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Um consultor político ítalo-suíço, sem qualquer experiência sobre a política russa e que nunca escreveu ficção na vida, decide escrever o seu primeiro romance em francês e centrá-lo nos corredores do Kremlin de Vladimir Putin. Teria tudo para correr mal ou para, pelo menos, não ter grande impacto.
Não foi o que aconteceu. Giuliano da Empoli terminou O Mago do Kremlin (ed. Gradiva) ainda em 2021, mas a pandemia atrasou o seu lançamento. O livro saiu em França em janeiro de 2022, um mês antes da invasão em larga escala da Ucrânia pela Rússia que surpreendeu o mundo. E, de repente, ali estava uma obra que tentava entrar na cabeça de Putin e dos que o rodeiam e que ajudava a explicar a lógica do poder russo atual. Os franceses renderam-se: Da Empoli recebeu o Prémio da Academia Francesa e O Mago do Kremlin esteve à beira de vencer o mais importante galardão da literatura francesa, o Prémio Goncourt, sendo derrotado à última hora por uma obra mais pessoal — Vivre Vite (sem edição em português), de Brigitte Giraud.
Como é que um não-russo, que esteve apenas algumas vezes no país, penetra no âmago do Kremlin? Da Empoli justifica o seu sucesso de forma simples: “É um romance sobre o poder. E alguns aspetos do poder são universais.” O autor admite que não poderia ter escrito esta obra se não tivesse estado por dentro desse mesmo poder — Da Empoli foi conselheiro político do primeiro-ministro italiano Matteo Renzi quando este ainda era presidente da Câmara de Florença e depois acompanhou-o no governo. E “quanto mais perto se está do centro [do poder], maior a loucura”, confessa ao Observador.
Autor de vários ensaios e obras de não-ficção, Da Empoli sempre teve por hábito centrar-se em questões políticas como o papel dos jovens em Itália (em Un grande futuro dietro di noi, “Um grande futuro atrás de nós”, sem edição em português) ou o trabalho dos consultores políticos de figuras anti-sistema como Steve Bannon (Les ingénieurs du chaos, “Os engenheiros do caos”, sem edição em português). Desta vez, Da Empoli optou pela ficção para poder dar rédea solta aos pensamentos e paixões indizíveis dos homens do poder (e aqui são todos homens). No centro, a personagem de Vadim Baranov, o conselheiro de Vladimir Putin que conspira, trama e atua onde o líder não consegue ir — ou não se dá ao trabalho de ir.
Uma personagem que, como o próprio autor admite, é inspirada numa pessoa real: Vladislav Surkov. Antigo conselheiro de Putin a quem chamaram em tempos “O Cardeal Cinzento”, Surkov foi escolhido como inspiração por Da Empoli por ser diferente dos outros homens do Kremlin. “Ele parece considerar o seu trabalho como homem da propaganda e da comunicação uma espécie de performance artística, quase como se fosse teatro contemporâneo”, resume o autor. Um homem que ouve rap americano, escreve romances e que se adapta ao que for preciso — “O Slava é um recetáculo. Sob Iéltsin era um democrata, sob Putin é um autocrata”, disse em tempos o político russo da oposição Boris Nemtsov, referindo-se a Surkov.
Baranov e Surkov são também os veículos que nos levam a Putin. Em O Mago do Kremlin, Da Empoli não hesita em imaginar as rotinas do líder, as suas conversas com os subordinados, até por vezes imaginar o que estará o Czar — como é apelidado em quase toda a obra — a pensar. E, ao tentar entrar na psique de Putin, o livro de Da Empoli parece quase premonitório: a obsessão pelo poder, o recurso sem pejo à violência, o foco na Ucrânia — tudo isso ali está. “Sou sincero, não previ a guerra, é claro, e fiquei surpreendido como toda a gente a 24 de fevereiro. Mas acho que é coerente com tudo o que estava para trás”, admite o autor ao Observador. Para a frente, deixa apenas duas conclusões: a de que ninguém controla o Presidente russo e que ele está agora sozinho, por escolha própria. Consequências da “húbris da figura do poder que está há demasiado tempo no poder”.
