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FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

"Estamos a interferir com os ciclos da natureza." Entrevista ao cientista que estuda o "efeito borboleta" que une o clima e as pandemias

Alexander More, cientista de Harvard que estuda a intersecção entre clima e saúde pública, explica em entrevista ao Observador que interferência humana na natureza pode resultar em surtos epidémicos.

Em 1918, quando a gripe espanhola matou milhões de pessoas por todo o mundo, um fenómeno climático extremo assolava a Europa estilhaçada pela Primeira Guerra Mundial, trazendo ao continente um tempo anormalmente frio e húmido. O mesmo acontecera mais de quinhentos anos antes, no século XIV, quando a peste negra se propagou pela Europa — e também mais de um milénio antes, no século VI, durante a peste de Justiniano, a primeira pandemia de que há registos históricos. Para o investigador norte-americano Alexander More, climatologista e historiador da Universidade de Harvard, a sobreposição temporal entre fenómenos climáticos extremos e pandemias ao longo da história é tudo menos uma coincidência: as crises sanitárias são, na verdade, um dos principais resultados das crises climáticas que em alguns momentos da história representaram um fator de desequilíbrio para a natureza — e que as alterações climáticas estão a aprofundar.

Numa entrevista ao Observador, concedida a pretexto da passagem do cientista por Lisboa para participar na Glex Summit 2021 — Cimeira Global de Exploração, Alexander More discutiu os resultados do estudo que publicou em 2020 sobre a relação entre o clima e a pandemia da gripe espanhola e explicou porque é que interferir com os processos naturais pode ter consequências graves para a saúde humana. No caso de 1918, uma profunda alteração do clima europeu perturbou o processo migratório dos pombos que transportavam o vírus H1N1, que se mantiveram durante meses a fio na Europa central e ali se reproduziram em quantidade suficiente para contaminar as águas. Através da análise de um núcleo de gelo retirado dos Alpes com partículas de ar ancestral aprisionadas, os cientistas liderados por More conseguiram reconstituir centenas de anos de clima e perceber como em cada momento os problemas sanitários da humanidade ocorreram em picos de crise no clima.

Ouça aqui a entrevista na íntegra (em inglês)

As pandemias e as mudanças no clima estão ligadas?

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Estes picos de crise, outrora provocados apenas por fenómenos extremos naturais, estão a tornar-se mais frequente à medida que as alterações climáticas aquecem o planeta — e alguns dos efeitos já os vemos, incluindo a chegada de doenças tropicais a regiões cada vez mais a norte. Mas não é só. Outros tipos de interferência humana nos processos naturais, como o comércio desregulado da vida selvagem, estão a aumentar a exposição a doenças novas. No caso da pandemia da Covid-19, embora a origem ainda seja debatida pelos cientistas, uma conclusão parece já certa: o vírus veio da vida selvagem. O resultado de uma interferência na natureza pode não ser imediato. Por vezes, são precisos vários passos intermédios — é o chamado “efeito borboleta” e Alexander More não tem dúvidas de que a natureza encontrará sempre o equilíbrio, mesmo quando a humanidade introduzir fatores de desequilíbrio. Nesse processo de reequilíbrio, as pandemias poderão tornar-se mais frequentes.

Alexander More nasceu em Itália e passou parte da infância e juventude no sul da Europa, lugar de origem da sua família. Mudou-se para Nova Iorque sozinho, aos 17 anos, e foi nos Estados Unidos da América que fez todo o percurso académico — entre Nova Iorque, Chicago e St. Louis — até conseguir uma bolsa de doutoramento em Harvard aos 22 anos. Hoje, é investigador e professor na Universidade de Harvard, mas também no Instituto para as Alterações Climáticas da Universidade do Maine, onde estuda a interseção entre a ciência climática e as questões da saúde humana.

