Foi um fiel entre os fiéis e dentro desses, porventura, o mais fiel. Pedro Santana Lopes pode por isso — embora não o faça — reclamar-se da convicta constância com que sempre serviu Sá Carneiro. Começou a trabalhar com ele aos 22 anos, convidado pelo próprio Sá Carneiro, com quem nunca se confrontaria nem romperia. Viu e ouviu muita coisa, não esqueceu nenhuma. É essa fidelidade que hoje lhe confere a legitimidade que me interessou: a de alguém que pudesse percorrer o “sá carneirismo” com atento conhecimento de causa. Não usou de saudosismo estéril, antes de boa memória, rigor e igual gosto pelo combate político.
O resultado será porventura por muitos confundido — erradamente — com uma hagiografia, enquanto outros recordarão ou descobrirão porque é que Sá Carneiro mereceu a pena ao país:
“ O dr. Sá Carneiro viveu e morreu sem nunca ver uma democracia plena em Portugal. Foi esse o seu grande combate, sempre o mesmo.” Subentendido: o que explicará tudo o resto, das acusações de “radicalismo”, à estranheza de certas atitudes, passando por cisões e dissidências.
Pelo caminho desta conversa passou, tão fugaz como pesada, a sombra da sua saída do PSD – que abandonou para sem êxito fundar a Aliança; Rui Rio; a ainda muita incerta reaproximação aos “seus” de sempre; o convite sobre o qual recusou pronunciar-se para “roubar” uma autarquia aos socialistas. Em nome do PSD, claro. Ele não disse, mas eu percebi.
Que idade tinha quando conheceu Sá Carneiro? Lembra-se do vosso primeiro encontro?
Tinha 22 anos. Conheci-o no Congresso do Cinema Roma, em Julho de 1978, quando voltou à liderança do PSD, que abandonara sete ou oito meses antes. Eu estava a intervir quando o dr. Sá Carneiro, nos bastidores, ouviu um ruído de aplausos e perguntou “o que era aquilo”. O António Sande Lemos disse-lhe que “era aquele miúdo de Direito que estava a falar”. Ele pediu então que me fossem buscar, queria conhecer-me e… foi assim.
Um dos “destinos” do PSD é fabricar congressos tumultuosos. O Congresso do Roma, que marcou o regresso de Sá Carneiro, não fugiu à regra.
Não! Foi onde ocorreu a confrontação com as “Opções Inadiáveis” e as tais palmas que o dr. Sá Carneiro ouvia eram justamente a propósito da minha intervenção contra o grupo das Opções e a defendê-lo a ele, veementemente. Ou seja, a fazer o que entendia que se devia fazer naquele momento no PSD.
Já era militante?
Já, já, desde os 19 ou 20 anos. Aderi em 1976.
Porquê? Havia mais partidos.
Olhe, muito por causa dele. Quase só por causa dele. A definição ideológica entre os partidos em Portugal era uma coisa estranha, sempre foi um bocadinho. Eu tinha a mania de dizer que era de centro — nunca me olhei propriamente como de direita —, sentia-me mais próximo do centro-direita. Tanto que nunca me ocorreu sequer hesitar entre o PSD e o CDS… Hesitei sim, imagine, entre o PSD e o PS…
Quem diria?!
Mas o facto de o Partido Socialista naquela altura se afirmar fortemente como de inspiração marxista aclarou-me a decisão: já lera o suficiente para saber que recusava o marxismo. E a forte personalidade do dr. Sá Carneiro fez o resto: escolhi o PSD, nessa altura ainda PPD.
O que era a “personalidade” de Sá Carneiro? O que é que isso significava, em que se traduzia?
Na coragem. E na espantosa clareza dos seus propósitos.
Quando ouviu falar dele pela primeira vez? Só a partir de Abril de 74?
Não. Quando tinha uns 15, 16 anos, o meu pai recomendava-me que lesse os “Visto” do Expresso, a coluna que o dr. Sá Carneiro lá escrevia todos os sábados. E isto é engraçado porque o meu pai e ele foram colegas de faculdade e o meu pai até nem simpatizava muito, achava que ele tinha um ar um pouco emproado. Fosse como fosse, dizia-me para eu ler e eu lia. Foi aí que nasceu a minha admiração, a ler o “Visto” semanalmente. Depois lembro-me de ver o meu pai a ir a um comício do PPD no Campo Pequeno, o que na altura achei extraordinário, sabendo o que ele pensava de Sá Carneiro. E, nisto, vejo-o voltar de lá e dizer “Ele está cheio de razão e tem muita coragem em dizer o que diz”.
Coisas que ia retendo?
Sim e que me ajudaram muito a construir essa minha admiração. Ah, e houvera as suas notáveis intervenções na Ala Liberal, na Assembleia Nacional, e aquele modo firme como insistia em lutar pelos direitos, liberdades e garantias — um assunto que sempre me tocou e continua a interessar muito. Francisco Sá Carneiro era extraordinário nisso, tinha a capacidade de ir ao púlpito do Parlamento dizer em voz alta, na cara do regime, a situação em que estavam os presos políticos, bater-se pela necessidade da liberdade de imprensa… enfim.
Ia retendo todas essas etapas?