A escolha pela ficção. “Este não é um romance sobre a Rússia, é um romance sobre o poder”
Em O Mago do Kremlin há uma altura em que a personagem principal, Vadim Baranov, diz: “As pessoas pensam que o centro do poder é o coração de uma lógica maquiavélica, quando na realidade é o coração do irracional e das paixões, um pátio de escola.” Foi por ser tão difícil captar esta dimensão pessoal do poder que decidiu escrever um romance em vez de uma obra de não-ficção sobre este tema?
Foi uma das razões, provavelmente a razão mais fundamental. Quando se vê o poder de fora, quando se tenta analisar o poder, as suas decisões, os seus mecanismos, tende-se muitas vezes a fazê-lo de forma racional. É claro que não acho isso irrelevante; essa dimensão está obviamente presente no processo de tomada de decisão e nos círculos de poder. Mas, pela minha experiência — e este livro foi escrito a partir da minha experiência pessoal na política —, quanto mais perto se está do centro [do poder], maior a loucura [risos]. Esta dimensão irracional está também cheia de contradições e de paradoxos, não é a preto e branco, por vezes é imprevisível. Creio que o romance é a melhor forma para tentar descrever essa dimensão. O ensaio e a não-ficção estão obrigados a ser mais racionais, mais “A-B-C-D”. A ficção acede a esta dimensão diferente de forma muito poderosa e essa foi uma das razões — talvez a razão principal — por que decidi escrever um romance em vez de mais um livro de não-ficção.
O romance é também um meio capaz de descrever as motivações privadas ou as invejas mesquinhas que orientam algumas decisões dos líderes. E a que normalmente não temos acesso.
Exato. Há também imenso espaço para os erros, para o improviso, para a informação perfeita. Até para a pura estupidez [risos]. Todas estas coisas se misturam. Este não é um romance sobre a Rússia, não é simplesmente um romance sobre Putin e o seu círculo. É um romance sobre o poder. E alguns aspetos do poder são universais.
Este livro foi muito bem recebido. Venceu o prémio da Academia Francesa, foi um dos favoritos ao Goncourd… Acha que é só por tratar desta dimensão universal do poder? Não haverá também um certo fascínio com a Rússia, especialmente agora?
O livro foi escrito antes da guerra da Ucrânia — ou antes desta fase mais recente da guerra, porque ela já dura há algum tempo, como todos sabemos —, mas foi publicado apenas um mês antes daquilo acontecer em fevereiro. Por puro acaso, não estava nada planeado, como é óbvio. Penso que isto colocou o livro no centro das atenções, porque as pessoas agora estão mais interessadas na Rússia e em Putin. Acho que é uma combinação de duas coisas: os acontecimentos que vemos nas notícias e uma nova porta de entrada no tema que não seja através da não-ficção, da análise política ou jornalística. Uma forma diferente de lhe aceder. Espero que as pessoas gostem do livro, não foi de todo feito para ser um livro “instantâneo” sobre a Rússia.
É verdade que, de certa forma, o poder é universal, mas a Rússia parece ter uma variante específica dele. Algumas das personagens no livro defendem esta ideia de que a violência é inevitável no país, de que um “poder vertical” é a única forma de governar a Rússia, como se os russos não funcionassem em democracia. Concorda com essa ideia?
Não, não sou um determinista, não acredito num destino impossível de alterar. É claro que há um fator que se repete na História da Rússia, este “poder vertical” foi aparecendo de formas diferentes ao longo do tempo. Mas, pessoalmente, não acredito num destino. Era como falávamos ainda agora: as coisas podem ter resultados muito diferentes consoante as circunstâncias e as personalidades envolvidas. É claro que, no livro, há essa ideia, mas o objetivo era mesmo entrar na cabeça daquelas pessoas. Não estou ali a apresentar as minhas ideias sobre a Rússia.
