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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Entrevista ao homem que perdeu a mulher e os dois filhos em Irpin. "Só quero ver Putin condenado à pena de morte"

A morte da mulher e dos filhos de Sergii em Irpin tornou-se um símbolo do horror da guerra. "A Rússia perdeu para sempre qualquer hipótese de perdão de todos os ucranianos". Entrevista em Kiev.

Entrevista dos enviados especiais do Observador à Ucrânia

Sem saber que seria a última conversa com a mulher, Sergii Perebyinis ligou-lhe na véspera da morte dela, na noite de 5 de março, faz agora um mês. “Pedi desculpa à Tatyana por não estar com ela e com os nossos filhos, e por não estar a conseguir ajudar”.

Sergii, um especialista em tecnologias da informação, tinha ido a Donetsk prestar assistência à mãe, que ficou doente com Covid antes de a guerra começar, e depois já não conseguiu sair do território ocupado pelos russos. Donetsk, junto à fronteira, fica a 760 quilómetros de Irpin, onde permaneceram Tatyana, de 43 anos, e os filhos, Mykyta, de 18, e Alisa, de 9.

Irpin também já estava cercada pelos militares inimigos, uma semana depois de a guerra ter começado. Tatyana, os dois filhos e Anatoly Berezhnyi, um voluntário da igreja que os tentava ajudar na fuga a pé, foram atingidos por um ataque de morteiro russo junto à ponte destruída de Irpin. A fotógrafa do New York Times Lynsey Addario captou a imagem que mostra os quatro corpos no chão, juntamente com as malas e mochilas onde levavam a roupa, nos instantes logo a seguir, quando dois militares ucranianos ainda tentavam socorrer o voluntário. Morreram os quatro, juntamente com os dois cães da família, Keks e Benz. A imagem faria a capa do New York Times do dia seguinte, tornando estas mortes de civis em fuga um símbolo do horror da guerra russa contra a Ucrânia.

Os fotógrafos fizeram o seu trabalho: mostraram a verdade ao mundo inteiro. Mostraram a toda a gente o que está a acontecer na Ucrânia.
Sergii Perebyinis, que perdeu a mulher e os filhos num ataque de morteiro quando tentavam fugir de Irpin

Sergii recorda que conheceu Tatyana numa discoteca em 1999. Casaram-se em 2001. “Adorávamos fazer coisas juntos. No verão andávamos de bicicleta nas florestas à volta de Irpin. No inverno íamos esquiar. Tinha imenso talento para trabalhos manuais e de bricolage: juntos, fizemos a renovação de três apartamentos. Ela adorava ioga e fitness. E era uma pessoa mesmo positiva.”

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O filho mais velho, Mykyta, estava no segundo ano da faculdade, num curso de programação. Frequentava o ginásio, adorava jogos de computador e passeios de bicicleta.

A filha, Alisa, andava na dança, tinha aulas de inglês e adorava desenhar.

Primeira página do The New York Times do dia 7 de março de 2022

“Se quiserem podem prender-me, já não tenho nada a perder”

O Observador encontrou-se com Sergii Perebyinis, de 43 anos, na praça central de uma vila nos arredores de Kiev, onde está a viver, com três casais amigos. Levou as mochilas dos filhos, que ainda encontrou no chão, junto ao local onde foram atingidos mortalmente. No momento em que estava a ser fotografado, um polícia aproximou-se para indicar que não poderia ficar em fundo nenhum dos edifícios públicos que circundam a praça, por questões de segurança, para dificultar a identificação de alvos por parte do inimigo.

Como é que se apercebeu desta tragédia com a sua família? 
Nós utilizávamos a geolocalização e a primeira coisa que vi foi que o telemóvel da minha mulher estava numa estrada entre Stoyanka e Kiev, onde não era suposto ela estar. E depois a localização mudou para o Hospital 7 em Kiev. Liguei para o telemóvel, mas ninguém atendia. Passado uns 20 minutos, apareceu no Twitter uma publicação a dizer que uma família morreu em Romanivka. E passado mais uns 20 minutos apareceu a primeira fotografia e reconheci os meus filhos.

