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Texto e fotografias dos enviados especiais do Observador à Ucrânia, Cátia Bruno e João Porfírio
Pavlo Konovsky começa esta formação de manuseamento de armas com o grito Slava Ukraini! (Glória à Ucrânia), que já se tornou lema nacional. Os cerca de 30 homens ali presentes respondem-lhe prontamente: Heroiam slava! (Glória aos heróis). Ocupam as cadeiras vermelhas desta sala de cinema no centro de Lviv na esperança de aprender o mínimo para saberem mexer numa arma de guerra, caso venha a ser preciso. O instrutor — militar com experiência que passou quatro anos a combater em Donbass — sublinha que em tempos normais não seria preciso ensinar civis a mexer em Kalashnikovs. Mas a Ucrânia não vive tempos normais.
“Temos um vizinho mau. Vivemos ao pé de uma casa de malucos, com a porta aberta. A cabeça daquele Presidente não está boa”, diz Pavlo aos novos recrutas, antes de demonstrar como se desmonta e se volta a montar uma AK-47. Na primeira fila, Oleh Fentsyk absorve cada uma das suas palavras com atenção. Os olhos não descolam do militar e este ucraniano não hesita em fazer perguntas cada vez que lhe surge uma dúvida.
Não tarda até que Oleh e os restantes sejam chamados ao palco para eles próprios treinaram o desmontar e montar de uma Kalashnikov. Primeira tentativa de Oleh: dois minutos. Segunda: minuto e meio. “Isto é como um diamante, ‘tás a ver? É preciso trabalhá-lo. Podes lembrar-te agora, mas se não continuas a fazer, vais-te esquecer. E isto tem de ser como lavar os dentes, tem de ser automático”.
Oleh fala assim ao Observador, em português corrente, abreviando até o “estás” para “‘tás”. É o resultado de sete anos passados em Portugal, como trabalhador na refinaria da Galp, em Sines. (“O Festival Músicas do Mundo é muito bom, conhecem?”, pergunta a determinada altura). Em 2017, regressou à Ucrânia, para tomar conta do pai, que estava doente. Desde então que continua aqui em Lviv, onde trabalha na empresa que assegura a manutenção das câmaras de vigilância da cidade. A mãe e a irmã ficaram em Portugal, onde ainda vivem, por adorarem “o solinho”. Oleh visita-as sempre que pode: “Vou a uma casa do Benfica, bebemos uns copinhos, jogamos um snooker e eu penso sempre: a vida é super, a cerveja é Sagres”, comenta, entre risos, antes de explicar que considera a concorrente Super Bock “demasiado doce”.
Desmontar e montar uma Kalashnikov 100 vezes, até ser “automático”
Essas memórias, porém, são agora secundárias. Oleh teve folga da empresa para poder ajudar nos esforços de voluntariado que nascem um pouco por toda a cidade. Neste cinema, como em tantos outros locais, recolhe-se comida e roupas para enviar para os militares e para os refugiados. E, é claro, dá-se formação aos civis que querem aprender a pegar numa arma.
O instrutor Pavlo já o fazia com alguma regularidade — duas a três vezes por semana — desde o início de fevereiro, quando muitos ucranianos começaram a temer o aumento da presença militar russa do outro lado da fronteira. Desde que a guerra rebentou, porém, passou a fazê-lo todos os dias. “Há sempre pessoas novas a chegar”, confirma.
E embora a maioria dos civis fique mais fascinada com a visão de terem nas mãos uma AK-47 pela primeira vez na vida, Pavlo faz questão de incluir na formação outro elemento importante: noções básicas de primeiros socorros. É por isso que demonstra perante a audiência como se pode fazer um torniquete com um elástico específico que tem nas mãos e ilustra os pontos do corpo onde deve ser apertado o garrote. “O mais importante para quem não tem formação militar é aprender a salvaguardar a vida dos outros, com primeiros-socorros, e a usar táticas mais fáceis, como os cocktail molotov”, diz ao Observador. Apesar disso, acha que, perante a situação, se justifica mostrar a civis como se mexe numa arma.
