Índice
Índice
A frase tornou-se popular na boca de um outro Presidente, ainda antes de o milionário ser líder dos EUA. “Está despedido”, dizia Donald Trump no reality show norte-americano “O Aprendiz”. Nos últimos dias, tem sido Volodymyr Zelensky a repetir a frase várias vezes. O Presidente ucraniano despediu generais, despediu a procuradora geral da República, despediu o líder dos Serviços de Segurança e o número dois do Conselho de Segurança e Defesa Nacional. Surpreendente? Médio. Da mesma maneira que a invasão russa se pressentia antes de 24 de fevereiro, também a purga de traidores andava no ar. Os motivos não serão todos os mesmos e as demissões foram ratificadas pelo Parlamento.
Foi em janeiro, depois de Iryna Venediktova ter tirado um dia de férias exatamente na data em que deveria assinar a acusação contra Petro Poroshenko, que nos bastidores políticos se começou a ouvir falar da queda da Procuradora Geral. O antigo Presidente da Ucrânia é rival político do atual e a decisão de Venediktova terá deixado um amargo na boca do Chefe de Estado.
Ivan Bakanov, demitido de líder dos Serviços de Segurança da Ucrânia (SBU), nunca foi adorado. Amigo de infância do Presidente ucraniano, a sua escolha foi criticada pela oposição, desde logo pela falta de experiência para o cargo. À medida que o rol de traidores no seu serviço crescia, e a guerra somava dias, a sua amizade com Zelensky sofria. Nas últimas semanas, pouco falavam, segundo a imprensa ucraniana. Quando o conselheiro pessoal de Bakanov, Oleh Kulinich, foi detido — responsável pelo Serviço de Segurança na Crimeia e “um criminoso a trabalhar para o inimigo”, disse Zelensky —, isso foi a pressão que faltava para deixar cair a guilhotina. A cabeça de Bakanov tinha de rolar.
Na semana seguinte, foi a vez de cair Mijailovic Demchenko, o número dois do Conselho de Segurança e Defesa Nacional do país, decisão que servirá para agradar aos parceiros do Ocidente e passar a mensagem interna de que pró-russos não têm lugar na Ucrânia depois desta guerra. Demchenko ficou conhecido por nos acordos de Kharkiv de 2010 ter feito lobby pela Rússia. No final, o arrendamento das instalações navais da Crimeia à Rússia (terminava em 2017) foi prolongado por mais 25 anos. Este ponto de acesso terá sido fundamental para a anexação da península em 2014. Em troca, a Ucrânia recebia um desconto ao comprar gás natural russo.
Incompetência em manter mãos russas longe da Ucrânia
“Tenho quase a certeza de que Bakanov e Venediktova não trabalham para a Rússia”, diz ao Observador Nataliya Gumeniuk, jornalista ucraniana, especializada em relações internacionais, e que está atualmente no terreno, em reportagem.
“Eles não foram suficientemente eficientes a limpar os seus serviços da influência russa, por isso, foram afastados por não fazerem o seu trabalho em condições”, acrescenta a também diretora da televisão digital Hromadske, um projeto criado por jornalistas. “Manter Bakanov, em particular, iria ser considerado como estar a encobrir a situação.”
Os motivos oficiais para as demissões, segundo o Presidente ucraniano, são uma “autopurificação” do país — expressão usada por Vladimir Putin, Presidente russo, para se referir ao seu povo quando, em março, disse que os russos saberiam “distinguir os verdadeiros patriotas da escória e dos traidores”.
No seu discurso televisivo de 17 de julho, Zelensky revelou que foram abertos 651 procedimentos criminais contra “colaboracionistas” da Rússia ou suspeitos de traição. Mais de 60 funcionários do gabinete da Procuradora Geral e do Serviço de Segurança, disse, “continuaram em território ocupado e estão a trabalhar contra o Estado”. Tudo isto põe em causa as lideranças, e cada uma delas terá resposta, garantiu o Presidente.
“As pessoas fazem perguntas. Qual foi o problema com Kherson ou com a Crimeia? Por que motivo os russos tomaram estes territórios sem qualquer esforço?”, questiona-se o analista ucraniano Hennadiy Maksak, do think thank GLOBSEC Policy Institute, resumindo o sentimento que cresce entre muitos ucranianos que querem respostas e soluções.