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No ano passado, o Alexander publicou um artigo em que descreve como as condições climatéricas no início do século passado podem ter influenciado a pandemia da gripe espanhola, sobretudo as taxas de mortalidade. Quais foram as suas principais conclusões relativamente a esta relação entre pandemias e crises climáticas?
Tenho vindo a trabalhar neste tema há décadas, desde que comecei o meu percurso académico, desde o meu doutoramento. Pelo menos há duas décadas. Aquilo de que as pessoas mais se esquecem é que sempre que tivemos uma pandemia, aconteceu durante uma crise climática de algum tipo. A gripe espanhola aconteceu durante uma anomalia climática de seis anos, como mostrei no ano passado. A peste negra, que foi a maior pandemia na história registada, em percentagem de mortes, aconteceu também numa transição entre um período quente e um período mais frio na história europeia. Aquela que é considerada a primeira pandemia, a peste de Justiniano, também ocorreu durante uma crise climática que começou em 536.

Mas há uma relação causa-efeito?
Há, definitivamente, uma relação entre o clima e a saúde pública, entre o clima e as pandemias. O que a maioria dos cientistas pensa que acontece… Eu sou cientista do ambiente e da saúde, mas também historiador e economista — é preciso sê-lo, de modo a estudar casos do passado.

Estuda esta interseção de temas.
Certo, sou um cientista interdisciplinar, foi o que sempre fiz. Muitas pessoas esquecem-se de que os animais e os humanos se mexem, estão sempre a migrar, e isso é a vida normal. É assim que acontece. Os animais movem-se muito mais do que nós — e, com eles, as doenças deles movem-se também. Quando as epidemias acontecem, habitualmente há algo que muda no ambiente que leva os animais e os humanos a mover-se e a mudarem-se para lugares onde nunca antes tinham vivido.

E o que aconteceu em concreto no início do século XX, com a gripe espanhola, que aborda no seu estudo?
Com a gripe espanhola, o que aconteceu foi uma anomalia climática de seis anos que descobri, com os meus colegas, usando os registos climáticos de maior resolução do planeta, que temos no Instituto para as Alterações Climáticas, na Universidade do Maine. Esta anomalia climática trouxe um tempo frio e húmido à Europa durante seis anos, aumentando a chuva, baixando a temperatura e mudando os padrões de vento no continente. Esta mudança substancial no que era normal interrompeu as migrações, particularmente as dos pássaros que transportam o vírus H1N1, responsável pela gripe espanhola. A permanência dos pássaros na área europeia (em vez de migrarem para o nordeste no verão), somada às cheias nos rios e nos lagos onde os pássaros viviam e contaminavam as águas, devido às chuvas, motivou a contaminação da água que as pessoas bebiam, mas também a água onde as pessoas andavam nas trincheiras europeias durante a Primeira Guerra Mundial. Milhões de soldados. Todos nós estamos familiarizados, basta ir à escola na Europa, com as fotografias e as histórias da Primeira Guerra Mundial, as trincheiras inundadas de água, os soldados a viverem com água pela cintura ou pelo pescoço.

"Sempre que tivemos uma pandemia, aconteceu durante uma crise climática de algum tipo."

Esse é um ambiente perfeito para doenças.
Para doenças! Portanto, eles não foram apenas infetados pelo vírus; a chuva e o frio acrescentaram infeções secundárias aos pulmões.

Talvez muitos não tenham morrido do vírus, mas de outras condições.
Poderão ter morrido do vírus, mas também de infeções secundárias. Habitualmente, ocorriam duas infeções ao mesmo tempo: uma infeção bacteriana e uma infeção viral. Aquilo que as nossas avós diziam — “não vás para a rua porque está frio e vais constipar-te” —, nós sempre dissemos que elas estavam erradas. Mas, na verdade, se o corpo estiver exposto a um ar frio e húmido durante muito tempo, o sistema imunitário fica mais fraco. É enfraquecido pelo tempo. A avó não estava assim tão errada. Esse conhecimento tradicional, como lhe chamamos, é na verdade baseado em observações reais. A exposição dos soldados e outras pessoas ao ar frio e húmido durante longos períodos de tempo reduziu-lhes as defesas imunitárias…

Ou seja, funciona nos dois sentidos.
A primeira onda da gripe espanhola aconteceu em 1918, entre fevereiro e abril, e não matou muitas pessoas. É por isso que lhe chamam a “onda benigna”, porque não teve um impacto enorme. A segunda onda, pelo contrário, aconteceu exatamente como a nossa segunda onda aconteceu no ano passado, com a Covid-19. Aconteceu em outubro, novembro e dezembro de 1918. Foi também nessa altura que os principais veículos do vírus, os patos-reais e vários outros pássaros, chegaram a 65% de taxa de infeção, porque tinham as crias — que não são particularmente fortes —, e as taxas de infeção sobem, no inverno.

