Agora com 67 anos de idade, desde os dez que Maria Fernanda Rodrigues sabe o que é ter epilepsia, pois foi nessa idade precoce que viveu a primeira crise e recebeu o diagnóstico. Embora não negue o receio que sempre a acompanhou, como o de ter crises em público, por exemplo, a verdade é que, como a própria afirma, procurou “fazer sempre uma vida o mais normal possível”. E conseguiu. Conseguiu até nunca mais ter tido uma única crise, desde que, em 2014, se submeteu a uma intervenção cirúrgica que a livrou dos episódios quase diários que sofria nos últimos cinco a seis anos antes da cirurgia.
A epilepsia é, segundo a definição apresentada pela Liga Internacional Contra a Epilepsia, uma doença neurológica crónica que se caracteriza pela predisposição cerebral para a manifestação de crises epiléticas recorrentes e não provocadas. Estas crises resultam de uma atividade elétrica cerebral anormalmente excessiva e a forma como estas se manifestam é variada, dependendo das áreas cerebrais envolvidas.
Este é o quarto distúrbio neurológico mais frequente globalmente, estimando-se que mais de 50 milhões de pessoas de todas as idades sofram de epilepsia no mundo. Em Portugal, entre 40 mil a 70 mil pessoas terão esta doença, ou seja, cerca de uma pessoa em cada 200. No dia 22 de julho assinala-se o Dia Mundial do Cérebro.
Como se encara a doença condiciona o seu impacto
O testemunho de Maria Fernanda Rodrigues sobre a forma como escolheu viver a epilepsia é poderoso, desde logo porque, apesar de o impacto da doença no seu dia a dia ter sido grande, decidiu nunca deixar nada por fazer. “Sempre tive algum constrangimento por saber que, de um momento para o outro, poderia ter uma crise, mas tudo o que me apetecia fazer eu tentava e fui fazendo. Acho mesmo que fiz uma vida perfeitamente normal”, afirma. Com efeito, estudou, trabalhou, foi mãe, cuidou de crianças, deu explicações e é avó. “Portanto, acho que fiz sempre aquilo que qualquer pessoa faria”, conclui.
O neurologista Pedro Guimarães, que é também vogal da Direção Nacional da Liga Portuguesa Contra a Epilepsia (LPCE), confirma que “a maioria das pessoas com epilepsia, se adaptadas à condição e bem controladas, têm um quotidiano sem significativas dificuldades ou até mesmo normal”. Ainda assim, o também neurofisiologista clínico sublinha que “o impacto da doença é extremamente variável e encontra-se na dependência de fatores individuais, nomeadamente, idade, causa e severidade da epilepsia, rotinas diárias, em particular profissional, suporte social, tipo de tratamento e resposta ao mesmo”.
Por outro lado, chama a atenção para um facto nem sempre considerado: “A expectativa e perceção individual acerca desta perturbação determinam também a respetiva resposta psicológica a esta condição.” Quer isto dizer que a forma como cada pessoa decide viver a doença vai determinar grandemente o impacto que esta poderá ter, ou não, no seu dia a dia.
A imprevisibilidade da crise
Mas se é verdade que ter uma postura positiva perante a doença pode ajudar muito, não é menos verdade que, inicialmente, tal poderá ser difícil de conseguir. Pedro Guimarães salienta a este propósito que “a epilepsia, sobretudo numa fase inicial do diagnóstico, tem potencial impacto negativo na qualidade de vida”, e a grande responsável é a incerteza. “Como a própria origem etimológica da palavra epilepsia indica – surpresa – a imprevisibilidade de uma crise, nomeadamente numa epilepsia não controlada, determina insegurança e receio de manifestar esta perturbação em público ou em situação desprotegida, condicionando a socialização do indivíduo e contribuindo muitas vezes para a baixa autoestima”, refere o médico.