Mas acha que é o que aquelas pessoas pensam, portanto?
Sim. Todo o objetivo do livro é tentar adaptar-me àquele ponto de vista. E tentar entrar na cabeça deles, em particular da personagem principal, o Baranov, que está ali a contar a sua história. Esta é outra das razões pelas quais decidi escrever um romance: permite ao autor projetar-se no ponto de vista de outrém e tentar desenvolvê-lo ao máximo. O romance permite isso, entrar na cabeça de alguém, não de forma real, mas através da imaginação e da projeção. É por isso que o Baranov é uma personagem de ficção, muito embora tenha inspirações reais, uma em particular. Mantive alguns dos nomes verdadeiros no livro, como Putin e outros membros da sua corte, mas alterei o da personagem principal, porque eu ocupei o seu lugar. Não é a pessoa real, sou eu a adotar o seu ponto de vista. Da forma que imaginei, ele e Putin têm essa visão da mente russa e da forma como a Rússia deve ser governada. Pessoalmente, acho que nada está escrito em pedra e a situação pode mudar.
A invasão da Ucrânia. “Putin tem de ter sido cegado por algo”
Baranov tem uma inspiração particular, Vladislav Surkov. O que viu nele que os outros que rodeiam Putin não têm?
Ele é uma personagem invulgar. A corte de Putin é muito cizenta: há as personagens que vieram do KGB, os militares, os homens de negócios… Mas não são figuras inspiradoras. Já Surkov tem um lado… Artístico, digamos [risos].
É um homem que ouve [o rapper americano] Tupac…
Exato, ele ouve Tupac, tem posters dele, escreve livros com um pseudónimo. Ninguém sabe se é ele mesmo que os escreve ou sem tem um escritor-fantasma. Mas, seja de uma forma ou de outra, ele parece considerar o seu trabalho como homem da propaganda e da comunicação uma espécie de performance artística, quase como se fosse teatro contemporâneo. E achei muito interessante tentar adotar o ponto de vista de um tipo assim, de um dos arquitetos desta propaganda com um elemento de teatro que tem sido adotada por Putin e pelos russos ao longo dos anos. Mas claro, ele é apenas a referência inicial — apropriei-me de algumas coisas dele, mas não todas.
Uma das semelhanças com a personagem real é o papel que Baranov tem na propaganda relacionada com a Ucrânia. Acha que esta nova fase da guerra, de invasão, tem um propósito mais instrumental (como a segunda guerra da Chechénia teve para Putin) ou há aqui uma dimensão ideológica?
É difícil dizer. Acho que tendo em conta a escala do erro que foi cometido — porque, obviamente, houve um erro da parte de Putin, que achava que em poucos dias tomava Kiev e impunha um regime à Ucrânia — tem de haver algum tipo de cegueira ideológica. Putin tem de ter sido cegado por algo. Mas, por outro lado, não acho que ele seja um homem de ideias, um ideólogo. Acho que ele é um pragmático, uma aberração obcecada pelo seu próprio poder. Parece-me que o que se passa aqui é o paradoxo do poder, que é universal. Para obter o poder, para chegar ao poder, é preciso ser capaz de compreender os outros e as situações, de ter uma boa perceção da realidade; mas, quando se chega ao poder, perde-se essa capacidade, porque a pessoa passa a projetar-se apenas em si própria e está rodeada de uma corte que só lhe diz o que quer ouvir.
Isso acontece em todos os poderes, mas é também por isso que no Ocidente tentamos limitar o poder, para que não dure demasiado e tenha equilíbrios. Na Rússia não há muito disso e Putin já está no poder há 22 anos. Portanto, creio que essa cegueira vem mais deste facto do que de alguma forma de ideologia. Vem do facto de estar no poder absoluto, num sistema cada vez mais e mais auto-referencial, há demasiado tempo. E, é claro, com elementos de paranóia. Mas é claro que há um pouco de ideologia, e uma visão da Rússia, da identidade russa e da sua projeção.