Onde estava nesse momento? 
Estava em Donetsk, no meu apartamento. Tinha ido para lá no dia 17 de Fevereiro, porque a minha mãe apanhou Covid-19 e foi hospitalizada.

O que é que fez a seguir? 
Percebi que precisava de sair dali de alguma forma. O problema é que em Donetsk ainda continuava a ocorrer a mobilização de todos os civis: eles simplesmente apanham as pessoas na rua e levam-nas para as organizações militares ilegais. Consegui contactar o posto fronteiriço do território ocupado e perguntei se poderia sair devido à morte da minha família. Eles disseram que não haveria problema, mas que no meio da estrada entre Donetsk e o posto fronteiriço havia o posto MVD, que é basicamente o Serviço de Segurança da DNR [República Popular de Donetsk, separatista]. Disseram que se conseguisse explicar aí a minha situação, poderia passar.

Vai ser uma guerra até ao último ucraniano. Ninguém vai abandonar as suas terras. Ninguém vai bater em retirada. E se a Europa e o mundo não nos ajudarem com armas, o país será arrasado, como se vê agora em Mariupol
Sergii Perebyinis, que perdeu a mulher e os filhos num ataque de morteiro quando tentavam fugir de Irpin

Na impossibilidade de sair pela Ucrânia, tentou então sair pela Rússia. Conseguiu? 
Sim, fui de carro. Cheguei até ao tal posto e eles disseram-me: “Sai do carro”. E depois: “Tu devias estar a ser mobilizado”. E respondi: “Não, a minha família morreu em Irpin, preciso de chegar até casa. Se quiserem podem prender-me, já não tenho nada a perder”. [faz o gesto de juntar os pulsos, como se se oferecesse para ser algemado]

E eles deixaram-no ir? 
Sim. Depois parei em Rostov [Rússia], e entrei num autocarro até Moscovo [1.085 quilómetros de distância, um dia de viagem]. Enquanto estava no autocarro, falava com os colegas da Tatyana para me ajudarem a ver por onde ir a seguir. Em Moscovo apanhei um avião para Kaliningrado [província russa entre a Polónia e a Lituânia] e daí para a Polónia e depois uma mini-van até à fronteira com a Ucrânia. Um amigo meu de Lviv foi buscar-me à fronteira, levou-me até Rivne e aí apanhei outro carro que me trouxe até aqui. Todo este percurso demorou quatro dias.

Foi ainda mais difícil ter de passar em Moscovo, a capital do país inimigo que matou a sua família, a meio dessa viagem para tentar regressar a Irpin?
O meu objetivo era chegar a casa, não pensava em mais nada.

“Obviamente, sinto raiva. E desejo vingança. E sim, há fúria e incompreensão”

Quando chegou a Irpin, ainda conseguiu ir ver a sua família? 
Sim, fui à morgue. Os meus amigos já tinham feito o reconhecimento dos corpos. Mas depois ainda surgiu o problema de ser necessário desbloquear o telemóvel da minha mulher por impressão digital, porque ela era diretora financeira de uma grande empresa americana e naquele telemóvel estavam todas as informações relacionadas com os pagamentos.

Houve algum discurso no funeral? 
Não, no funeral, estavam apenas 10 pessoas mais próximas. Só falámos em casa, quando estávamos todos sentados à mesa.

Conhecia o voluntário da Igreja que estava a tentar ajudar a sua família na fuga? 
Não. Sei que ele era de Irpin e ajudava a transportar, no seu autocarro, mulheres e crianças para deixarem a cidade. Ele era deslocado como nós, que saímos de Donetsk em 2014. Ele era deslocado de Luhansk.

A própria fotógrafa do New York Times que captou a imagem da sua família admitiu que hesitou antes da publicação. Acha que deviam ter evitado publicá-la?
Não, não acho. Os fotógrafos fizeram o seu trabalho: mostraram a verdade ao mundo inteiro. Mostraram a toda a gente o que está a acontecer na Ucrânia.