Maria Fernanda Rodrigues percebe isto muito bem, contando que, no seu caso, “a doença era impactante, pois podia acontecer no caminho ou no escritório”. “Se não estivesse sentada ou não pressentisse [a chegada da crise] tinha queda certa e, mesmo sentada, cheguei a escorregar para debaixo da secretária, mas os meus colegas já sabiam e quando eu tinha a crise deixavam-me estar ou simplesmente amparavam-me”, recorda.
De acordo com Pedro Guimarães, quando o diagnóstico surge em idades jovens, é possível que possa “comprometer a independência tão esperada nesta faixa etária, condicionando a progressiva independência face aos cuidadores e educadores, podendo retroceder e ser substituída por superproteção, o que pode resultar em consequências psicológicas e dificuldades relacionais”. Outras situações que podem ter também grande impacto prendem-se com a eventual “restrição de condução de veículos, dificuldade de empregabilidade, restrições laborais e incompreensão por parte da entidade patronal”, identifica o especialista.
Já em idades mais avançadas, “a epilepsia pode acrescentar mais isolamento, agravar eventual disfunção cognitiva e ainda favorecer quedas e as suas consequências”, explica.
Maior risco de quedas e hematomas
Sabe-se que as pessoas com epilepsia tendem a registar mais fraturas e hematomas como consequência das lesões ocorridas durante as crises epiléticas, em comparação com as pessoas que não têm epilepsia. Considera-se igualmente que o seu risco de morte prematura é até três vezes superior face à população em geral, nomeadamente, devido a quedas, afogamentos, queimaduras e convulsões prolongadas.
Pedro Guimarães confirma o risco, porém, realça que este “é extremamente variável e não deve ser generalizado, pois existem diferentes fatores que, uma vez presentes e conjugados, determinam um espectro de risco extremamente alargado”. É o caso da idade, existência de outras doenças, grau de controlo da epilepsia, causa e tipo de epilepsia, e ainda padrão circadiano das crises, ou seja, se estas ocorrem quando a pessoa está acordada, a dormir ou em ambos os estados.
Acima de tudo, e de forma a minimizar os possíveis impactos negativos, o especialista defende que “é fundamental manter uma boa comunicação com a pessoa com epilepsia, privilegiando-se a empatia e garantindo-se tempo para dúvidas e questões que necessitam, numa primeira abordagem, de ser tranquilamente explicitadas”.
Tratamentos eficazes disponíveis
Por apresentar resistência aos fármacos para tratar a epilepsia, a solução encontrada para que Maria Fernanda Rodrigues pudesse controlar a doença e viver sem crises foi a cirurgia, e o resultado foi exatamente o esperado: “Neste momento, não digo que faça aquilo que não fazia antes, pois sempre tentei e fiz de tudo, mas o sentimento agora é: vá eu onde for ou esteja com quem estiver, não sinto o receio de vir a ter uma crise, nem de preocupar quem estiver perto de mim, nem de me molestar ou ferir. Acho que é mesmo uma sensação de liberdade.”
Com efeito, há que encontrar o tratamento certo para cada doente em particular, uma vez que, como explicita Pedro Guimarães, “o espectro de resposta à terapêutica é extremamente variável”. “Temos epilepsias cujo início de terapêutica é questionável, epilepsias que se controlam muito facilmente com um único fármaco anticrise epilética, e outras que necessitam de mais do que um. No outro extremo, que corresponde a cerca de um terço das epilepsias, o controlo não é obtido com medicamentos, devendo ser ponderadas alternativas não farmacológicas onde se incluem a cirurgia e outras modalidades como técnicas de neuromodulação e dieta cetogénica”, enumera. Nas palavras do médico, estas diversas opções disponíveis “têm o propósito de oferecer à pessoa com epilepsia o melhor controlo de crises e, se possível, um controlo absoluto, de forma que se garanta máximo benefício na qualidade de vida”.