A história de Bakanov: uma bola de neve que não parou de rolar
Hennadiy Maksak explica que a agência liderada por Bakanov tinha várias funções, como a luta contra a corrupção ou a investigação de crimes económicos. “É um grande mecanismo que se mantinha por reformar, estamos ainda a tentar adotar um conceito para os serviços secretos da Ucrânia, mas essa reforma foi bloqueada talvez pelo próprio Bakanov, e pelos seus predecessores”, conta ao Observador o também diretor executivo do think tank de política internacional Ucranian Prism. O motivo? “Não querem perder a influência de lidar com dinheiro. Quando se lida com crimes económicos não se quer perder isso. É por isso que se mantém a agência por reformar há tanto tempo”, defende.
Quanto à demissão de Bakanov, o analista ucraniano aponta para a nuvem negra que se formava sobre os Serviços de Segurança. “A razão para Bakanov ser demitido talvez seja o nível da perceção negativa da sua agência, por causa de traidores. Mudaram de lado e ajudaram o agressor a fazer o que fez nos territórios ocupados. Foi uma questão que foi ganhando seriedade”, sublinha.
Numa altura em que o país tem tido pouco sucesso na linha da frente, os ucranianos começam a questionar os acontecimentos e por que motivo determinadas zonas caíram nas mãos russas tão facilmente. “Tem a ver com traição e alguns generais já foram acusados de traição de Estado. Bakanov é a pessoa que liderava a agência nestes tempos, portanto, parte da responsabilidade política está nos seus ombros e, por isso, foi demitido”, acrescenta Maksak.
Num artigo de opinião, o jornalista ucraniano Konstantin Skorkin faz a sua análise das demissões. Num momento em que a sociedade ucraniana parece mais unida que nunca, diz, as primeiras falhas começam a surgir. “A lealdade dos siloviki — membros dos serviços de segurança — tornou-se o maior problema de Zelensky no momento”, lê-se no artigo publicado pelo think thank de política externa Carnegie Endowment for International Peace.
“Depois de o caos inicial dos primeiros dias da invasão ter diminuído, a liderança da SBU teve de enfrentar muitas perguntas. Bakanov foi criticado por ter desaparecido da vista do público durante um mês enquanto a equipa presidencial demonstrava unidade ao resto do país – e, de facto, ao mundo – permanecendo em Kiev”, escreve Skorkin. O pior ainda estava para vir. “Alguns agentes do serviço de segurança desertaram para o lado russo no território ocupado pela Rússia, enquanto muitos oficiais superiores mostraram-se incapazes de organizar uma resistência efetiva ao exército invasor, o que contribuiu para a perda de território no sudeste da Ucrânia.”
Na opinião do jornalista, a reputação da agência começou a sofrer golpe após golpe. Em maio, durante uma visita a Kharkiv, Zelensky demitiu o chefe local da SBU. A explicação do Presidente? “Ele não estava a trabalhar para defender a cidade da guerra, estava apenas a pensar em si.” Golpe ainda mais duro foi a prisão, no mês seguinte, do general Andriy Naumov. “O antigo chefe do departamento de assuntos internos da SBU foi preso na Sérvia”, recorda o jornalista. “Fugiu da Ucrânia na véspera da invasão russa e foi encontrado com um milhão de dólares em dinheiro, e ainda esmeraldas.”
Numa investigação recente da Reuters, a agência de notícias expôs que a queda de Chernobyl, em menos de duas horas, foi parte de uma operação do Kremlin para infiltrar agentes secretos no Estado ucraniano. Naumov está a ser investigado no âmbito desta operação por ter sido ele o presumível agente que vendeu os segredos de segurança da central nuclear a Moscovo.
Traição q.b.? Ainda há mais, escreve Skorkin: “A gota de água foi a prisão do conselheiro pessoal de Bakanov, Oleh Kulinich — antigo chefe da SBU na Crimeia —, por suspeita de colaborar com os serviços de segurança russos e transmitir informações confidenciais.”
O erro da procuradora geral tem nome: Petro Poroshenko
“A história é diferente para Venediktova”, defende Hennadiy Maksak. “Ela era da equipa de Zelensky, mas talvez não tenha sido tão leal quando chegou a altura da acusação de Petro Poroshenko. Basicamente, agora, eles querem ter uma pessoa mais leal neste gabinete.”
Em dezembro de 2021, a Procuradora-Geral anunciou que ia tirar um dia de licença a 20 de dezembro, exatamente a data em que deveria assinar a acusação de Petro Poroshenko, tarefa que deixou para os seus adjuntos (a situação foi tornada pública em janeiro). Zelensky não terá gostado da atitude da sua protegida, como é vista na Ucrânia, já que Poroshenko era o seu principal rival político. O antigo Presidente da Ucrânia deixou o país em dezembro e regressou um mês depois, ainda antes de a guerra rebentar, para se defender e combater as acusações de traição de que era alvo.