Nunca mais esqueci. Olhe, para atalhar caminho, há alguns ‘C’ que muito definem e caracterizam a tal ‘personalidade’ que me impressionou: o carácter, antes de mais. Podia ser conflituoso ou teimoso, difícil por vezes, mas tinha carácter firme. Posso contar vários episódios…
… já la vamos, estávamos nos “C”…
… depois havia a coerência e a clareza. Uma admirável clareza, em tudo na sua vida gostava de ser claro. Ser claro na sua fé — e também nas suas crises de fé; ser claro nas suas escolhas; nas opções políticas; na estratégia: na vida privada. Detestava hesitações, nebulosas, coisas indefinidas — odiava-as mesmo.
Tomou-a como uma grande qualidade?
Com o dr. Sá Carneiro não era preciso muito tempo para se perceber uma coisa que com outro demoraria talvez duas horas a explicar. Porque a sua personalidade o levava a ser sempre claro, frases curtas, directas, frontais. Pão, pão, queijo, queijo.
Ainda estamos nos “C”s?
Estamos, estamos: faltam a convicção, a coragem, a capacidade. Fala-se talvez menos na “capacidade”, mas era um homem muito capaz: foi-o como advogado, como opositor na Ala Liberal, como político, como líder, como governante, como estadista. Possuía uma notável capacidade de antecipar os acontecimentos, depois de os ler, analisar e exprimir. Não precisava de empolgar ninguém com a gestualidade ou o tom, de ser histriónico ou pretensioso. Empolgava com a clareza e a convição com que dizia as coisas. Em vez de discursar, dizia o que o pensava.
Parece ter sido alguém que muito o marcou, mas também houve a recíproca no Congresso do Roma, com o “tragam-me cá esse miúdo”?
Eu estava no palco não podia tê-lo ouvido dizer isso, mas o António Sande Lemos — muito amigo dele — contou-me que foi assim mesmo. E eu lá fui a esse encontro, hesitante e meio desconfiado se seria uma brincadeira — mas não era. O dr. Sá Carneiro estava num corredor, daqueles corredores que havia de lado do cinema, encostado a uma janela a fumar uma cigarrilha. Viu-me e disse: “Então é você que anda a dar cabo do juízo daquela gente lá em Direito?”. Na altura eu era o presidente da associação de estudantes da Faculdade de Direito e lembro-me de dizer “Tento, tento…”. E subitamente ele diz-me que queria que eu trabalhasse com ele na revisão constitucional.
Surpreendeu-se? Achou que não estava a ouvir bem?
Achei. Sendo eu apenas monitor do professor Jorge Miranda e não tendo ainda acabado o curso…Mas o dr. Sá Carneiro saberia que eu era dessa área. Fiquei estarrecido, ele era quase uma espécie de ídolo, e foi-o sempre enquanto viveu. Para além do meu pai, nunca tive outro.
Que significou o “Quero que venha trabalhar comigo”?
Na altura, o dr. Sá Carneiro estava a preparar um projecto de Constituição para os anos 80 — que veio a publicar na D. Quixote — e quem estava a trabalhar com ele eram o Marcelo Rebelo de Sousa e a Margarida Salema e aquilo fez-me um pouco de confusão…
É natural. Se Sá Carneiro já tinha com ele uma dupla para esse efeito.
Exatamente, mas não só me convidou como depois me convocou para duas ou três reuniões na sede, ao tempo ainda na Rua Buenos Aires. Numa delas julgo que estavam o Marcelo e a Margarida, mas nas seguintes já só estava ele. E, dali para a frente, o meu trabalho foi com ele. Mais tarde, quando exercia já as funções de primeiro-ministro, levou-me para o seu gabinete, fui o seu assessor jurídico. Reconheço que pode não ser muito normal, não fui um aluno brilhante, acabei o curso apenas com 15 valores, o que não sendo mau não equivalia aos 19 de Marcelo! Talvez tenha pensado que eu tinha algum jeito para a política, mas reconheço que será insuficiente como explicação.
E onde é que entra aí uma bolsa concedida pela Alemanha para fazer o seu doutoramento?
Eu concorrera a uma bolsa do governo alemão, ganhara-a, queria doutorar-me e informei disto o dr. Sá Carneiro, que se limitou a dizer “Vá, mas, enquanto cá estiver, trabalha; e quando voltar, retoma o trabalho”. Parti em Maio ou Junho de 1979.
Mas também houve aí uma curta passagem sua pelo governo Mota Pinto, um executivo dito ‘eanista’.
Eu já lá ia: entre o ter conhecido o dr. Sá Carneiro e a minha ida para a Alemanha, é o próprio Sá Carneiro quem me indica para esse governo. E porquê? Porque o Eduardo Azevedo Soares, então chefe de Gabinete do Álvaro Monjardino – um dos ministros do governo Mota Pinto – chamou-me a S. Bento. Tinham pedido ao dr. Sá Carneiro para indicar algumas pessoas para os gabinetes, o meu foi um deles, foi uma experiência profissional interessante embora politicamente achasse pouca graça àquele governo, mas pronto.
“Pronto” o quê?
Como o Governo era visto como ‘eanista’, os ‘motapintistas’ arranjaram aquela forma de serem simpáticos com Sá Carneiro e o PSD. Como era uma sugestão do próprio Sá Carneiro, fui. Estive como adjunto do Álvaro Monjardino, que tinha as relações com a Assembleia da Republica. Aprendi e vi muitas coisas, assistia ao Parlamento todos os dias, testemunhei a dissidência dos ‘Inadiáveis’…
Já lá iremos, mas antes disso: na sua relação com Sá Carneiro há uma característica invulgar — foi sempre muito próxima. Começou com o convite que lhe fez quando tinha apenas 22 anos e não conheceu nem fissuras nem hiatos até ao fim. Houve sempre uma permanente proximidade.
