apenas dotar um acesso aos metadados que não nos serve para nada. Há outro contra-consenso: a União Europeia está investir fortemente em inteligência artificial. Ora, a inteligência artificial vive de metadados. E as forças policiais precisam desses metadados para prevenir o crime, nomeadamente na área do terrorismo. Eu pergunto: como é possível a União Europeia estar a investir em inteligência artificial e termos o Tribunal de Justiça com uma decisão vinculativa desta natureza? Nós vamos lutar para termos direito a ter meios de investigação mais intrusivos. O que está em causa é encontrar um equilíbrio entre o direito à privacidade e o direito do Estado em materializar a Justiça e assegurar a segurança da comunidade.

As fraudes com fundos europeus é algo que preocupa muito a opinião pública. Não podemos repetir os erros do passado e desperdiçar os fundos do PRR e de outras linhas de financiamento comunitários. A PJ e o sistema judicial estão hoje mais preparados para combater a fraude com fundos comunitários do que estavam nos anos 80 e 90?
Felizmente que estamos. Os anos que refere foram catastróficos para nós, enquanto país, na área dos fundos europeus. Recordo-me que o Vale do Ave foi uma das zonas do país que teve mais acesso aos fundos europeus e o dinheiro era desviado para os Porsches amarelos e para os Ferraris e para outras coisas. Não voltaremos a ter esse patamar de desleixo e de incúria. Nós estamos mais preparados, a comunidade também está muito mais atenta. O MP criou um think tank, do qual também fazemos parte, para pensar e ajudar no escrutínio destas matérias. A Procuradoria Europeia também está muito focada nestas questões e nós temos projetada uma formação profunda para todos os nossos profissionais. A PJ vai comemorar o seu aniversário a 20 de outubro no Porto — já o ano passado descentralizamos e comemoramos em Braga — e vamos ter uma preleção do professor Damião da Cunha sobre esta temática dos fundos europeus. A senhora procuradora-geral tem feito um grande vinco no combate à fraude dos fundos europeus e nós comungamos totalmente dessa ideia.

A história do Chiquitá

No “Justiça Cega” queremos ouvir uma história ou situação que tenha marcado a carreira do nosso convidado para o “Testemunho” de cada semana. Luís Neves, que história nos traz?
São muitas… Guardo uma história do início da minha carreira, ainda era estagiário, que está relacionada com um gangue violento que assaltava bancos, agências dos CTT, carrinhas de transporte de valores, etc. A Direcção Central de Combate ao Banditismo conseguiu desmantelar o grupo, que era muito bom e numeroso (eram cerca de 16). Um dos membros mais novos que foi detido era o Chiquitá, que me tratava sempre por “Chefe Neves”.

O Chiquitá dizia que não tinha bens de primeira necessidade, que não tinha nada. De facto, tinha vivido uma vida miserável e era um saltimbanco. Quando foi detido, comprei-lhe num supermercado — localizado em frente à Judiciária mas que já não existe hoje — uma escova de dentes, um champô, pasta de dentes e, entre outras coisas, um par de ténis novos. Ofereci-lhe aquilo perante o olhar desconfiado dos meus colegas, polícias com mais de 30 anos de carreira, gente dura que tinha combatido as FP-25. Eu vinha da advocacia, onde tinha feito muito penal.

Passados uns 4 ou 5 meses, começa a surgir outra vaga de assaltos a bancos. Nós estávamos descansados porque aquele grupo de 16 elementos estava detido. Quando começamos a ir aos bancos, a descrição que temos é que o modus operandi do assalto era o mesmo que o grupo dos 16. Além disso, o primeiro assaltante, que era muito ágil (mas coxeava), saltava para cima do balcão e sacava da arma. Constatamos rapidamente que era o Chiquitá, o nosso ‘cliente’. Tinha fugido da prisão algum tempo depois de ser detido e tinha fraturado um pé na fuga. Foi o tempo de consolidar a fratura, para começar a voltar a assaltar e fugiu com os ‘meus’ ténis. (risos)

Claro que fui alvo de chacota pelos meus colegas durante uns tempos — uma chacota saudável, claro. Mas eu dizia-lhes: “Vocês esquecem-se que uma das provas que temos é a marca da sola dos ténis que eu lhe ofereci que estava num dos balcões”. (risos) O Chiquitá foi detido novamente mas voltou a fugir mais quatro ou cinco vezes e voltou a fazer assaltos. Ele era sempre recapturado pela DCCB.

Deduzo que tenha mudado de ténis.
Sim, depois disso foi mudando de ténis. É evidente que nós vivemos sempre momentos de tensão — de violência, de arma contra arma, há capturas que são difíceis, há crimes hediondos que investigamos — mas digo sempre: os suspeitos devem ser tratados sempre com urbanidade, com humanismo, dentro da lei, porque nós estamos sempre a ganhar com isso. Quando um detido é bem preso, ele percebe que perdeu o jogo. Desde que não sejam quebrados os laços familiares mais diretos, esse é sempre o primeiro passo para ressocialização do detido, para o detido ser reinserido na sociedade após cumprir a pena e não voltar a praticar crimes.

O programa “Justiça Cega” vai para o ar todas segundas-feiras na Rádio Observador, a seguir ao noticiário das 13h.

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