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Estádios com abrigos, paragem nas sirenes e um soldado a dar o pontapé de saída: como o futebol (possível) voltou à Ucrânia

Olímpico de Kiev. Uma equipa de Donetsk, outra de Kharkiv. Zelensky, lágrimas no hino, emoção com a entrada de quem quase perdeu a vida na guerra. O futebol foi um mastro no Dia da Bandeira Nacional.

Os últimos dias trouxeram as lágrimas de alegria. Qualquer atleta ucraniano em competição faz questão de levar a bandeira do seu país e as cores azul e amarela para onde vá, quase como um refrescar de memória pavloviano para que ninguém se esqueça da guerra que acontece há seis meses. E não faltaram motivos para, por um par de minutos, imaginar um mundo diferente à luz dos sucessos desportivos: Yaroslava Mahuchikh ganhou a final do salto em altura, Maryna Bekh-Romanchuk venceu o triplo salto com um ensaio acima dos 15 metros, Viktoriya Tkachuk e Anna Ryzhykova completaram um pódio dos 400 metros barreiras dominado por Femke Bol, Oleksandr Usyk foi também melhor do que Anthony Joshua e manteve os títulos de campeão mundial de pesos pesados no boxe. Tudo vitórias-mais-do-que-vitórias.

Há muito que a presença de atletas ucranianos em qualquer prova internacional promove um contexto diferente. De apoio, de solidariedade, de partilha. E são vários aqueles que passam das palavras e dos gestos aos atos, utilizando pequenas bandeiras da Ucrânia na cara, no braço, no equipamento ou na lapela do casaco, mesmo que assistam a milhares de quilómetros de distância ao sofrimento de um povo que há seis meses levava a sua vida normal. De acordo com uma ONG desportiva local, citada pela Ukrinform, já morreram na guerra um total de 77 atletas entre 24 de fevereiro e 11 de julho, um número com tendência a aumentar com as últimas atualizações. O kickboxer Mykola Zabavchuk, o jogador de râguebi de Maksym Shvets, o nadador Volodymyr Ulianytsky ou a ginasta Daria Kurdel são alguns exemplos.

Vitalii Sapylo e Dmytro Martynenko foram os dois primeiros futebolistas a perder a vida na guerra, de acordo com a FiFPro. Poucos dias depois, Sergei Palkin, CEO do Shakhtar Donetsk, dava conta do luto do clube pela morte de um treinador das camadas jovens atingido por um projétil russo durante um bombardeamento. “Parem com esta loucura! Não fiquem em silêncio, falem! Caso contrário, será uma derrota pessoal vossa. Uma derrota que será lembrada por todas as gerações futuras. Uma derrota que não pode ser apagada da história mundial e cada um será culpado e responsável pelos crimes cometidos”, destacou num discurso emotivo no início do março. Os meses foram passando, a guerra não acabou mas mudou de contornos, o futebol ucraniano começou aos poucos à procura de uma normalidade dentro do “anormal” que é toda a situação. E foi assim que voltou a Primeira Liga da Ucrânia esta terça-feira.

Depois das primeiras aparições do Dínamo Kiev, que após oito meses sem jogos oficiais conseguiu passar duas pré-eliminatórias da Champions até à derrota com o Benfica no playoff (a segunda mão jogou-se esta noite na Luz), o jogo inicial da competição juntava Shakhtar Donetsk e Metalist 1925 no Estádio Olímpico de Kiev. Duas equipas que, de formas diferentes, sentiram mais o impacto da guerra.

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Shakhtar Donetsk foi realizando vários jogos particulares antes do início da época pela Europa, o último contra a Roma de José Mourinho

“Começar novamente a liga de futebol é um grande passo para o país”, destacara Andriy Pavelko, líder da Federação Ucraniana de Futebol. “É um sinal para o mundo que a Ucrânia pode e vai ganhar, ao mesmo tempo que é um sinal que deixamos à sociedade para manter a confiança. Esta vai ser uma competição desportiva única: vai acontecer durante uma guerra, durante uma agressão militar como a que estamos a sofrer, durante bombardeamentos”, acrescentou ainda numa entrevista à Reuters antes do arranque.

No entanto, e como seria de esperar, nem tudo era igual ao que existia em fevereiro, quando a Liga iria ser recomeçada depois da pausa de inverno (essa prova foi cancelada). A começar logo pelo número de equipas presentes, que baixou de 18 para 16: o Desna Chernihiv anunciou a desistência por estar numa zona perto da fronteira com a Bielorrússia em combate com as forças militares russas e o FC Mariupol, uma cidade mais a sul do país, encontra-se nesta altura dominada pela Rússia. “É o lugar mais mortal de toda a Ucrânia”, descreveram as Nações Unidas sobre um local que se encontra há semanas sitiado. Há mais zonas onde o impacto da guerra é notório afetando a preparação, o que originou as outras mudanças. “No fundo, a Rússia pode atingir qualquer parte da Ucrânia”, resumiu a esse propósito Sergei Palkin.