Mas aí há também um sinal que ele dava: apreciava gente nova e queria apostar nela. Sabia e gostava de ouvir os jovens. Mas sim, houve uma relação muito próxima. Quando ele já era primeiro-ministro e eu ainda estava na Alemanha a estudar, recebi uma carta dele lembrando que o lugar de assessor jurídico continuava vago. Às tantas, acabei por largar tudo e voltar, o que não foi nada bem visto face à bolsa recebida dos alemães…
Além de não ter acabado um doutoramento.
Sim, foi… complicado. Mas ainda hoje mantenho perante mim próprio que o fiz por ele. Voltei, fui para o seu gabinete como assessor jurídico e fiz de tudo.
Que significa “fazer de tudo” no gabinete de um primeiro-ministro?
Olhe, fazer de segurança pessoal, por exemplo. Um belo dia o dr. Sá Carneiro resolveu dispensar a segurança. Fê-lo de um momento para o outro quando percebeu que uma guarda-costas sua dera uma entrevista ao jornal Tal & Qual, uma grande irresponsabilidade. Como o então comandante da PSP de Lisboa era o Major Aparício, que o dr. Sá Carneiro achava muito ligado ao general Eanes, dispensou a segurança de uma manhã para a noite, sendo-lhe indiferente que o gesto fosse inusual. A guarda-costas era até muito simpática, mas a sua entrevista era menos: contava o dia a dia do primeiro-ministro de Portugal com enorme à vontade.
E depois?
E depois, em muitas saídas pelo País, eu, que era alto, fazia de guarda-costas. Há varias fotografias em que apareço a proteger-lhe as costas devido aos seus graves problemas de coluna. Nas diversas deslocações que tínhamos, quando à noite chegava aos hotéis, certificava-me se o colchão de madeira sobre o qual era obrigado a dormir estava já colocado. Às vezes, de tão cansado ou simplesmente quando queria descontrair, era “Arranje-me aí um whisky com gelo, por favor, e conversamos um bocado”.
O “ismo” de Sá Carneirismo aplica-se-lhe a si como uma luva?
Graças a Deus. Fui e sou um Sá Carneirista indefectível. E nunca fui “ista” de mais ninguém.
Já não é o caso das dezenas de militantes de topo que protagonizaram cisões abaladoras…
… a primeira no Congresso de Aveiro, logo em 1975 — onde não estive; a outra, com as Opções Inadiáveis.
Segundo julgo lembrar-me, o “ponto” dos que saíram em Aveiro era tentar convencer um muito renitente líder – o próprio Sá Carneiro — de que era politicamente preferível conversar, negociar, ter algum entendimento com os militares moderados de modo a levar a revolução a melhor porto. Em vez de o PSD persistir numa solidão política por eles considerada errada. O líder não anuiu ao argumento
No Congresso de Aveiro esteve pela primeira vez presente de uma forma muito clara a questão do relacionamento com o poder militar, uma tutela que Sá Carneiro sempre rejeitou por desvirtuar o seu entendimento da democracia. Não havia ‘semi-democracias’: ou há democracia, ou há ditadura.
A luta foi longuíssima, a rejeição do poder político-militar era uma omnipresença no discurso político.
Esteve sempre presente. Como ele dizia de discurso para discurso, e de congresso para congresso, “lutava contra um projecto de revolução institucionalizada”. Era a tal clareza de que sempre foi capaz.
E muita teimosia. Tanta que por vezes se podia confundir com excesso de intransigência.
A isso ele contrapunha, perguntando “Porque é que Portugal havia de ter um Conselho da Revolução, órgão político-militar dotado de competências que englobavam a fiscalização da constitucionalidade?”. Sá Carneiro nunca apreciou a contemporização com o que rejeitava. “Se pactuamos com eles, nunca mais saem do poder”, insistia. Mas sim, é verdade que era o “teimoso”: quantas vezes me seringaram os ouvidos “”le é muito intransigente, é demais”. Julgo, pelo contrário, que viu como ninguém a questão militar e que foi notável a firmeza com que manteve a sua posição. A propósito, gostaria de lembrar a resistência homérica que ainda houve na revisão constitucional de 1982 – e foi preciso esperar até 1982! – para acabar com o Conselho da Revolução. Fiz parte da Comissão que na Assembleia da Republica se encarregou dessa revisão constitucional e lembro-me bem de como foi difícil vencer essa batalha. O Conselho da Revolução era como se fosse o Tribunal Constitucional daquela época.
A intransigência de Sá Carneiro valia a pena ao país, é isso que me tem vindo a dizer?
Mas a ‘intransigência’ dele era por princípios e por valores! Nunca poderá aliás ser desligada dos seus combates antes do 25 de Abril, onde já se batia pelo mesmo: um Estado de Direito, uma democracia plena.
Lutou sempre pelo mesmo?
Sempre. E por isso também era o“radical”. Ou, como dizia o professor Sousa Franco — e agora já estamos nas Opções Inadiáveis —, havia os “rurais” e os “urbanos”…
Sá Carneiro era o “rural”?