Iryna Venediktova evitou sempre assumir responsabilidade direta quanto se tratava de casos políticos ao mais alto nível, mas também era vista como alguém que evitava que processos ligados aos fiéis de Zelensky fossem investigados. O caso de Oleg Tatarov (uma investigação de 2020) terá sido por ela travado quando o caso passou das mãos do NABU, o Gabinete Nacional Anticorrupção da Ucrânia, para o SBU, liderado por Bakanov. E isto quando os agentes do NABU — agência vista como mais independente do poder político do que o SBU — se preparavam para deter Tatarov. O caso acabou por nunca avançar.
Hoje, Oleg Tatarov é o número dois do chefe de gabinete de Zelensky, Andriy Yermak, um nome importante em toda esta teia de interesses. Tatarov, embora seja o responsável pela aplicação da lei anticorrupção, é visto como um empecilho, como o homem que tem adiado a nomeação de um promotor independente para lutar contra a corrupção, o que faz com que o NABU não funcione como devia. Além disso, antes da revolução ucraniana, foi alta patente das forças policiais durante a presidência de Viktor Yanukovych (derrubado nos protestos do EuroMaidan em 2014) e foi acusado de perseguir manifestantes e defender a polícia que espancou os ativistas.
Quanto a Yermak — o advogado e produtor cinematográfico que se tornou uma das principais caras da diplomacia ucraniana, participando de negociações com os EUA, além de ser o chefe da delegação ucraniana que negociou com os russos em Minsk —, também já enfrentou acusações de corrupção em 2020. Na altura, um membro do partido de Zelensky, Servo do Povo, divulgou um vídeo onde o irmão de Yermak parecia vender empregos no governo. Mais recentemente, Victoria Spartz, nascida ucraniana, hoje congressista norte-americana, fez várias acusações a Yermak, que vão desde a corrupção à sabotagem dos interesses da Ucrânia.
O ministro dos Negócios Estrangeiros da Ucrânia respondeu a Victoria Spartz, e apesar de reconhecer a ajuda que o país tem tido dos EUA, comparou as palavras da congressista a propaganda russa. Desde que Zelensky chegou ao poder, Andriy Yermak tem consolidado a sua posição de força e a influência que tem junto do Presidente. Além da diplomacia, tem cada vez mais responsabilidades sobre assuntos domésticos.
“Andriy Kostin é o novo procurador geral e foi eleito com muito apoio no parlamento. Terá de fazer reformas na equipa de procuradores, mas por outro lado é visto como uma pessoa próxima de Yermak e terá tido envolvimento nos seus negócios”, algo que pode vir a trazer dores de cabeça a Zelensky, segundo Hennadiy Maksak.
A pressão do Ocidente. A integração na União Europeia não é a custo zero
A demissão mediática mais recente foi a do número dois do Conselho de Segurança e Defesa Nacional do país. “Mijailovich Demchenko é uma grande eminência. Ele é o master mind dos acordos de Kharkiv de 2010, o que quer dizer que é dirigido pelo interesses da Rússia e era reconhecido por isso”, explica ao Observador Hennadiy Maksak. Na sua opinião, a sua demissão mostra que, se havia alguma hipótese de gerir por aquela via uma negociação com a Rússia, isso acabou.
“Há rumores de que ele é pró-Rússia e de que é mesmo um traidor. A sua demissão significa duas coisas: a primeira é a de que não há esperança, nem interesse, da Ucrânia em negociações com a Rússia neste momento. Demchenko não é, agora, uma pessoa útil.” Outro problema, argumenta o analista, é que, tal como com Bakanov, é preciso libertar a pressão que se acumulou à volta da figura de Demchenko. “Se ele é abertamente pró-russo e toda a gente sabe, o melhor é tirá-lo do sistema. É por isso que ele sai e isto está relacionado, claro, com a integração europeia.”
Na opinião de Hennadiy Maksak, há duas vertentes importantes: “Por um lado limpamos o sistema, mas ainda estamos a tentar torná-lo mais pró-europeu para estar alinhado com os requisitos da Comissão Europeia.”
Todas estas demissões e afastamentos são fundamentais num momento em que a Ucrânia quer ser membro de pleno direito da União Europeia. Segundo a organização Transparência Internacional, em 2021 a Ucrânia estava em 122.º lugar, num total de 180 países analisados, no índice de perceção da corrupção. No ano anterior, o Tribunal Constitucional travou uma reforma das leis anti-corrupção e o controlo político e económico dos oligarcas ucranianos foi por diversas vezes denunciado pelos Repórteres Sem Fronteiras.