No livro, esse elemento humano quase que se transpõe para a nação, como se ela também tivesse sentimentos humanos. Como a conferência de imprensa em que Bill Clinton se ri de Iéltsin — Putin sente isso como uma humilhação e isso é percecionado como uma humilhação de toda a Rússia.
Esse era um sentimento que existia de facto nos anos 90 e que nós não vimos. Há um filósofo político, Karl Schmitt, que disse: “A fraqueza do vencedor é não ter curiosidade nenhuma pelo perdedor.” E nós não tivemos curiosidade pelo perdedor e pelo seu ponto de vista. Essa é outra razão pela qual escrevi o livro, porque tinha curiosidade por esse ponto de vista. Portanto, não acho que Putin tenha sido o único a sentir isso. Talvez o tenha sentido mais do que os outros, porque investiu toda a vida dele [naquele sistema]: fez parte do KGB, acreditou numa certa ideia de Rússia. E essa é uma componente dele, mas não é a única. A húbris da figura do poder que está há demasiado tempo no poder é mais forte. E, para mim, esta cegueira, esta húbris, é o principal fator.
As fake news e a desinformação. “Os russos foram os primeiros a fazê-lo de forma descarada”
Falava há pouco da paranóia. Isso liga-se com o facto de muitas histórias relacionadas com o poder na Rússia estarem ligadas a possíveis teorias da conspiração, como a alegada responsabilidade do FSB nos atentados dos apartamentos de Moscovo (que levaram à segunda guerra na Chechénia) ou nas mortes de alguns oligarcas. No livro, Baranov desvaloriza essa responsabilidade, diz que as teorias da conspiração são apenas tentativas de arranjar explicações onde não há nenhuma. Mas não acha que a Rússia tem um sistema que acaba por alimentar muitas destas teorias, que faz com que não pareçam assim tão descabidas?
Baranov não diz que as conspirações não existem — diz que o mundo é mais complicado do que isso. É claro que há conspirações e outras vezes não há. Mas a ideia de que há um poder racional que controla tudo… A realidade é mais caótica. As pessoas que acreditam que há um poder racional que controla tudo estão a reforçar esse mesmo poder, que na realidade é mais fraco do que se imagina.
No fundo, Putin não seria capaz de tomar todas as decisões que se lhe atribuem?
Exatamente. E, mais uma vez: a estupidez humana, a pura sorte, tudo isso pode determinar acontecimentos. Mas é claro que isto é usado por Baranov e pelo propagandista real do Kremlin para gerar uma ideia de passividade. Nos velhos tempos, quando o KGB queria criar uma teoria da conspiração — por exemplo, provar que a SIDA foi criada em laboratórios americanos para dizimar a população africana —, construía uma conspiração elaborada. Fabricava informação médica, enterrava-a num lago na República Checa e depois uma missão falsa de arqueologistas encontrava esses documentos “por acaso”. Era uma coisa muito elaborada. Hoje em dia, já não funciona assim. Quando os separatistas pró-russos abateram o avião da Malaysia Airlines na Ucrânia, em 2014, foi um pouco embaraçoso para eles. Por isso, não espalharam uma versão alternativa; espalharam dez. Disseram que foram os ucranianos, depois que foi a CIA porque achava que Putin estava a bordo, depois foi um avião que encheram de cadáveres e fizeram explodir para culpar os russos… Dezenas de teorias diferentes. Quando se planta tantas teorias da conspiração diferentes o resultado não é convencer as pessoas de uma. O resultado é que as pessoas começam a dizer: “Quem sabe qual é a verdade? Nunca saberemos.” Esse é um dos objetivos da propaganda russa: tornar a realidade complicada, confusa, com cada explicação mais absurda do que a anterior. No final, já não vai importar, as pessoas desistem. Vão apenas dizer: “Nunca saberemos.” Por isso, as teorias da conspiração caóticas têm muitos usos diferentes.