Era o “rural”. Isto é, uma espécie de representante de uma forma de atraso mental político. Incivilizado, pouco sofisticado no pensamento. Os inteligentes eram os “urbanos”. Isto dito, o PPD/PSD sempre foi também um bocado isso: referi Sousa Franco e os Inadiáveis, mas não foi um facto político isolado, foi porventura o mais pesado e o mais mediatizado. Mas depois ia-se a ver e as bases estavam sempre com o dr. Sá Carneiro: fossem da cidade, fossem do campo, a realidade é que era ele que seguiam. Ao longo dos anos, por mais de uma vez, houve o líder e as bases do partido de um lado, e do outro os ditos ‘notáveis’.
Mas houve notáveis e notáveis… Uns voltaram ao PSD, outros nunca cortaram com Sá Carneiro — e estou a lembrar-me de Francisco Balsemão, que apesar de primeiro subscritor do documento das ‘Opções Inadiáveis’, nunca cortou com o seu amigo do tempo da Ala Liberal.
Pelo contrário: logo a seguir à dissidência dos “Inadiáveis”, o dr. Balsemão ligou para o gabinete do dr. Sá Carneiro — quando ninguém lhe falava, a não ser a Snu — a dizer: “Francisco, a primeira página do Expresso está à sua disposição; se quiser fazer uma declaração ou uma entrevista, faça”. Isso, ouvi eu!
Estava no hemiciclo de S. Bento no dia das dissidências no PSD?
Nunca esqueci o ter assistido em directo no Parlamento ao anúncio de saída dos quarenta e tal deputados. Deviam ser umas 2h da manhã, eu estava numa tribunazinha do outro lado da tribuna da imprensa a olhar incrédulo e estupefacto para a bancada e o Sá Carneiro sereno, quase impávido, a ouvir. É por isso que quem escreve que ele chora convulsivamente quando há uma dissidência ou uma tormenta… só não o conhecendo.
A que se refere agora?
A ter lido num jornal, há muito poucos dias, que o dr. Sá Carneiro chorou convulsivamente no palco de um Congresso do PSD, o que é absolutamente falso! Pergunto-me como é possível que ainda hoje se escrevam coisas que não sucederam, reações que não existiram, palavras que não se disseram? Enfim, sabe uma coisa? Esta altura — a das comemorações pela passagem do 40.º aniversário da sua morte — é muito perigosa. Há dias vi invocar o nome dele na Assembleia da República, para defender o voto contra o referendo, neste caso da eutanásia. Depois li que chorava nos Congressos… Nestas efemérides, aparece sempre muita gente a falar que nem sequer o conheceu, mas fazendo de conta que sim, como falsa legitimidade e falso conhecimento da história por dentro. Felizmente, o dr. Sá Carneiro dispensa sacerdotes e guardiões do templo.
O que é o PSD? É possível defini-lo?
O PPD/ PSD é social-democrata, de inspiração liberal. Ora é mais social-democrata, ora mais liberal. Tanto quanto essas classificações fazem sentido nos tempos de hoje. Com a crise das ideologias, os partidos têm uma enorme plasticidade e elasticidade. No PSD recente, os caminhos de Pedro Passos Coelho e Rui Rio demonstram-no.
Hoje é o mesmo PSD desse tempo que tem vindo a recordar ou os partidos são também as suas circunstâncias?
Como qualquer partido democrático, tem diferentes ciclos, com diferentes orientações estratégicas, normalmente correspondentes a diferentes lideranças.
Voltando ao documento chamado Opções Inadiáveis: já me falou dos “rurais” e dos “urbanos”, mas a designação parece-se mais com uma caricatura do que com um argumento. Que estava em causa no documento que levou esse nome?
A tese dos subscritores defendia uma oposição mais civilizada ao governo PS-CDS do que aquela menos civilizada que o dr. Sá Carneiro supostamente faria. E defendia um relacionamento mais institucional com o general Eanes, então Presidente da Republica. Ora, o dr. Sá Carneiro não queria nem uma coisa, nem outra. Defendia, pelo contrário, uma oposição sistemática ao governo PS-CDS, talvez porque já tivesse intuído ou mesmo percebido — terá sido porventura o primeiro a percebê-lo — a ambição política do general Eanes e a sua intenção de fazer politicamente algo ‘por cima dos partidos’. O dr. Soares passado pouco tempo percebeu o mesmo, tanto que não o apoiou na campanha presidencial de 1980. Achando indispensável uma clarificação política, e exigindo clareza nas posições da sua família partidária, o dr. Sá Carneiro prefere abandonar a liderança do seu partido e sai no Congresso do Porto. Estava-se em Janeiro de 1978.
Aliás, esse Congresso do Porto também marcou e não foi pouco a história do PSD…
Marcelo Rebelo de Sousa apresentou uma moção, da qual era o primeiro subscritor, onde se pretendiam conciliar as posições entre os ‘Inadiáveis’ e os ‘Sá Carneiristas’. Mas, quando a moção foi votada por unanimidade, descobriu-se que afinal havia uma abstenção, uma única. Era a do próprio Sá Carneiro. Houve um grande choque, os congressistas começaram a ir ao palco fazer intervenções onde pediam desculpa, outros alegavam que não tinham compreendido, houve quem pedisse para se repetir a votação..