De salientar ainda que, com vista a proporcionar a melhor resposta possível aos doentes, aqueles cuja epilepsia oferece maior resistência aos tratamentos “são atualmente alvo de uma abordagem multidisciplinar em grupos constituídos por neurologistas gerais, epileptologistas, neurofisiologistas clínicos, neurocirurgiões, psiquiatras, neuropsicólogos, técnicos de neurofisiologia, enfermeiros e assistentes sociais, que se reúnem e comunicam entre si com o objetivo maior de oferecer as melhores soluções em todas as vertentes que terão positivo impacto na qualidade de vida”, destaca o especialista.
Combater o estigma
“O medo de ter uma crise e ficar mal, e a incompreensão de quem, por ignorância, nos vê mal e ainda troça do sucedido”, é a experiência de estigma associado à doença vivida por Maria Fernanda Rodrigues. De facto, apesar de a maior parte dos doentes ter as crises controladas, sendo capazes de fazer uma vida totalmente normal e sem grandes limitações, ainda assim, o estigma social associado à epilepsia persiste, pelo que deve ser combatido.
Segundo Pedro Guimarães, o esclarecimento deve começar junto dos próprios doentes e familiares, “explicando-lhes o porquê da perturbação cerebral, devendo ser expostas as soluções”, da mesma maneira que “a necessidade de eventuais restrições deve ser calmamente justificada com base na segurança da pessoa, e lembrando que as mesmas poderão ser aliviadas consoante os objetivos alcançados”.
Além disso, defende que “deve estimular-se a pessoa com epilepsia a prosseguir a sua vida nos diferentes domínios, sejam eles sociais, profissionais ou académicos”, pois, “atuar numa base de otimismo ajudará a evitar a baixa de autoestima, fortalecendo um sentimento de esperança no sucesso do controlo desta perturbação neurológica”.
Por outro lado, o médico frisa que “é fundamental que cada vez mais sejam realizadas campanhas de educação para a saúde acerca da epilepsia e que as mesmas sejam levadas a cabo em diferentes contextos, instruindo diferentes faixas etárias e classes profissionais”. “Só assim é possível incrementar a literacia em saúde na epilepsia, desmistificando o problema, elucidando acerca das verdadeiras causas desta perturbação cerebral, dando a conhecer a existência de terapêuticas eficazes, salientando-se que a maioria das pessoas com epilepsia encontram-se controladas e que, mesmo para aquelas em que o controlo é difícil, existem soluções que podem determinar uma vida melhor”, sustenta.
Talento jovem na área da epilepsia premiado
A 14.ª edição do Angelini University Award (AUA), uma iniciativa promovida pela Angelini Pharma destinada a jovens a frequentar o ensino superior na área da Saúde em Portugal, é este ano subordinada ao tema “Epilepsia – Soluções para uma melhor gestão da doença”. O concurso, que esta edição conta com o patrocínio científico da LPCE, tem o objetivo de fomentar projetos na área da saúde com aplicabilidade prática, que permitam gerar inovação e promover o empreendedorismo jovem, este ano focado especificamente na epilepsia. Os dois melhores projetos terão um prémio monetário no valor de 10 mil e 5 mil euros, respetivamente. Os vencedores serão revelados em novembro, numa cerimónia a acontecer no Pavilhão do Conhecimento, em Lisboa, e que vai ser transmitida em direto pelo Observador.
O júri desta edição do AUA é integrado por Carla Bentes, presidente da LPCE, Carlos Cortes, bastonário da Ordem dos Médicos, Luís Lourenço, presidente da Direção da Secção Regional do Sul e Regiões Autónomas da Ordem dos Farmacêuticos, e Miguel Telo Arriaga, chefe da Divisão de Literacia em Saúde e Bem-Estar da Direção-Geral da Saúde. Estes quatro especialistas serão responsáveis pela avaliação dos trabalhos, seleção dos semifinalistas e dos dois grandes vencedores.
Este artigo teve o apoio da Liga Portuguesa Contra a Epilepsia. Para saber mais sobre a epilepsia visite: www.epilepsia.pt
ANG 109-07/23