Se bem entendo, o modo como as condições do clima podem interferir com a pandemia funciona nos dois sentidos. Primeiro, criam condições para que a doença se espalhe, ao interferir com os animais; e em segundo lugar também afeta o nosso sistema imunitário.
Correto. Mas o primeiro é, na verdade, o mais importante — o modo como o clima afeta a saúde e o ambiente das doenças está sempre a acontecer. Nós, simplesmente, não nos apercebemos disso. O segundo, o enfraquecimento do sistema imunitário, está simplesmente relacionado com o tempo frio e húmido.

E isso já sabemos.
Já o sabemos — e nem sempre está frio e húmido. Por estes dias até está mais quente e seco, ou então quente e húmido.

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Como é que se anda um século para trás e se estuda as condições do clima?
Eu até vou mais atrás, na verdade. Já fiz estudos sobre a peste negra, há 700 anos; já estudei sobre a primeira pandemia, embora não como primeiro autor, mas os meus colegas, o Michael McCormick, e outros. Andamos muito para trás, 1.500 anos, até mesmo dois mil anos.

Quais são as principais fontes de informação para o clima?
Múltiplas. Somos o único grupo, ou um dos poucos no mundo, que combina todo o tipo de fontes de informação, todos os dados que estão disponíveis. A principal fonte é um núcleo de gelo, um longo cilindro de gelo que extraímos dos Alpes, no coração da Europa, no Monte Rosa, a segunda montanha mais alta dos Alpes. Este núcleo de gelo está preservado no Instituto para as Alterações Climáticas tal e qual como o retirámos, como ele é. Usamos um sistema de laser de última geração para o analisar em alta resolução, de modo a preservar o gelo para sempre. Antes, costumávamos derretê-los. Derreter o gelo inteiro. Tínhamos de passar por todo o trabalho de extrair 72 metros de gelo e, depois levávamo-lo para o laboratório e derretíamos tudo.

E que tipo de informação é que o gelo tem?
A atmosfera, o ar dos últimos dois mil anos, fica encurralado em cada camada do núcleo de gelo. Pense no filme Jurassic Park, em que eles têm o âmbar com um mosquito lá dentro, e têm o exato ADN dos dinossauros encurralado naquele mosquito. Claro que nesse caso é completamente ficcional, mas nós fizemo-lo verdadeiramente. Temos uma verdadeira cápsula do tempo. O núcleo de gelo é uma cápsula do tempo que captura o ar dos últimos dois mil anos, portanto conseguimos saber qual era a verdadeira composição do ar em qualquer ano. Temos 300 pontos de dados por ano, ou seja, quase um ponto por ano nos últimos dois mil anos. E o que é que lá está capturado? A composição química do ar. Não existe apenas oxigénio e nitrogénio no ar; também temos todo o tipo de outros componentes químicos que vêm do oceano, da poluição que produzimos enquanto humanos, da mineração, fumo, erupções vulcânicas… Todas estas coisas criam a atmosfera que respiramos todos os dias e estão capturadas no gelo. Ao analisarmos o gelo, podemos dizer que houve uma erupção vulcânica num determinado momento, ou que houve um período de grande poluição em que a Europa deverá ter tido uma economia muito próspera e em crescimento.

Essa é a dimensão das ciências exatas. Mas vão a outro tipo de fontes? Por exemplo, no período da Primeira Guerra Mundial, jornais e outros tipos de fontes?
Sem dúvida. Fontes históricas. No nosso caso, usámos jornais, até usei um poema que descrevia as condições no campo de batalha, particularmente na Batalha do Somme. A citação que uso desse poema é o “túmulo líquido dos nossos exércitos”, que é uma descrição perfeita daquilo que acontecia. Mas também usei registos governamentais das mortes, de quantas pessoas morreram durante aquela pandemia.