…que não teve lugar…
Sá Carneiro recusou liminarmente, era “indigno” do partido: “Eu acredito que todos tenham votado em consciência, para quê repetir? Eu é que me vou embora”. E foi. A seguir foi eleito o professor Sousa Franco para presidente do partido.
Durou pouco. Porquê tão pouco?
Muita gente queria o dr. Sá Carneiro – a mim parecia-me mesmo que era toda a gente. Apesar de ele mandar dizer que não voltaria, os Sá Carneiristas iam fazendo reuniões — onde eu participava – para ele voltar e cujo resultado lhe era comunicado pela Conceição Monteiro, talvez a única pessoa lá dentro que nesses meses ia falando com ele. E entretanto os ‘Inadiáveis’ — o professor Sousa Franco e a sua equipa — começaram a não suportar a pressão, a contestação subia, convocaram um congresso. Foi o do Roma, em Julho de 1978, onde conheci pessoalmente o dr. Sá Carneiro. Eu pertencia a um grupo de quatro ‘Sá Carneiristas’ — Pedro Paes de Vasconcelos, Fernando Correia Afonso, Conceição Monteiro e eu – firmemente decididos a provocar aquele regresso. Redigimos uma moção – era a moção ‘G’ e, como eu era o ‘miúdo’, fiquei encarregue da redação: passava os dias a escrevinhar e a ver a Conceição ao telefone com o dr. Sá Carneiro, que entretanto insistia em que não voltava.
Vem nos livros: faz parte do jogo político.
Não. Sá Carneiro voltou mas o ponto aqui é perceber porque é que saíra: por achar que, se o partido pensava de forma diferente da sua, mais sério era deixá-lo. Foi uma forma muito correcta de agir. E aceitou ir ao Congresso do Roma para se aperceber, por si, qual a consciência verdadeira do partido naquele momento. A moção ‘G’ ganhou largamente mas até podia ser a ‘F’, ou a ‘H’ou fosse qual fosse, desde que apoiasse o regresso de Sá Carneiro. E, claro, depois havia várias outras moções menos claras e com mais nuances, vindas da oposição.
Não foi só o ex-líder que voltou a líder: regressaram, entre outros, Carlos Macedo; Natália Correia adere nesse Congresso ao PSD…
Sim, mas mais que tudo houve – cá está – uma clarificação. É a partir dela e do triunfo político que obtivera que Sá Carneiro arranca para a conquista do poder. Os outros saíram, ele ficou com os “seus”. Sem essa clarificação nada teria sido como foi. Acusavam-no de ser radical e intransigente mas uma das suas preocupações era não perder as pessoas: queria a clarificação política, não admitia a confusão no rumo e isso é que era notável nele. Mas logo a seguir empenhava-se para os ir buscar outra vez. Voltaram muitos, em diferentes momentos políticos: a Leonor Beleza, que saíra em Aveiro, regressou; também Rui Machete, Mota Pinto, Barbosa de Melo, entre muitos outros.
Com os Congressos ganhos podia dar-se ao luxo de ser generoso e acolher os filhos pródigos.
Não. Do que se tratava era acima de tudo de convicções. E, de novo, de clareza: saber quem são os adversários, quem são os aliados para — como ele dizia — “não vivermos permanentemente em pactos”.
Viu aí, na reconquista do PSD por Sá Carneiro, a semente da formação de um novo bloco político mais amplo e, sobretudo, mais forte ?
Absolutamente.
Mas esse bloco, caso o dr. Soares, meses antes das formação da AD, tivesse atendido a pretensão política do dr. Sá Carneiro de com ele se aliar, poderia ter sido constituído pelo PSD e pelo PS. Sá Carneiro considerava ‘transferível’ para a política o mesmo tipo de acordo que existia nos sindicatos entre ambos os partidos na UGT. E, como tal, propôs essa aliança ao dr. Soares, que aliás a recusou liminarmente. Pergunto: tanto fazia um acordo à esquerda como à direita? Como é que eu explico isto hoje a um jovem de vinte anos e tal anos?
Tenho a intuição de que ele sabia que Soares lhe diria que não, mas… qual era a questão? Era esta: quem é que iria ter força para pôr fim, de uma vez por todas, ao poder militar?
Sabia que sozinho nunca seria capaz? Precisava do PS e de Soares?
Exactamente. Era imprescindível haver um poder político suficientemente forte para o fazer e ele não o tinha. Aliás, quando se pôs a questão da candidatura a Presidente da República em 1980, eu perguntei-lhe porque não ia ele. Estávamos os dois sozinhos, no gabinete dele. A resposta foi ipsis verbis esta: “Eu não tenho força política para acabar com a tutela militar. Terá que ser um militar, democrático, patriota, com a força e a vontade para democratizar plenamente o país”. E pronto, quis o general Soares Carneiro.
Não adiantemos. Voltando ao convite a Mário Soares.
Voltando a Mário Soares: Sá Carneiro sabia que, na sua perspectiva política, iria ser preciso transpôr vários obstáculos até vigorar no país uma democracia plena e um deles era uma revisão constitucional que acabasse com a tutela militar. Para tal, tentava puxar Mário Soares para o seu lado. Juntos, os dois partidos teriam força e poder.