É como diz no livro: juntam-se as ideias tanto dos skinheads como das feministas, dos vegans e dos anarquistas, tudo o que possa criar novas narrativas…
E caos. E isso cria um desligamento.
Mas isso não acontece apenas na Rússia. Escreveu até um livro sobre isso, Les ingénieurs du chaos (Os Engenheiros do Caos, sem edição em português). Acha que o caso russo é diferente das fake news dos outros países?
[Silêncio] Acho que eles na Rússia conseguem ir mais longe. São, de certa forma, a matrix original desse tipo de comunicação. Sempre houve uma tradição de desinformação e propaganda russas. Não apenas nos tempos soviéticos, já antes, com a polícia czarista, que era muito boa nisso. Mas, na década de 90, há um casamento entre essa tradição e as técnicas de comunicação contemporâneas. Em 1996, quando os oligarcas recrutam os melhores spin doctors americanos para a campanha de reeleição de Iéltsin, chamam-lhe “tecnologia política” — é por isso que, em russo, se chama aos spin doctors “técnicos políticos”. Hoje em dia ainda se soma a isso as redes sociais. Mas eles foram os primeiros a fazê-lo de forma muito descarada, como um verdadeiro teatro político e uma recriação da realidade. É claro que, neste momento, têm ainda menos constrangimentos, porque a imprensa é cada vez menos livre — neste momento, na Rússia, não tem liberdade de todo. Agora, é claro que essas técnicas hoje em dia são comuns a muitos outros contextos e situações políticas, já não são um exclusivo russo.
Embora no caso russo seja o próprio governo a promovê-las.
Sim [risos]. Mas depende. Encontramos elementos da propaganda de caos surkoviana em Bolsonaro no Brasil, em Trump nos EUA, em muitos movimentos políticos na Europa… E em Itália, é claro.
É uma propaganda com elementos muito imprevisíveis. Cheguei a ter de googlar partes do livro para confirmar se eram ficção ou se tinham acontecido mesmo, como o caso do Coro da Polícia a cantar uma música dos Daft Punk, nos Jogos Olímpicos de Sochi…
[Risos] Ah, sim, mas é completamente verdade! É fácil: todos os factos do livro são verdade. Não inventei nada, a não ser a vida privada da personagem principal e os diálogos. Os factos são todos verdade.
A chegada da guerra. “Baranov estava a maquilhar um poder que é brutal e bruto”
Mas é sintomático que algumas coisas sejam tão rebuscadas que parecem ficção. Torna difícil prever o que quer que seja sobre o Kremlin. Foi o caso da guerra na Ucrânia: poucos a previram, mas quando lemos o seu livro torna-se claro que já havia ali elementos que apontavam para aquela visão do mundo.
Sou sincero, não previ a guerra, é claro, e fiquei surpreendido como toda a gente a 24 de fevereiro. Mas acho que é coerente com tudo o que estava para trás. É claro que as coisas podiam ter acontecido de outras maneiras, porque, uma vez mais, a realidade não é determinada pelo destino. Mas a forma como aconteceu é, de certa forma, coerente. E é isso que a personagem principal do meu livro descobre. Ele, de certa forma, não gosta da violência, prefere alcançar os objetivos através da manipulação, considera a violência bárbara e desleixada. Mas a certa altura, quando está precisamente na Ucrânia, no Donbass, tem de enfrentar o facto de que o poder de Putin foi, desde o início, construído com a violência. Essa sempre foi uma componente fundamental do seu poder, não é de agora nem de há cinco anos. Desde 1999, desde o primeiro momento em que Putin emergiu como líder, a violência foi uma componente importante. Portanto, o que aconteceu agora é coerente com isso, conseguimos detetar padrões.
Depois, por outro lado, nós no Ocidente temos uma problema: não estamos confortáveis com a ideia de caos, de imprevisibilidade. Gostamos de prever, de projetar, de planear. E uma das armas de Putin é o facto de ele estar mais à vontade com o caos. Não apenas ele, muitos dos — chamemos-lhes assim — inimigos do Ocidente estão a usar o facto de estarem mais confortáveis no caos do que nós. É óbvio que esta situação é problemática para nós. Porque Putin está demasiado fraco para impor a sua ordem na Ucrânia, mas está forte o suficiente para impor o caos. É isso que está a fazer a todos os níveis e é o que tem vindo a fazer. E nós somos muito maus a lidar com o caos.
