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O tema não é novo. E talvez já nem seja tão sensível como seria de esperar, de tão explorado que tem sido. Há muito que se sabe da simpatia dos duques de Windsor pelo regime nazi, e a questão até teve o seu próprio episódio na segunda temporada da série de sucesso da Netflix, The Crown. Mas haverá interesse por parte do público neste tema? “Embora não possa falar pela atual reputação do duque na Grã Bretanha, há um interesse continuamente renovado por este período da História e só é de esperar que haja uma constante reavaliação de figuras como o duque de Windsor.”. Quem o diz é o porta-voz do canal britânico Channel 4, que este domingo exibe um novo documentário sobre Edward, o rei que abdicou de ser Edward VIII de Inglaterra para se tornar duque de Windsor e marido de Wallis Simpson.
“Edward VIII: Britain’s Traitor King” baseia-se num livro escrito pelo historiador Andrew Lownie e revisita o papel deste membro da realeza durante o regime nazi, à luz de novos documentos. Esta intriga, digna de um enredo de espiões, tem paragem em Portugal, mais precisamente em Cascais, razão para recordar este episódio da história sob o sol da Boca do Inferno.
Uma história recontada e cada vez mais apimentada
Em janeiro de 1936 Edward VIII torna-se rei do Reino Unido para abdicar em dezembro desse mesmo ano, com a finalidade casar com a mulher por quem estava perdidamente apaixonado, Wallis Simpson, uma americana duas vezes divorciada, que nunca foi aceite no país do marido. A história que Lownie conta no seu livro é aquilo que nas histórias de encantar se resume a “e viveram felizes para sempre”, mas no caso destes membros da realeza, depois do casamento veio uma vida de exílio determinada por uma ligação ao regime nazi.
Edward (1894-1972) e Wallis (1896-1986), ficaram conhecidos como os duques de Windsor, casaram em 1937 e viveram o resto da vida um para o outro ao estilo de celebridades com estatuto aristocrático, exibindo por fora um luxo e glamour que escondiam feridas interiores. Sem filhos, dedicaram-se aos seus cães, à arte de bem vestir e à vida social, longe do Reino Unido e da família real.
A verdade é que a História parece tratar de se revisitar a si mesma e o público apanha boleia. Foi há quase quatro anos que um príncipe britânico se casou com uma americana e há dois que, juntos, decidiram trocar a vida na família real por um caminho trilhado por eles próprios e fora do Reino Unido. Harry e Meghan provocaram inúmeras comparações com estes antepassados, que foram responsáveis por colocar no trono a rainha que há mais tempo faz da coroa e do país o seu dever, Isabel II. A monarca celebra este ano 70 anos de reinado e, como parte das celebrações da data, os duques de Cambridge (os populares futuros reis William e Kate) andam numa viagem pelas Caraíbas com paragem obrigatória nas Bahamas. O local para onde o duque de Windsor partiu em 1940, desde Lisboa, a mando do Primeiro Ministro Churchill, que o queria afastar de uma teia de interesses alemães em que se deixou enredar. A história é digna de um drama histórico, e por isso vale a pena acrescentar ainda que o documentário vai para o ar no dia em que se entregam os Óscares em Hollywood. Mas neste caso, a realidade ultrapassa a ficção.
Um documentário que parece ficção de espionagem
O The Telegraph destaca duas novidades que o documentário “Edward VIII: Britain’s Traitor King” contará ao público. Uma delas é que, em 1940, o duque passou informação ao regime nazi sobre as fraquezas da defesa francesa. Segundo conta o diário, na altura o duque vivia em Paris e, como tinha patente militar, foi inspecionar as tropas do exército francês. Depois escreveu quatro relatórios que, embora os britânicos tenham ignorado, chegaram à Alemanha, “telegramas diplomáticos alemães apanhados do embaixador em Haia mostram que Edward depois deu esta informação a um informador nazi, o seu amigo Charles Bedaux.” Coincidência ou não, a invasão em França começou no referido ano e, precisamente, pelos pontos assinalados pelo duque. A outra novidade que o jornal destaca é o facto de o duque ter encorajado a Alemanha a bombardear a Grã-Bretanha para que esta se entregasse, bem como um enredo para o voltar a colocar no trono. O duque terá dito que “continuar os bombardeamentos tornaria a Inglaterra preparada para a paz”.