Mas isso era não fazer caso das próprias condições e circunstâncias políticas do próprio Mário Soares…
… que não eram fáceis. O PS enlevava-se com o general Eanes, a começar pelo dr. Salgado Zenha e tantos outros de primeiríssimo plano. Mas um dia o dr. Soares fartou-se mesmo — já tinha tido problemas que chegassem! — e decide, sozinho, não apoiar a recandidatura de Eanes a Belém. Sempre vi nesta atitude de Sá Carneiro e de Soares, e na decisão de ambos em não apoiar Eanes, algo de extraordinário: eram genuinamente democratas, alcançando sempre o essencial das questões. Como a de terem alcançado ambos que Eanes não deveria ser reconduzido.
É muito interessante que tenha falado assim deles porque embora muito se tenham guerreado, combatido e divergido, nenhum confundia adversários com inimigos.
Ah, não tenho a menor dúvida sobre isso. Com franqueza, acho até que, sem nunca o dizerem, sabiam os dois da força e da convicção um do outro. Mas, já agora, a propósito disso, conto-lhe um episódio muito revelador que envolve o dr. Soares e a que assisti. Passou-se quando ocorreu aquela acusação do PCP através do seu jornal, O Diário, sobre a questão da dívida e as paredes se encheram de “Sá Carneiro, paga o que deves”. Era uma atoarda tão permanente e insuportável que perguntei várias vezes ao dr. Sá Carneiro se não achava que se tinha de responder àquilo. “Não, deixe-os falar”, dizia ele, embora fosse vendo as coisas com os seus advogados. Mas um dia eis que o PS pega no assunto, através da distribuição de notas falsas com o rosto do dr. Sá Carneiro. Ou seja, o PS juntava-se ao PC.
Passava a ser grave?
O dr. Sá Carneiro convoca a televisão para uma comunicação nessa noite ao país onde surgiria com o Governo ao seu lado. Espantado, dirigi-me de imediato ao seu gabinete: “Afinal vai falar à televisão, tinha dito que não se respondia a essas coisas…?”. Muito serenamente ele explicou-me o que tinha mudado: “Uma coisa eram os do PC, outra, bem diferente é o PS liderado pelo dr. Mário Soares a pôr em causa a minha honra”. E continuou: uma coisa era a luta dos que não queriam a democracia, outra coisa é os que a queriam e defendiam porém em causa a sua honorabilidade: “Face a isto, tenho obrigação, como primeiro-ministro, de esclarecer o país”. E esclareceu. Nunca me hei-de esquecer disto.
Então, após esse gorado convite ao dr. Soares para uma aliança política entre os dois, Sá Carneiro vira-se para a sua direita e produz outra, a chamada AD.
Vou tentar explicar bem isto, trata-se de uma questão política essencial: pelo que conheci dele, acho que lá no fundo do seu coração sempre preferiu aliar-se à sua direita. Sempre terá preferido a AD. O que não sei é se a sua mente política iria por ali. Ele era muito, não direi cartesiano, mas nalgumas coisas era muito racional. Pensaria para si mesmo: qual é a melhor maneira de conseguir uma democracia ‘verdadeira’, pondo termo a tutelas militares que a desvirtuam e paralisam? Só com muita força política, o que significava um acordo entre os dois maiores partidos. Então vamos a isso — terá pensado –, tentarei tudo. Tentou, de facto, Soares não quis.
Sá Carneiro tinha combatido ferozmente o próprio Governo de Soares com o CDS!
Não, não há contradição nenhuma com a oposição que fez a esse Governo PS-CDS. O que havia era que ‘distinguir os planos’, como Sá Carneiro costumava dizer. E afirmava também : “Primeiro o país, depois a democracia e depois o partido”. O partido vinha em último lugar nas três prioridades, ou seja, para ele o PS era instrumental. O que contava era que o país fosse finalmente dotado de uma democracia de pleno direito e para isso eram necessários o PSD e o PS. Haverá muita gente que lerá esta entrevista sem saber que ele lutou politicamente e governou — e morreu — havendo no país como órgão de soberania um Conselho de Revolução! Ora, isto condicionou tudo ou quase tudo nas atitudes dele — e testemunhei muitas delas.
Por exemplo?
Por exemplo, um episódio passado em 1980. Um dia estávamos a trabalhar na Gomes Teixeira e, de repente. ouço: “Importa-se de ir ver se será obrigatório o Governo tomar posse outra vez?”. Nem acreditei no que ouvia. Insistiu: “Ganhei as eleições intercalares do ano passado (1979) voltei a ganhar as deste ano, quero manter o mesmo Governo, há alguma lei ou norma que me obrigue a tomar posse?” No fundo, o que o dr. Sá Carneiro não queria era ir à cerimónia de posse com o general Eanes, as relações eram péssimas: ninguém tirava da mente do primeiro-ministro que Eanes concordava ou abençoava tudo o que impedisse a chegada de uma democracia igual às que vigoravam na Europa. Já só comunicavam ambos por carta, as eleições presidenciais eram daí a dois meses, Sá Carneiro não queria figurar numa cerimónia ao lado de Eanes.
Mas podia não “querer-se” a esse ponto?
Por vezes levava as coisas a tal ponto e esticava tanto a corda… Mas atenção, nunca agiria assim numa democracia estabilizada. Fui estudar juridicamente a questão e, de facto, a Constituição — caso o Governo fosse o mesmo – não impunha houvesse tomada de posse. E não houve. Mas não tive outro remédio senão andar a defender publicamente esta decisão do primeiro-ministro com o Miguel Galvão Telles e o Jorge Miranda, embora de um ponto de vista meramente formal ele tivesse razão. O general Eanes não gostou nada, mas Sá Carneiro manteve que não tinha que ser nomeado porque já o estava, o Governo continuava o mesmo, a cerimónia de posse era desnecessária…
Acha que Francisco Sá Carneiro foi um político traído? Ou apenas contestado?