Habitualmente, falamos em 50 milhões.
50 milhões em todo o mundo, o que foi um número enorme, particularmente no final da Primeira Guerra Mundial, em que o número de infetados era um terço da população do planeta — 500 milhões de infetados, pensamos nós. Eu, na verdade, sou mais da opinião de que toda a gente apanhou o vírus, mas simplesmente não o sabemos, porque algumas pessoas eram assintomáticas, não tinham sintomas. Na verdade, eu obtive todos os registos de mortes, toda a mortalidade, todas as vítimas, a partir de 13 países europeus diferentes e somei-os, semana a semana, durante toda a pandemia. Esta informação, embora esteja disponível e impressa em livros antigos com 70 ou 80 anos, nunca foi publicada e disponibilizada ao público. Fui o primeiro a torná-la disponível numa folha de cálculo do Excel que agora qualquer pessoa pode descarregar.

Onde estavam os livros? Em arquivos governamentais?
Por todo o lado! Mas graças à Universidade de Harvard… Estou muito feliz por ter acesso à melhor biblioteca do mundo e aos melhores funcionários do mundo, que fazem o possível e o impossível, e assim consegui recolher toda. Demorou alguns anos até conseguir reunir tudo.

"Se, com as alterações climáticas, secarmos um rio ou um lago, os animais que usam esse lago para obter água vão para outro sítio qualquer. E os humanos que usam o lago para obter água também vão para outro sítio qualquer. Quando mudamos isso, e passamos a obter a nossa água de outro lugar, podemos ser expostos a novas doenças, a novas fontes de comida e água que podem estar contaminadas. Essa é a mudança que origina o efeito borboleta."

Mas teve de contactar os governos?
Não, não. Está disponível em livros de várias coleções. Tive de os traduzir e depois somá-los. É trabalhoso, um trabalho muito intenso. Também olhámos extensamente para fontes históricas. O meu projeto, na verdade, tem a maior base de dados do mundo de testemunhos oculares das alterações climáticas antes da industrialização — de 1800 para trás, até praticamente ao ano 1 e até mais atrás. Estamos a chegar aos 60 mil registos de fenómenos climáticos e também de epidemias. Todo este trabalho tem sido financiado há sete anos pelo Arcadia Fund, de Londres, a quem estou muito grato. Financiaram este trabalho de conservação ambiental, história e economia. É incrível.

Pode dizer-se, portanto, que ao longo da história — e particularmente no início do século XX —, as crises de saúde e as crises climáticas estiveram relacionadas.
Sim. Se quiser resumir aquilo que as alterações climáticas fazem numa palavra é instabilidade. Passamos de um sistema estável, em que tudo está a funcionar como esperado — padrões esperados e expectáveis no ambiente, na natureza e na vida humana —, para um sistema instável, em que as pessoas não se movem do mesmo modo, não vão aos mesmos sítios, não comem do mesmo modo. Tentam encontrar comida e água, migram para lugares diferentes. E também os animais. Se, com as alterações climáticas, secarmos um rio ou um lago, os animais que usam esse lago para obter água vão para outro sítio qualquer. E os humanos que usam o lago para obter água também vão para outro sítio qualquer. Quando mudamos isso, e passamos a obter a nossa água de outro lugar, podemos ser expostos a novas doenças, a novas fontes de comida e água que podem estar contaminadas. Essa é a mudança que origina o efeito borboleta.

O principal impacto seria, então, devido ao facto de estarmos a interferir com os hábitos dos animais.
Estamos a interferir com os ciclos da natureza.

Mas a maioria das epidemias começa nos animais.
É verdade.