O historiador Ed Owens, que não participa no documentário, disse ao jornal que existe há muito tempo a suspeita de que “a língua solta” do duque ajudou o regime Nazi, mas acrescenta que não há provas de uma traição intencional.
Um porta-voz do Channel 4 explica ao Observador que “o filme é parte da corrente contínua ‘Secret History’ do canal e causa, que tem uma abordagem forense, e por vezes provocadora, à história na Grã-Bretanha e no resto do mundo, com ênfase em temas oportunos.” O tema não é uma novidade, por isso a abordagem deste documentário trará novo elementos, como por exemplo, “a carta de agradecimento de Edward para Hitler, as histórias de Sarah Morris e a transmissão da BBC, os documentos de vigilância dos Serviços Secretos Portugueses, as histórias de Nicky Haslam e as atas ministeriais sobre o encobrimento.” O documentário não passará ao lado dos dias que os duques de Windsor estiveram em Portugal.
O casal ducal em Portugal
O documentário “Edward VIII: Britain’s Traitor King” conta com provas de documentos alemães nos Royal Archives britânicos, bem como outras fontes, e é baseado no livro do historiador Andrew Lownie, “Traitor King. The Scandalous Exile of the Duke & Duchess of Windsor”. A obra data de 2019, mas tem uma edição atualizada prevista para ser lançada em maio. Ao Telegraph, o autor disse que entre os novos documentos a que teve acesso está uma carta que o duque escreveu a Hitler a agradecer por os ter recebido, a ele a à duquesa, no seu retiro nas montanhas. O que, defende Lownie, revela uma grande simpatia com o fascismo. Os documentos que autor consultou estão há muito disponíveis, mas uma recente alteração à política dos Arquivos Reais permitiu um maior acesso por parte dos investigadores. Ao Observador, Andrew Lownie diz que “existem há muito tempo suspeitas sobre a intriga entre o antigo rei e os nazis. Agora temos a história toda a partir de novos arquivos descobertos por todo o mundo”.
Então a história que, em parte, já era conhecida, pode ser recontada. Mas afinal como é que Portugal aparece no mapa desta intriga? O país vivia o regime do Estado Novo desde 1933 e em França, em 1940, a invasão das forças nazis contribuiu para que muitos migrassem para Lisboa, tornando a capital nacional numa cidade sobrelotada e levando até à criação de zonas de residência fixa para estrangeiros. Na zona de Cascais, o mês de junho desse ano terá sido aquele que trouxe mais estrangeiros ao Estoril, sobretudo por causa dos vistos assinados por Aristides de Sousa Mendes, segundo regista o arquivo histórico de Cascais. Por lá circulavam espiões, figuras das artes e da política, um verdadeiro epicentro social.
Uma destas figuras foi Iam Flemming, que se alojou no Hotel Palácio em maio de 1941, quase um ano depois da passagem dos duques de Windsor pela zona. Nem sabia o autor da saga 007 o enredo que lhe passou ao lado.
Os duques de Windsor estavam a viver em França em 1940 e partiram quando o país foi invadido pelas tropas alemãs. A 23 de junho, a data de aniversário do duque, chegaram a Madrid, onde ficaram instalados no Ritz, já com o objetivo de partir brevemente para Portugal. Lownie conta no seu livro que a capital espanhola era “a maior concentração de serviços de inteligência alemã fora de Berlim” e ao Observador explica que “eles fugiram do avanço dos alemães e esperavam voar de volta à Grã-Bretanha a partir de Portugal.”