Ambas as coisas, foi traído e contestado. Sucedia que quem estava politicamente à sua volta tivesse por vezes dificuldade em compreendê-lo. Em segui-lo na capacidade de antecipar o que aí vinha e prever as consequências. Definia um caminho, dali não saía, e nesse sentido teve muito pouca ajuda. Teve-a das bases e muito menos dos ditos ‘notáveis’.
Os quais também não aplaudiram a formação da AD e vamos então finalmente falar dela. Nasceu faz hoje, dia 2 de Dezembro, 41 anos.
A AD? Nem alguns dos ‘Sá Carneiristas’ mais puros a queriam! Sá Carneiro viu-se muito aflito, foram precisos vários Conselhos Nacionais, inúmeras reuniões, mas depois houve ali uma equipa de gente nova e sangue novo que se começou a aproximar — o Vasco Pulido Valente e o Carlos Macedo, por exemplo, foram elementos muito importantes naquela altura. Mas o partido opôs-se quanto pôde, fizeram a vida negra ao líder. Diziam: como é que o PSD se ia ligar a um partido tão reacionário, ao qual a esquerda e a comunicação social logo passaram a chamar de ‘fascistas’? Não podia haver misturas dessas. Enfim… Olhe, não comparando, parece a conversa de agora. Não estou a dizer que o André Ventura é igual ao Francisco Rodrigues dos Santos, nem a fazer comparações tão deslocadas quanto desnecessárias, digo apenas que já ouvi esta conversa. A mesma que ouvi depois com o Manuel Monteiro e o Paulo Portas, por exemplo. É de resto uma conversa cíclica: quem já cá anda há uma série de anos, já ouviu isto tudo. Sá Carneiro também ouviu mas, como nunca ia em cantigas, seguiu em frente.
Não se impressionava?
Não. Um dia atacaram-no por votar contra uma lei contra a qual o PC também votaria. Diziam: “Ah, vai votar com os comunistas?”. Ia, e explicou: “A mim não me interessa como é que o PCP vota. Eles votam por razões diferente das minhas”. Não, não se impressionava. Fazia o seu caminho.
Recapitulando: não tendo sido possível uma aliança com o PS de Soares, formou-se a AD, com o CDS, o PPM e os Reformadores, a qual veio a ganhar as eleições em Dezembro de 1979. Pergunto: a AD foi a vitória de quê?
De gente cansada da revolução que percebeu que havia ali um rumo. De alguém que tentava abrir caminho para a plena democracia, e estava cercado pelos poderes que a combatiam: o Eanismo, o Conselho da Revolução, o PS , o PC, a comunicação social, quase toda estatizada — Diário de Noticias, Capital, Diário de Lisboa, Diário Popular, Antena 1, RTP… Tudo lhe batia.
A vitoria foi fruto de quê? Clareza e capacidade de liderança?
Sim. Fortes e com autoridade própria. E, claro, com a ligação às bases: pensando nos principais líderes, já desaparecidos, talvez não haja nenhum em que tenha havido uma ligação tão constante e politicamente forte entre bases e líder. Porventura perceberam que estava ali um bom exemplo político.
Não devia ser fácil trabalhar com ele, gerava conflitos com quem discordava…
Sempre se disse muito isso, mas era o seu carácter. Tinha também um modo próprio de trabalho e um entendimento de como devia actuar politicamente que às vezes nos deixava estupefactos. Um dia chamou os assessores ao seu gabinete — percebi logo que seria grave — e disse-nos: “Vi um currículo meu que foi para uma embaixada estrangeira mas que não reflecte com verdade a minha situação familiar. Não pode voltar a acontecer. Têm que dizer a verdade: eu estou separado da minha mulher desde o dia tal e vivo com a Senhora tal, desde a data tal”. Nunca fazia de conta: as coisas sérias levavam-se a sério. Tanto que, antes de tomar posse após as eleições de 1979, disse ao general Eanes que se não pudesse ser primeiro-ministro na situação em que se encontrava a sua vida privada, não seria, mas não desistiria dela.
Pode ser visto de mais de uma maneira: ou como uma qualidade ou como um defeito.
Pois pode — e foi. Embora o meu conhecimento dele me leve a discordar da palavra defeito. Era antes uma forma de ser muitas vezes não compreendida. Um dia íamos numa avioneta para o Porto com mais outros dois assessores e, perto da chegada, o piloto avisou que era impossível pousar no Porto, o nevoeiro impedia a aterragem e que teríamos de ir para outro lado. O dr. Sá Carneiro ouviu e disse: “Não, arranje lá um buraco em Pedras Rubras, tenho compromissos marcados, é impossível aterrar noutro lado”. E aterrámos no Porto..
Outro exemplo que também pode ser visto de duas maneiras…
Pode. Aliás, após os seus compromissos e o almoço, no Solar do Vinho do Porto, demos uma volta por aqueles jardins e eu enchi-me de coragem: “Sr. dr., desculpe, não pode fazer o que fez hoje de manhã. Não se pode nem deve pôr em risco daquela maneira. Além de que representa muita gente que conta consigo”.