"É um sinal para o mundo que a Ucrânia pode e vai ganhar, ao mesmo tempo que é um sinal que deixamos à sociedade para manter a confiança. Esta vai ser uma competição desportiva única: vai acontecer durante uma guerra, durante uma agressão militar como a que estamos a sofrer, durante bombardeamentos", destacou Andriy Pavelko, líder da Federação Ucraniana de Futebol, antes do início da prova.

Algumas regras básicas para o regresso da liga ucraniana: todos os encontros serão jogados apenas em Kiev e nas regiões próximas da fronteira para o lado ocidental (o Shakhtar, que há muito não joga em Donetsk, estará em Kiev e Lviv, que tem um estádio que no início serviu de abrigo para milhares de pessoas); todos os estádios terão de preparar abrigos para que as pessoas possam ser evacuadas em caso de ameaça; todos os encontros são fechados ao público; todas as vezes que se ouvirem as sirenes pela ameaça de um ataque aéreo, algo que continua a ser frequente numa cadência quase diária, os jogos são interrompidos e atletas e árbitros terão de seguir para o abrigo, de onde sairão quando tudo estiver mais calmo.

Os lamentos do Shakhtar, entre as imagens do autocarro e o processo à FIFA

Dentro das compreensíveis limitações, a liga ucraniana começava esta terça-feira. O mundo fixava-se na parte boa de uma história com vários capítulos mas o Shakhtar Donetsk, uma das equipas que marcariam esse regresso, também tinha razões de queixa entre todas as homenagens e ajudas que foram sendo dadas aos clubes e à Federação. “A FIFA costuma falar muito de tudo o que é a família do futebol mas, na vida real, a sério, não existe isso da família do futebol”, apontou Sergei Palkin ao The New York Times.

Há uma razão concreta para esse lamento do CEO da equipa que realizou alguns jogos particulares pela Europa, o último dos quais num Estádio Olímpico de Roma que estava cheio. Nas últimas semanas, por forma a encontrar receitas que pudessem equilibrar as contas sem fundos do Shakhtar, Palkin foi fazendo aquilo que em condições normais faria sempre: negociar jogadores. As entradas, pelas razões óbvias, não foram prioridade (os reforços que chegaram foram sobretudo jogadores ucranianos que estavam a jogar na Hungria); as saídas, aí sim, levaram a horas extras ao telefone. David Neres rumou ao Benfica por 15,3 milhões, Dodô reforçou a Fiorentina por 14,5 milhões, Marcos Antônio foi para a Lazio por 7,5 milhões, Fernando – que passou sem sucesso pelo Sporting – seguiu para o RB Salzburgo por seis milhões. Não eram os únicos negócios pensados, tornaram-se os únicos negócios feitos. Ou melhor, fechados.

"A FIFA costuma falar muito de tudo o que é a família do futebol mas, na vida real, a sério, não existe isso da família do futebol", aponta Sergei Palkin, CEO do Shakhtar, Razão? Quando estava prestes a fazer duas vendas por um montante de quase 25 milhões de euros, o órgão que tutela o futebol mundial prolongou a exceção para jogadores estrangeiros poderem sair da Ucrânia por mais um ano. Recebeu... zero.

Manor Solomon, avançado israelita, estava a ser falado para o Fulham, em mais uma transação que iria render oito milhões ao clube. Ao mesmo tempo, Tetê, o principal ativo que o Shakhtar tinha, andava a ser negociado pelo conjunto ucraniano com o Lyon por um montante superior de 16 milhões. Estava tudo a postos para se assinar os contratos quando a FIFA anunciou que a exceção que permitia os jogadores estrangeiros saírem sem penalização tinha sido prolongada por mais um ano, até ao final da temporada de 2022/23. O Lyon e o Fulham reforçaram-se a custo zero, sem que o Shakhtar pudesse fazer algo. Mas a história não acabou: o clube processou a FIFA e pede uma indemnização de 50 milhões de dólares (quase o mesmo em euros), aquilo que deveria receber em negócios que depois não se fizeram, de quem aproveitou o arranque da liga para mostrar o impacto da guerra através do autocarro da equipa.