Contudo, nessa altura estava em Portugal o duque de Kent, irmão do duque de Windsor, para as celebrações dos 300 anos da independência nacional e os dois irmãos não deveriam cruzar-se, por isso os duques de Windsor ficaram em Madrid uns dias a mais do que era suposto inicialmente, até 2 de julho. Nessa data o duque de Kent deixa Portugal e os duques de Windsor partem de carro para Lisboa, com o casal Wood, e Gray Phillips, o secretário do duque. Passam uma noite como convidados do governo espanhol em Merida. Já em Portugal era suposto terem ido para o Hotel Palácio no Estoril, mas como não havia alojamento disponível, foram direcionados para a casa de verão do banqueiro Ricardo Espírito Santo e Silva, em Cascais, por sugestão do gerente do hotel — conta Lownie no seu livro que, no fundo, foi uma diretiva alemã. “Na realidade, a ordem tinha vindo das autoridades alemãs. Espírito Santo era um agente alemão e uma amigo próximo do ministro alemão em Lisboa”.
Edward e Wallis estavam a viver uma fase difícil, no Reino Unido não eram vistos pelo público com um estatuto igual aos restantes membros da família real. Sem vontade de permanecer em solo britânico, nos outros locais por onde passavam parecia que arrastavam a instabilidade consigo. Em Madrid, o embaixador britânico temia que o duque fosse raptado ou usado pelos alemães, enquanto aguardava que lhe fosse atribuído um trabalho de acordo com o seu estatuto. O Primeiro Ministro Winston Churchill estava, à distância, a tentar resolver o assunto. Escreveu ao duque a pedir-lhe que regressasse a casa assim que possível, mas este recusou. Contudo, quando partiu para Lisboa, o que seria uma curta paragem a caminho do Reino Unido acabou por se tornar numa estadia de quase um mês.
Contra as opiniões dos reis britânicos e do então Secretário das Colónias, Churchill decidiu oferecer ao duque de Windsor o cargo de Governador das Bahamas. “Para o antigo rei imperador, que reinou sobre uma grande parte do mundo, isto era uma humilhação. Para o Governo [britânico], uma solução limpa para a situação em desenvolvimento”, conta Andrew Lownie. O duque hesitou, mas aceitou. E o casal ficou por Cascais enquanto era preparada a sua viagem para as Caraíbas. Contudo, embora estivessem muito bem instalados numa grande casa com vista para o mar, jardim, piscina, um staff de 12 pessoas, saíssem para tratar de assuntos ou para passear, os duques eram quase prisioneiros, entre o enredo que se desenhava à sua volta e a vigilância que lhes era feita.
A vida na Boca do Inferno
A Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE), antecessora da PIDE, produziu um relatório que acompanha pormenorizadamente o dia a dia dos duques, desde que chegaram a Portugal no dia 4 de julho de 1940, e que pode ser consultado na Torre do Tombo. O redator do texto, um agente da polícia política, conta onde os duques se dirigiam, quem visitavam e quem recebiam na casa onde estavam instalados, bem como detalhes da sua estadia, como o local onde o duque foi comprar charutos numa viagem a Lisboa, ou a noite em que este o chamou para lhe ensinar frases em português como por exemplo “muito obrigado”, “bom dia”, “boa noite”. Conta que foram combinadas com o casal Espírito Santo as condições em que os duques ficariam a residir naquela casa durante o seu tempo em Portugal e com as despesas por conta do duque. Relata todas as visitas às embaixadas britânica, espanhola e alemã, bem como os seus convidados, como o casal anfitrião, os barões de Rothschild, o gerente do Hotel Palácio do Estoril e outras visitas internacionais que procuravam o duque.
A estadia em Portugal foi um tempo de grande pressão para os duques de Windsor, contudo houve oportunidade para momentos de lazer e desfrutar de cultura portuguesa. A duquesa de Windsor visitou o Palácio de Sintra e o Palácio da Pena e gostou especialmente da paisagem. O duque optou por ir a uma tourada em Algés, onde lhe foram oferecidas sortes pelos toureiros espanhol e mexicano (que são as ações do toureiro frente ao touro, assinaladas por bandarilhas).
“Quando o primeiro ofereceu a sorte, tôda a assistencia olhou, e depois de reconhecer o Duque deu vivas á Inglaterra e ao Duque de Windsor, tendo eu notado que êste ficara envergonhado. Retirou-se no final da primeira parte, tendo gostado muito do espetaculo e dizendo que os portugueses eram humanitarios por não matarem os bois e muito bons toureiros.”
