Enviado especial a Xangai
Um azar de calendário impediu à última hora Vítor Pereira de se encontrar com Marcelo Rebelo de Sousa em Xangai. O sorteio da liga chinesa ditou que por estes dias tivesse de ir jogar fora e o encontro acabou por não fazer parte do programa oficial. Mas deixou o antigo treinador do FC Porto “muito honrado”: “As pessoas estão atentas aquilo que vou fazendo”.
E como não estar? Depois de passagens pelo (agora célebre) Al-Ahli, Olympiacos e Fenerbahce, Vítor Pereira assinou em finais de 2017 pelo Shanghai SIPG, substituindo, pela segunda vez na sua carreira, outro técnico português, André Villas-Boas. E logo no ano de estreia na China consegue a proeza de conquistar o título e destronar a equipa que venceu consecutivamente nos sete anos anteriores.
Contudo, agora, em entrevista ao Observador a partir de Xangai, o treinador não esconde alguma desilusão com a falta de condições que tem para manter o clube competitivo. O Shanghai está na terceira posição, tem jogadores lesionados, plantel curto, o melhor jogador da equipa a sair para o Espanyol (e Vítor Pereira a ser avisado à última hora) e mais um desabafo: “No final da época, deixei um relatório ao clube com as necessidades. Estou aqui há um ano e uns meses e ainda não tive qualquer jogador”.
Talvez por isso não arrisque previsões sobre quando a China pode vir a tornar-se numa potência do futebol. O país tem gasto muitos milhões nesse projecto. Mas Vítor Pereira diz que o país ainda está longe do nível da Europa: “Ainda há muito trabalho técnico e tático a fazer.”
Chegou a estar previsto encontrar-se na China com o Presidente da República, mas já não vai acontecer.
Foi um convite que surgiu através do consulado aqui em Xangai. Honrou-me muito porque admiro o nosso Presidente e lamento que no sorteio da taça nos tenha saído um adversário fora. É por isso que não vou ter a possibilidade de comparecer ao encontro com Marcelo Rebelo de Sousa, coisa que muito me agradaria. Fiquei honrado até por perceber que as pessoas estão atentas aquilo que vou fazendo.
Foi difícil adaptar-se a uma vida nova na China?
Como eu já tinha experiência de vida noutros países e noutras cultura, acho que isso me deu bagagem para não ter grandes dificuldades em adaptar-me. E Xangai é uma cidade que parece europeia, no sentido em que não falta nada. Portanto, eu diria que talvez o que me custou mais foi a adaptação à comida.
Para além da comida, o que é que gosta mais e o que é que gosta menos da vida aqui em Xangai?
O que me custa sinceramente é estar longe da família, estar longe dos amigos, estar longe dos lugares. Quem vive fora de Portugal — é inevitável — sente saudades de Portugal e dá mais valor ao que temos lá. O mar, os lugares que são os nossos. São coisas que não conseguimos ter aqui. Mas, sinceramente, não me posso queixar porque estou provavelmente na melhor cidade da China para se viver.
E o seu dia-a-dia profissional, mudou muito? Dá-se com outros portugueses fora do futebol?
A vida de um treinador é um bocadinho a mesma nos diferentes países. Aqui talvez a grande diferença seja o calendário, que é muito sobrecarregado. Nunca vi jogarem-se tantos jogos consecutivos em tão pouco tempo. E depois com viagens enormes: cada viagem, mesmo que seja para um jogo aqui na China, leva sempre pelo menos sete horas, desde que saímos do centro de treinos até chegar ao hotel, seja em que cidade for. Sete horas para lá, sete horas para cá. E depois é voltar e preparar novo jogo porque passado três ou quatro dias já estamos a jogar outra vez.
Ou seja…
Ou seja, o tempo para desfrutar da cidade ou da companhia de outras pessoas não é muito.
No seu primeiro ano conseguiu a proeza de destronar a equipa campeã sete vezes consecutivas e levar o Shanghai SIPG à vitória. Os resultados que já conseguiu também ajudam a moldar a percepção que os chineses têm de Portugal e dos portugueses?
Sempre que chegamos a um país e temos sucesso, acredito que abrimos portas para outros portugueses, seja em que domínio for. No caso do futebol, se um treinador tem sucesso num país, é normal que as pessoas vão à procura do mesmo género, porque acreditam no trabalho.
E tendo esse sucesso logo à chegada, porque é que disse numa entrevista recente que cada vez percebe menos de futebol?
Essa afirmação resulta do facto de eu sentir que o futebol tem sempre tanta coisa por onde evoluir, sempre coisas a aprender, caminhos sempre diferentes para chegar a um mesmo objetivo, que as certezas que eu já tive e que dei como adquiridas não foram bem assim. Não duraram para todos os cenários, não serviram para todo o lado. De cada vez que mudamos de cultura, de jogadores, de equipa, é um desafio novo e isso é o que torna o futebol apaixonante.
O que é que mais o surpreendeu no campeonato chinês? Para além do calendário.