A última coisa que posso fazer pela minha família é isto: dar o testemunho, falar com os jornalistas. Isto é um crime de guerra. Eu não quero dinheiro, sou um especialista em IT, não me falta dinheiro. Quero apenas justiça.
Sergii Perebyinis, que perdeu a mulher e os filhos num ataque de morteiro quando tentavam fugir de Irpin

Sente que a tragédia com a sua família se tornou um símbolo de todas as vítimas que sofreram algo semelhante? 
Sim, provavelmente. Deve ter sido das primeiras, mas entretanto já morreram muitas mais famílias. No mesmo dia, 12 carros tentaram sair de Irpin através de Stoyanka e ficaram debaixo de fogo dos soldados russos. Os primeiros quatro carros foram completamente destruídos, algumas das pessoas foram sequestradas pelos russos, incluindo uma vizinha nossa. A minha mulher era para ter estado num desses 12 carros.

Como é que olha para esta fotografia hoje? 
Obviamente, sinto raiva. E desejo vingança. E sim, há fúria e incompreensão por tudo isto que aconteceu, ou seja, ainda não assimilei tudo até ao fim. Por outro lado, apesar de já me terem chamado para Irpin para ajudar as forças de defesa territorial nos combates, eu também percebo que sou preciso aqui. Estou a viver com três famílias, somos todos refugiados de Donestsk, que tivemos de deixar em 2014. Já ninguém vai voltar a fugir para lado nenhum. Os meus amigos pediram-me para ficar com eles, para sobreviver nestes tempos difíceis.

Faz parte da defesa territorial aqui? 
Tenho amigos que sim, mas eu não. Neste momento, estou a tratar de todas as questões familiares.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

“Eu acho que não lhe diria nada. Aquela pessoa [Vladimir Putin] não nos compreende”

O Presidente Zelensky partilhou esta fotografia nas redes sociais. Ele ou algum outro representante do Estado falou consigo?
Não. Eu vi essa partilha, mas ninguém falou comigo. Acho que a última coisa que posso fazer pela minha família é isto: dar o testemunho, falar com os jornalistas. Isto é um crime de guerra. Eu não quero dinheiro, sou um especialista em IT, não me falta dinheiro. Quero apenas justiça.

O que diria a Vladimir Putin, se pudesse encontrar-se com ele? 
Eu acho que não lhe diria nada. Aquela pessoa não nos compreende. Ele destrói banalmente os ucranianos. Por algum motivo, não gosta de nós. Ele está noutra dimensão. Só quero que seja condenado à pena de morte.

O que está exatamente a fazer para conseguir justiça? 
Neste momento, apresentei queixa à Procuradoria-Geral. Estão a recolher testemunhos de vários cidadãos que sofreram durante a guerra, através de um website, onde é necessário colocar todas as informações: a data e o lugar do acontecimento, descrição do ocorrido, quem morreu e fotografias. Também estou a tentar, com a ajuda de juristas, alcançar o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Custa-me ver as matanças e violações de civis e quero ver um veredicto justo para os soldados e generais russos.

Vai tentar descobrir quem foram os militares russos que ordenaram e executaram este ataque de morteiro que matou a sua família?
Dada a estupidez e o primitivismo deles, acho que é quase impossível descobrir os executantes.

Há sondagens que indicam que 80% da população russa apoia esta guerra. Acha que alguma vez conseguirão perdoá-los?
Não. A Rússia perdeu para sempre qualquer hipótese de perdão de todos os ucranianos.

Como é que acha que a guerra vai acabar?
Todas as guerras acabam. No nosso caso, vai ser uma guerra até ao último ucraniano. Ninguém vai abandonar as suas terras. Ninguém vai bater em retirada. E se a Europa e o mundo não nos ajudarem com armas, o país será arrasado, como se vê agora em Mariupol.

O que vai fazer agora, além de lutar pela justiça? 
Tenho recolhido ajuda humanitária para os meus vizinhos em Irpin. Ajudei numa clínica veterinária que está a transportar animais feridos de Irpin para Kiev. Compro botijas de gás e gasolina para os meus vizinhos. E entretanto já estou a trabalhar. É difícil devido à dor, não me consigo focar a 100% no trabalho, mas tento.

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