No início de julho, a presidente da Comissão Europeia deixou o aviso, embrulhado em elogio, numa intervenção por videoconferência no Parlamento ucraniano. “Vocês criaram uma impressionante máquina anti-corrupção. Mas essas instituições precisam de dentes e das pessoas certas em altos cargos”, disse Ursula von der Leyen, apelando a que os novos chefes para o Gabinete do Procurador Especializado Anti-corrupção e para o NABU fossem escolhidos sem mais perda de tempo.
“As demissões são importantes para a integração europeia, e são importantes para mostrar aos nossos parceiros qual é a nossa política nas operações de inteligência. Se eles veem uma pessoa que é pró-russa no sistema com o qual partilham informação sensível… Penso que não vão querer partilhar informação que considerem que ponha em perigo a sua própria segurança”, argumenta o senior fellow do GLOBSEC Policy Institute.
Bakanov e Venediktova representam o partido de Zelensky, relembra Hennadiy Maksak. “É um amigo de infância, havia uma grande lealdade, mas havia muita coisa negativa à volta da agência com todas estas situações da Crimeia e de Kherson. Bakanov é um bode expiatório.”
Os senhores que se seguem e a sede pelo poder
Tanto Venediktova como Bakanov foram substituídos pelos seus vices. Oleksii Symonenko é o novo Procurador Geral da Ucrânia e Vasyl Malyuk tornou-se chefe interino do SBU. O problema? Ambos são vistos como bastante próximos de Yermak. Malyuk terá uma relação ainda mais apertada com Tatarov.
Se havia quem acusasse Zelensky de colocar os seus fiéis nestes cargos, agora o Presidente ucraniano está a substituir os seus amigos por pessoas próximas de Yermak.
Eugen Theise, jornalista de origem ucraniana, foi um dos que apontou a sede de poder de Zelensky. “Bakanov não é realmente o problema, Zelensky — que o nomeou chefe da SBU — é o problema. Mas Bakanov é o melhor amigo de Zelensky. Os dois conhecem-se desde o jardim de infância. Eles estudaram juntos na universidade e depois tornaram-se parceiros do show business. A única razão para a nomeação de Bakanov é a sede de poder de Zelensky e o desejo de controlar a SBU nomeando um amigo próximo para dirigi-la. Em vez de admitir que a nomeação foi um erro, o presidente tentou criar uma distração ao anunciar a suspensão de Bakanov”, escreve num artigo de opinião na Deustche Welle.
“Nunca foi uma boa ideia nomear alguém para um cargo chave de segurança simplesmente porque o conhecemos a vida toda”, remata. O jornalista acredita que as demissões aconteceram sob o olhar atento (e com o consentimento) dos parceiros do Ocidente, lembrando que Zelensky, tal como Von der Leyen, pediu a nomeação rápida de um procurador anticorrupção.
“Até agora, o Presidente ignorou os pedidos ocidentais por ação. Assim como ignorou as críticas sobre a falta de vontade política de Kiev para encerrar a reforma dos serviços de inteligência inchados e cheios de escândalos da Ucrânia. Mas agora, Zelensky não pode mais ignorar as críticas dos parceiros ocidentais, como podia fazer antes da guerra. Sem armas e dinheiro da UE e dos EUA, a Ucrânia teria falido há muito tempo e dificilmente seria capaz de resistir ao ataque da Rússia”, criticou o jornalista. Para serem levadas a cabo as mudanças necessárias, são precisos profissionais experientes, e não os “amigos do jardim de infância do Presidente.”
Hennadiy Maksak insiste que esta troca de cadeira é favorável à integração europeia, mas confessa que “não diria que as pessoas escolhidas são melhores, em algumas capacidades pessoais”, do que as que saem.
A teoria de que as demissões passam por uma vontade de Zelensky fortalecer o controlo sobre os militares e os serviços secretos também é partilhada por alguns analistas, quando esse poder está a ser entregue numa bandeja dourada a Yermak, o seu homem de confiança.
O jornalista Konstantin Skorkin lembra que os substitutos de Venediktova e Bakanov são vistos como protegidos de Yermak e de Tatarov, este último responsável por supervisionar os serviços de segurança. “Alguns na oposição ucraniana veem isso como nada menos que uma usurpação do poder: todos os ativos de segurança estão a concentrar-se nas mãos de Yermak, que não tem o direito constitucional de deter esse poder.”
Além disso, escreve, o próprio Yermak enfrentou acusações de trabalhar para a Rússia, considerando que Zelensky está a deixar claro que confia inteiramente em Yermak e que “vê a consolidação dos recursos de segurança do país nas suas mãos como um fortalecimento do seu próprio poder”.