Baranov vê-se como uma espécie de encenador. Acha que Putin é “encenável”?
Não, e Baranov percebe isso desde o início. Ao contrário do que Berezvosky e os outros oligarcas pensavam, que podiam controlar Putin, o que Baranov percebe é que Putin não pode ser controlado. É por isso que a certa altura ele faz aquela comparação sobre os grandes atores de Stanislavski, o grande teórico russo do teatro. Stanislavski diz que há três tipos de ator. Um é o ator talentoso, que é bom numa noite, mas mau na seguinte, é uma trapalhada. Depois há o ator que é mais previsível — talvez não seja o melhor ator do mundo, mas pode confiar-se nele, não falha. E Stanislavski diz que o terceiro tipo de ator é o grande ator, porque não está sequer a representar: ele é a personagem. Esse tipo de ator não pode ser encenado. Pode-se acompanhá-lo, ajudá-lo, participar, mas não se pode dirigi-lo.
Baranov descobre que Putin é esse tipo de ator muito cedo e, ao longo de todo o livro, o que vai fazer é tentar trabalhar com ele e tentar fazer coisas que Putin talvez não conseguisse fazer sozinho. Por exemplo, Putin nunca foi à internet na vida, nem sequer tem computador, é muito velho em determinadas coisas. Enquanto que Baranov é um pós-moderno e conhece a cultura ocidental, por isso pode ser útil a Putin. Mas não o dirige. É essa a ideia que tenho de Putin, sinceramente. A certa altura havia quem dissesse: “Ele é uma marioneta do sistema de segurança, os antigos tipos do KGB controlam-no.” Não acho que seja o caso. Acho que há uma interação entre eles, mas o líder é ele, não é manipulado. É claro que o poder é algo complexo e há todo o tipo de interações, mas o meu Baranov não é de certeza um marionetista. É um manipulador, mas não é o marionetista de Putin.
A certa altura, Baranov decide sair do Kremlin. É porque em tempos de guerra ele não tem lugar ali?
A certa altura ele compreende que a forma sofisticada como ele pensa a comunicação e a propaganda, como uma forma de performance artística, é uma superestrutura. Está lá, mas não é a essência, a essência do poder de Putin é a violência. Baranov tinha uma certa ilusão de que estava no lugar do condutor, mas na verdade estava apenas a maquilhar um poder que é fundamentalmente brutal e bruto. A sua tragédia íntima, pessoal, é que ele é muito europeu — é um homem mergulhado na cultura europeia, em parte pelo que herdou, em parte por si próprio —, mas tudo o que fez junto a Putin levou-o a um confronto final com a Europa, quando é alvo de sanções. Já nem sequer pode entrar na Europa. A tragédia é que ele tem esta atração pela Europa, mas acaba por ser banido dela. E esta é uma história que creio ter um significado mais lato quando vemos o que se passa com a Rússia hoje. A Rússia sempre teve esta atração pela Europa e pelo Ocidente e isso faz parte da sua identidade, mas há outro lado que vai numa direção diferente. Há um desejo e uma frustração e uma guerra constante com a Europa. Isso estava tudo no livro, mas não consegui prever que as coisas iriam tão longe como acabaram por ir.
Se tivesse de continuar o livro, onde acha que Baranov estaria hoje em dia? A sua inspiração, Surkov, está alegadamente em prisão domiciliária desde a invasão.