Andri Drobit pegou numa AK-47 pela primeira vez no dia anterior, noutra formação, e repete agora a experiência. “Espero nunca vir a usá-la, mas tenho de saber”, afirma. “Agora já peguei duas vezes, mas o instrutor diz que têm de ser 100 vezes para estarmos prontos. É preciso fazê-lo depressa. Sob pressão, uma pessoa pode esquecer-se. Tem de ser automático.”
Com apenas 25 anos, Andri trabalha como jornalista num portal de notícias especializado em política e investigação a casos de corrupção. “Há uma semana ainda só me preocupava com problemas do dia-a-dia. E de repente, à noite, Putin começa a guerra”, conta. “Espero que os cidadãos russos tentem ajudar os ucranianos e o travem. Não quero usar palavras feias, é importante mantermo-nos educados, mas ele só pode estar louco quando mata civis. Espero que toda a Europa saiba disto.”
O jovem admite que nunca imaginou que iria pegar numa arma destas e muito menos que poderia vir a ter de usá-la: “É difícil explicar o que sinto agora”, tenta resumir, encolhendo os ombros. Não exclui ir para a linha da frente, se vier a ser necessário. “Não tenho experiência e por isso sei que não posso ajudar muito. Por enquanto temos militares suficientes, mas sei lá se para a semana não somos todos mobilizados?”, interroga-se.
Matar e morrer porquê? “Porque é a nossa terra, a nossa mãe”
À porta deste cinema de Lviv ainda estão os cartazes com as últimas estreias e, na bilheteira, ainda se veem as máquinas que fazem pipocas. Mas já ninguém aqui vem para ir ver um filme. Os voluntários, como Oleh, servem chá e café a quem aparece para deixar donativos. Os que vieram para a formação dividem-se: os mais novos parecem fascinados com a repetição mecânica de desmontar e montar a arma; os mais velhos rapidamente abandonam a sala para ir fumar um cigarro lá fora.
Andri continua na sala a falar com Pavlo. Já desistiu de mexer na Kalashnikov, chega por hoje. Mas mantém-se ao lado dos amigos, alguns que até aproveitam para posar para os fotojornalistas estrangeiros com duas armas na mão. Ao Observador, o jornalista ucraniano dá uma última explicação para estar ali, neste ambiente militarizado que até há pouco tempo lhe parecia tão estranho: “É o meu país, é a minha casa. Tenho de proteger a minha família, tenho de estar pronto. Se o meu país me chamar, tenho de ir”, resume.
Já Oleh desiste rapidamente de se acotovelar nas mesas onde estão as armas. É mais velho, está mais focado: quer repetir várias vezes por dia aquele gesto, mas não esquece as outras coisas que é preciso ir fazendo — “Querem chá?”, pergunta várias vezes às pessoas que chegam. Na segunda-feira, regressará ao trabalho, “até porque gerir as câmaras também é tratar da segurança da cidade”.
Mas mantém uma consciência aguda de que nada será como dantes e, por isso, as armas têm de passar a fazer parte do seu dia-a-dia. Lembra-se bem disso quando faz o telefonema diário à avó, de 95 anos, que vive numa cidade perto de Kiev, atualmente a ser atacada. “Ela diz-me sempre que isto não é nada. Telefono-lhe para a acalmar, mas ela é que acaba por me acalmar a mim”, confessa. A avó, sobrevivente da II Guerra Mundial, também lhe diz, contudo, que “o pior da invasão ainda está para vir.”
É por isso que Oleh continuará a vir à formação todos os dias, para repetir aqueles gestos mecanicamente: retirar o carregador, tirar a parte da frente, desmontar a cobertura, retirar o arame interior, agarrar e soltar a alavanca. Depois repetir tudo, mas ao contrário, para montar a AK-47 e deixá-la pronta a disparar. “Dói-me o coração, mas não posso ficar só de coração doído. tenho de fazer algo em relação a isso”, diz, com firmeza. Isso significa estar pronto para matar e estar pronto para morrer. Porquê? “Porque a Ucrânia é a nossa terra. É a nossa mãe.”