Sá Carneiro fez algum caso?
Deu-me uma resposta com a qual não concordei de todo: “Desde o meu desastre de automóvel, a vida sem risco não faz sentido”. Uma frase que não estava à altura das suas responsabilidades.
Era a tal pressa que o caracterizava?
… e que o seu filho Francisco, na recente entrevista que lhe deu, também sublinha. Aliás, todos os que o conheciam falavam da pressa de Sá Carneiro. A pressa e a vertigem do risco. Era por ali e ele ia, fosse como fosse e aterrando com excesso de nevoeiro.
A pressa maior foi a de arredar o general Eanes da Presidência da República, que ele queria ver derrotado nas urnas pelo candidato da AD, o também general Soares Carneiro. O país não se comoveu. O combate era impossível?
Era necessário. A coabitação é que se tinha tornado impossível. Chegou — repito — a ser por carta. E na parte final do mandato o dr. Sá Carneiro deixou mesmo de ir a Belém. São as tais atitudes que insisto em dizer que ele apenas praticava por reação à democracia muito incompleta em que se vivia.
Seja, mas a questão é outra: agir assim estava certo?
É difícil dizer se ele estava certo ou errado, era a massa de que era feito. Pessoalmente, acho que estava certo, mas eu sempre apreciei políticos assim e gente daquela massa. Numa palavra, Sá Carneiro achava que os projectos de ambos — o seu e o de Eanes — eram incompatíveis. As reformas que o governo da AD se propunha fazer estavam sitiadas. Havia um cerco abençoado pelo Presidente da República e celebrado na rua. E, a propósito, lembro que o general Eanes, então Presidente da República reeleito, recusou atribuir a Sá Carneiro, Amaro da Costa e António Patrício Gouveia a Ordem da Liberdade, no 25 de Abril do ano seguinte. Posso ter apreço pelas qualidades pessoais de Eanes, mas tenho memória.
Recordo-me que a AD, em protesto, não foi às cerimónias desse 25 de Abril.
Não compareceu. Depois o dr. Balsemão, que era então primeiro-ministro, bateu tanto o pé que acabaram por os agraciar a título póstumo no dia 10 de Junho.
Falou de cerco. Era certamente a ideia do dr. Sá Carneiro, mas será a palavra que melhor define o então estado das coisas?
Era um cerco. Das oposições, do poder político-militar, dos media. Recorro a um eloquente exemplo: o Governo da AD aprovou três vezes o decreto-lei de privatização da banca e dos seguros e das três vezes foi chumbado pelo Conselho da Revolução. Sá Carneiro morreu sem nunca conseguir que ele fosse aprovado. Não era fácil lutar contra um país nacionalizado, que ele queria naturalmente abrir e reformar, tendo também o general Eanes contra si. Não se tratava de embirrações pessoais, mas de projectos incompatíveis. Ou já estaremos esquecidos que no seu segundo mandato Eanes foi eleito pelo contrário do que foi eleito no primeiro?
Outro tema: é sempre pouco interessante e nada útil elaborar sobre o que não aconteceu. Mesmo assim, pergunto: Sá Carneiro abandonaria a chefia do Governo e a liderança da AD e saía de cena após a derrota das presidenciais. Mas depois? Voltava?
Ia-se embora. Tinha razão, ainda bem que ia. E depois, sim, um dia voltaria. Nunca saberemos como teria sido.
Mas consigo, que felizmente está aqui bem vivo, podemos saber: voltará à política através de uma candidatura à Presidência da República? Fez constar isso.
Vamos ver. Deus nos dê vida e saúde até lá.
Ou seja: a porta está entreaberta. E no entanto… saiu surpreendentemente do PSD e criou um partido. Não correu bem. A sua Aliança foi um erro?
Foi um projecto que comigo não deu.
Então o erro foi seu?
Ainda não o tomo como um erro.
A responsabilidade foi sua?
A responsabilidade é totalmente minha. Foi um projecto que comigo falhou. Sei porque é que fiz, não gosto de falar em arrependimentos, mas assumo que correu mal. Considero até que a Aliança pode correr melhor sem mim. Nós somos o que somos e quem somos: percebi à minha custa que face ao país — com quem incansavelmente me cruzei na campanha eleitoral — eu pertencia ao partido no qual militei.
Tem saudades do PSD?
Não… não, não quero por enquanto ainda falar do que sinto.
Rui Rio vai ser primeiro-ministro?
Lá dentro diz-se que sim. Também há quem diga que basta estar sentado no lugar do líder da oposição… mas ele não está assim tão sentado, já começou a levantar-se várias vezes. Está já no caminho que o pode levar a ser primeiro-ministro. Está a fazer por isso.
Vai ajudá-lo, aceitando o convite dele para se candidatar a uma autarquia? Sintra, não é?
Não tenho nada para dizer.
Faz parte do coro que canta o seu desprezo a Rui Rio por causa do acordo de governo açoriano? Se fosse consigo condenaria uma frente política que fosse do PSD ao Chega?
Não, não, não. Por todas as razões e mais algumas, acho que nessa matéria Rui Rio tem estado muito bem: a sua argumentação é clara que nem água e não transigiu nos princípios. Mas… quem, do centro para a direita não perceba que era vital para o país esta opção neste momento, é porque não percebe nada de política.