Apesar de tudo, o ex rei procurava manter a descrição e o afastamento da imprensa, como o relatório comprova através de um episódio num dos dias em que foi jogar golf e evitou ser fotografado dado o atual contexto.
“Depois do almoço foi o Duque para o Estoril jogar golf com o Capitão Wood. Quando estavam a meio do jôgo apareceram os fotografos da ‘Lisboa Film’ para o filmar, mas o Duque ordenou-me que os impedisse de tal, pois não queria que dissessem que, enquanto a sua nação estava em guerra, ele andava a jogar Golf, dizendo-me para lhes comunicar que um dia os convidaria a irem à sua residencia para o filmarem á vontade.”
O relatório da PVDE tem 10 páginas e acaba a 27 de julho de 1940.
Uma tentativa de rapto real que não se tornou realidade
Os nazis estavam a ser informados da insatisfação do duque de Windsor e viam nele uma potencial ferramenta para a conquista do Reino Unido — depois recompensá-lo-iam com o regresso ao trono britânico. Edward seria rei e Wallis rainha, embora sob a influência das forças alemãs. Andrew Lownie conta ao Observador que o duque “estava lisonjeado com as abordagens e acreditava genuinamente que podia ser um rei fantoche numa Grã-bretanha ocupada pela Alemanha e assim engrandecer-se perante Wallis.” Quanto à sua mulher, “ela também era pró-alemã e pró-nazi, próxima de Ribbentrop [o Ministro dos Negócios Estrangeiros alemão] e tinha sido sinalizada pelos alemães como a melhor forma de atingir Edward.”
Em Madrid e depois em Cascais, o cerco que se formava em torno dos duques de Windsor tinha o objetivo de os convencer a aliar-se à Alemanha. Os alemães puseram em prática a Operação Willi, o nome de código para o duque de Windsor. O agente das SS Walter Schellenberg foi incumbido da tarefa de convencer o duque a cooperar com os alemães. Estava autorizado a oferecer até 50 milhões de francos suíços, se aceitasse romper relações com a Grã-Bretanha e mudar-se para um país neutro. Contudo, se os duques não quisessem colaborar, o agente estava autorizado a usar a força, ou seja, a raptá-los.
Andrew Morton também já se havia dedicado à relação entre os duques de Windsor e o regime nazi no livro “17 Cravos. A realeza, os nazis e o maior complô da história”. Conta o autor que Hitler telefonou ao seu agente e aconselhou-o a conquistar a duquesa, dada a influência que ela tinha sobre o duque. “Quando chegou a Lisboa, Schellennberg tinha muito pouco tempo a perder. No espaço de algumas horas tinha dezoito agentes portugueses a trabalhar para si nas proximidades da casa dos Windsor e até conseguira infiltrar um agente japonês dentro da moradia onde o casal real estava hospedado.”
A estratégia passava por assustar o duque de forma a que este se quisesse mudar para Madrid. As notícias chegaram a Londres e rumaram a Cascais também ingleses. Até Espírito Santo foi recrutado para passar ao duque a mensagem de que, caso colaborasse com a Alemanha, esta estaria disponível para concretizar os desejos que os duques tivessem. Durante atribuladas horas, uma densa rede de personagens de diferentes direções tentaram manipular o duque, que acabou por se decidir a partir para as Bahamas. Assim que soube, Hitler ordenou o rapto do casal. Mas não se concretizou. Na noite de 1 de agosto, o casal lá partiu de Lisboa para as Bahamas no navio SS Excalibur. Morton escreve que “no dia da partida, do quarto da torre na Embaixada alemã, Schellenberg observou com uns potentes binóculos o grupo ducal a embarcar no transatlântico da American Export Lines”. Nesse mesmo dia Hitler ordenou uma ataque de larga escala à Grã-Bretanha. O duque de Windsor foi Governador das Bahamas entre 1940 e 1945, ano em que renunciou ao cargo e, desde o fim da II Guerra, ficou a viver em França com a sua duquesa.