Contra o conjunto de Donetsk estaria na primeira jornada o Metalist 1925, que ficou também com pouco ou nada depois do início da guerra. “O meu coração dói quando começo a pensar em Kharkiv. Houve um míssil que acertou no nosso centro de treinos, agora não temos nada daquilo que costumávamos usar”, contou Denys Sydorenko à BBC. A 22 de fevereiro, a equipa treinou de forma normal; dois dias depois, tudo parou. Agora, o plantel (que também foi desfalcado) faz as suas sessões de trabalho na cidade de Uzhorod, perto da fronteira com a Eslováquia, a 1.300 quilómetros de Kharkiv, que ficou com várias partes completamente destruídas. “Quando os jogadores se juntaram de novo, falámos de tudo. Onde cada um estava quando a guerra começou, o que cada um estava a fazer. Agora temos treinado bem, queremos dar essa alegria aos nossos adeptos de ganhar jogos”, referiu o entretanto casado Sydorenko.

Estádio Olímpico de Kiev vazio, todos os jogadores com bandeira, discurso de Zelensky, um minuto de silêncio: alguns capítulos do regresso do futebol na Ucrânia

O empate em Kiev e a derrota do Kryvbas, o clube que ganhou o respeito de todos

A ligação entre os clubes e o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, foi sempre grande mesmo ao longo da paragem. Dois exemplos: os meios de comunicação do Shakhtar foram informando com uma cadência diária sobre todas as mexidas operacionais partilhadas pelo Ministério da Defesa, ao passo que os meios do Dínamo Kiev citavam os discursos do número 1 do país. Por isso, e quase de forma natural, o líder ucraniano marcou “presença” no regresso do futebol (uma medida aprovada pelo próprio em junho) com um discurso de encorajamento pela imagem que as equipas estavam a dar ao mundo.

Num discurso que assinalou também o Dia da Bandeira Nacional, entre várias cerimónias que se foram realizando um pouco por todo o país, Zelensky fez passar uma mensagem nos ecrãs gigantes do estádio vazio de público mas cheio de emoção com os jogadores a entrarem com a bandeira da Ucrânia nas suas costas (tal como o Dínamo Kiev tem entrado em todos os encontros da Liga dos Campeões). E houve mesmo lágrimas entre alguns elementos, entre a altura de ouvir o hino e o pontapé inicial que foi dado por um soldado do batalhão Azov adepto do Shakhtar Donetsk ferido em combate. “Quando jogo futebol, não penso na guerra. Deveríamos jogar. Pelo nosso país. É a nossa obrigação. O desporto pode ajudar a contar a nossa história ao mundo e podemos fazer com que as pessoas se sintam melhor”, referiu depois sobre o momento o médio Stepanenko, um dos mais experientes e internacionais do Shakthar.

O encontro terminou com um empate sem golos onde o resultado era o menos importante. Aí, no duelo entre Chornomorets Odesa-Veres Rivne (0-1), no jogo Zorya-Vorslka (3-1) e no encontro que colocou em duelo Kolos e Kryvbas (1-0), o resultado era o menos importante. No caso do Kryvbas, nem mesmo o facto de ter perdido a primeira partida da liga apaga aquilo que foram os últimos meses: a 40 quilómetros da fronteira da Rússia, a equipa recusa mudar de local de preparação e tem treinado a ouvir por diversas ocasiões o barulho de explosões e o lançamento de mísseis para outras zonas do país. A cidade de Kryvyi Rih, marcada pela indústria da metalurgia e a 100 quilómetros da central nuclear de Enerhodar, tem a guerra ali ao pé, percebe-o pelos bombardeamentos frequentes nos arredores mas recusa mudar. Mais: quando se colocou a hipótese de trabalhar em Kiev, os responsáveis declinaram essa possibilidade.

Yuriy Vernydub, técnico que pelo Sheriff ganhou no ano passado ao Sheriff, esteve na guerra, assumiu o comando do Kryvbas e foi expulso na estreia

Em março, o plantel deslocou-se para a Hungria para poder continuar a treinar. Em junho, voltou à base. E até a história do treinador colocou o clube no foco do mundo: Yuriy Vernydub, um ilustre desconhecido dos bancos que levou os moldavos do Sheriff à Liga dos Campeões e conseguiu ganhar ao campeão europeu Real Madrid em Espanha, quis voltar ao país (quando a guerra começou estava em Braga a jogar para a Liga Europa), rumou a Zaporíjia e foi voluntário do exército aos 56 anos, explicando ao presidente que lhe tinha oferecido contrato pelo Kryvbas que primeiro teria de ir combater. Foi o que aconteceu. E também os adeptos se juntaram no apoio, abrindo uma conta bancária para medicamentos, camiões, drones e tudo o que pudesse ajudar. Alguns membros da claque perderam a vida na guerra. E esse sim é o jogo onde os resultados verdadeiramente importam, com a liga de futebol a querer ser exemplo.

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