O campeonato chinês é muito competitivo. Enfim, comparativamente com o nosso não tem o mesmo nível. Mas é muito competitivo pelo facto de qualquer clube ter capacidade financeira para ir buscar bons estrangeiros e há seis, sete, oito equipas que estão muito bem apetrechadas e que podem lutar pelos primeiros lugares. Até ao ano passado o Guangzhou ganhou sete campeonatos consecutivos, agora já não é um dado adquirido, há muitas mais equipas a lutar. E em qualquer jogo fora é extremamente difícil ganhar pontos, às vezes porque os campos e o relvado não são os melhores. Até por causa das temperaturas. Mas também porque as equipas são difíceis. Portanto, é um campeonato competitivo.
Nota diferenças no tipo de jogo praticado pelas equipas chinesas? Teve dificuldades em impor o seu estilo?
Essencialmente o que é preciso na China é ensinar. Um treinador que venha para cá não pode dar como adquirido determinado tipo de comportamentos a nível técnico e a nível tático. É preciso trabalhar muito tecnicamente e taticamente. Esse início de trabalho foi um bocadinho mais difícil. Mas, com o tempo, eles começaram a entender mais o jogo, a entender mais aquilo que se quer.
Portanto, apesar de estar muito globalizado o mercado de jogadores, continua a não ser a mesma coisa treinar um Shanghai SIPG ou um FC Porto.
Não posso comparar porque no FC Porto tinha necessariamente mais qualidade em termos globais. Em termos de equipa permitia-me jogar um futebol diferente.
E tem as condições de trabalho que gostava de ter?
As condições de trabalho… Por exemplo, o nosso centro de treino tem dois campos relvados, um deles é misto e portanto não o utilizamos muito porque é um bocadinho mais duro e os jogadores não gostam. Eu gostaria de ter mais campos para treinar porque em determinada altura da época, com as chuvas, o campo não fica com a qualidade que eu gostaria que tivesse. Mas também não me posso queixar porque vou tendo as condições mínimas necessárias para fazer um bom trabalho.
A China quer ser uma potência mundial em vários domínios. No futebol também?
Também. Aliás, quem chega aqui percebe logo que a China tem o sonho de se qualificar para um Mundial. Sente-se que as pessoas responsáveis, incluindo o governo, estão a tentar tudo. Às vezes com decisões e regulamentações que são difíceis de entender, mas que na perspetiva deles são a forma de chegar mais depressa ao objetivo. E o objetivo é a qualificação para o Mundial, ajudar a seleção a ficar mais forte.
O que é que lhes falta?
Fundamentalmente, para mim o que falta é trabalho técnico na formação, com noções táticas também para eles entenderem e evoluírem em termos de jogo. Acho que é por aí que o investimento tem de ser forte.
Consegue prever quando é que isso pode vir a acontecer?
Sinceramente não lhe consigo fazer essa previsão porque sinto que ainda há muito trabalho a fazer para que, de facto, a China atinja um nível competitivo comparável aos níveis europeus. Ainda demora o seu tempo.
Quando, no ano passado, venceu o campeonato chinês, disse que só quem vive na China perceberia o que aquela vitória significava. O que é que significou?
Este ano, ainda estou mais convencido disso. O que nós fizemos foi quebrar a invencibilidade de um clube que, de facto, se estruturou para ganhar. E ganhou sete anos consecutivos. Ora, chegar aqui e destronar o Guangzhou Evergrande e ainda competir com um Beijing Guoan e equipas como o Shandong Luneng, ou como o Jiangsu Suning foi um feito que em Portugal não conseguimos avaliar bem. Foi, de facto, uma época excecional.
Este ano as contas têm estado mais complicadas. Ou ainda tem esperança de renovar o título?
Este ano está mais difícil. Na fase final da época, no ano passado, tivemos já algumas dificuldades porque o plantel, em termos de soluções, é muito curto. Sentimos, em determinada altura decisiva do campeonato, que nos faltavam soluções e que estávamos presos por arames. Bastava uma lesão num central ou num jogador do meio-campo para não termos soluções à altura de nos batermos com as melhores equipas. No final da época, deixei um relatório ao clube com as necessidades. E o clube não conseguiu trazer ninguém. Aliás, eu estou aqui há um ano e uns meses e, para já, ainda não tive qualquer jogador. O clube não me deu jogador nenhum e, ainda por cima, perdemos o nosso melhor marcador e jogador chinês [Wu Lei, conhecido como o Maradona chinês e melhor marcador da Superliga da China], foi para o Espanyol. Isso só me foi comunicado mesmo em cima da hora de começar. Para além disso, estamos mais fracos do que no ano passado porque começámos a época com lesões em jogadores determinantes, um deles um central. Estamos a tentar tornar a equipa consistente, mas faltam claramente soluções. Tenho que inventar soluções, tenho que jogar com laterais e centrais, jogadores fora de posição e tentar encontrar um equilíbrio. Tem sido um começo muito mais difícil.