Isso foi dito, mas, pelo que sei, não é verdade. Mas não há dúvidas de que ele está afastado. E acho que Baranov estaria afastado também, no final do livro já estava afastado. Essa é outra coisa estranha. Quando escrevi o livro, imaginei Baranov a reformar-se depois das sanções, logo após a tomada da Crimeia. Se tivéssemos de datar o livro, diria que ele sai em 2014, 2015 e o final do livro, quando ele fala com o outro narrador, seria dois ou três anos depois disso. Quando escrevi o livro, Surkov ainda trabalhava com Putin, portanto imaginei isto tudo antes de ele sair. E, depois, ele foi afastado. Foi afastado, não se reformou — não é exatamente a mesma coisa. É por isso que este é Baranov e não Surkov, são duas personagens diferentes. Surkov é menos agradável. O meu Baranov é cínico, mas não é tão mau [risos]. Portanto, Surkov foi afastado na primavera de 2021, mas no meu livro por essa altura ele já estaria reformado. Quando se começa a bombardear civis, a destruir cidades, a invadir, já não há espaço para a manipulação, para a sofisticação, para o teatro político. É claro que se pode continuar a usá-los, os russos ainda o fazem e às vezes são bem sucedidos, mas não há grande margem para isso. Por isso, não há grande margem para personagens como Baranov ou como o Surkov real. Até na Rússia de hoje em dia, em que se pode ir 15 anos para a prisão por discordar da linha oficial, pessoas como Baranov e Surkov já não têm grande propósito e até são um perigo para elas mesmas. São personagens ambíguas.
A guerra é um palco confortável para um ator como Putin?
Acho que ele está à vontade. Há aqui algo que até é assustador, noto um certo alívio. “Vamos parar de fingir, vamos parar de nos conformar com as regras vindas de fora, voltemos a ser o que éramos e que queremos ser.” Esta é uma narrativa que está a ser impingida aos russos e que penso ter algum sucesso junto de parte da opinião pública. “Estamos melhor isolados, em conflito com o Ocidente, porque eles são nossos inimigos e não temos de os imitar ou de tentar agradar-lhes”. Há aqui uma clareza que se traduz numa ideia de “Não somos como eles, eles não se sabem sacrificar. Nós sabemos, já o fizemos pela grandeza da Rússia no passado, fomos educados assim”. Muitos russos pensam assim, acho que até o próprio Putin. É por isso que não insisto na questão do dinheiro e da cleptocracia no livro. Está presente, é claro, porque sabemos como este é um regime cleptocrata e como tanta gente em torno de Putin ficou incrivelmente rica…
Mas o dinheiro não é a principal motivação de Putin?
Acho que nunca foi a prioridade dele. Provavelmente é incrivelmente rico, como tem sido dito e provado de tantas formas, mas não acho que seja essa a questão para ele. A questão é o poder. Uma pessoa que prioriza o dinheiro e que o aprecia não faz a guerra. O Berlusconi não teria começado uma guerra, quer aproveitar as suas villas [risos]. Putin não. [Para ele] o dinheiro é apenas uma expressão do poder e ele está disposto a sacrificar isso pela visão que tem de si próprio, pelo seu papel na História, por se tornar o Czar. Infelizmente, creio que até tem um certo gozo nessa tentativa de levar tudo ao extremo.
Encara isso quase como uma forma de purificação?
Sim. Mas esta é a minha forma de ver as coisas, é claro. A última coisa que Baranov diz sobre Putin é quando o vê no cemitério sozinho, apenas com a cadela. Essa é uma ideia que outro escritor e filósofo, Elias Canetti, abordou quando escreveu sobre o poder. A de que o verdadeiro homem do poder é alguém que quer sobreviver a todos e acaba por matar todos, porque leva essa lógica até ao fim. Esse elemento existe em Putin e é por isso que, no livro, ele não substitui Baranov como conselheiro, passa a apoiar-se apenas na sua cadela. Acaba por matar todos os seus conselheiros, figurativamente (alguns talvez literalmente). Há esta solidão na figura do poder que quer ser a única, o único sobrevivente. Infelizmente, na situação atual, acho que ele sabe que cometeu erros, mas está à vontade com isso. Não o incomoda assim tanto. E isso é um problema.