Estava a pensar, por exemplo, que um dos principais efeitos das alterações climáticas será a alteração das temperaturas que levará os mosquitos das latitudes tropicais a subir cada vez mais para norte.
Precisamente. Por exemplo, no caso de três das principais doenças tropicais — a zika, a febre de dengue e a chikungunya —, todos estes vírus costumavam ser apenas tropicais e transmitidos por dois tipos de mosquitos que eram apenas tropicais. Mas o que significa hoje tropical? O ambiente deles, na América do Norte, já chega a Nova Iorque. Até Boston. Agora, estes mosquitos conseguem levar a doença até essa latitude, o risco está lá. E, claro, vão também no sentido oposto, para sul. Por um lado, aumentámos o verão, duplicámos a duração do verão. Quanto mais para norte andamos, mais tempo o verão tem aumentado. No Ártico, aumentámos a temperatura de um modo anormal nas últimas duas décadas. Estamos a mudar o ambiente e, tal como dizia, por estarmos a torná-lo mais quente e a mudar os habitats, os animais podem agora mover-se em ambientes onde não estávamos antes — ou, pelo menos, onde as pessoas das zonas temperadas não estavam antes. Quero dizer, nós ficámos no mesmo sítio, mas o clima tornou-se mais tropical mais a norte.

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Se andar um século para frente, até à pandemia da Covid-19, consegue extrapolar alguma conclusão do seu estudo para a pandemia atual?
Em primeiro lugar, aquilo que aponto para o vírus SARS-CoV-2, a doença Covid-19, é que o vírus — a não ser que alguém prove que está errado ou descubra algo novo —, segundo pensamos, veio de um morcego, nas cavernas e florestas da China, e que esse morcego, provavelmente, passou o vírus ou a outro mamífero ou diretamente a um humano. Não sabemos. Mas os morcegos são animais selvagens, tal como as civetas, outra espécie onde também foi descoberta uma estirpe de SARS-CoV-2. Então, como é que o vírus passou para os humanos? Bom, através do comércio de vida selvagem. Esse é um outro modo de nós interferirmos com a natureza e com a vida selvagem. Provavelmente, a melhor medida que os governos poderiam tomar hoje para garantir que nunca mais temos uma pandemia como esta outra vez, ou pelo menos para melhorar as nossas probabilidades, seria banir o comércio de vida selvagem em todo o mundo, com efeito imediato. Não há nenhuma razão para não o fazer. É apenas uma pequena quantidade de dinheiro que vai para o comércio de vida selvagem, e é extremamente danoso para as espécies envolvidas e para nós, porque nos expomos a doenças que os animais selvagens transportam na natureza.

Este é o tipo de risco que corremos.
Ao comercializar animais selvagens que estão associados a crenças completamente anti-científicas, como por exemplo a de que se comermos determinado animal vamos ter um desempenho sexual melhor, ou vamos ser mais inteligentes ou mais vigorosos. Este tipo de coisas… Não há qualquer base científica para nada disto, mas há bases científicas que mostram que quando comemos esses animais, ou nos expomos a eles, ou até quando lhes tocamos, estamo-nos a expor a novas doenças a que não fomos expostos antes. O risco de uma epidemia, depois disso, é muito grande.

Isto não está necessariamente relacionado com as alterações climáticas.
Não está necessariamente relacionado com o clima, mas está relacionado com a ação humana sobre a natureza. A preservação da natureza é a melhor garantia de que mantemos essa estabilidade que estava a discutir antes. Também estamos a afetar a natureza, de modo indireto, com as alterações climáticas. Ao poluir o mundo, mudamos a natureza, mudamos os habitats da natureza onde os animais estão, e os animais vão mexer-se, vão para outro lugar qualquer. Um bom exemplo disto é a doença de Lyme. No nordeste dos EUA tivemos uma epidemia da doença de Lyme, que é uma doença mesmo muito perniciosa, de que não é nada fácil livrarmo-nos, mesmo com antibióticos e terapias leva anos. Como é que isto aconteceu? Primeiro, mudámos o clima, tornando-se muito mais quente no norte dos EUA. Depois, matámos todos os lobos. Ao matar todos os lobos, deixámos os veados reproduzirem-se sem predadores — e os humanos não comem carne de veado suficiente para fazer a diferença. Como resultado disso, as carraças podem alimentar-se nos veados à vontade e podem reproduzir-se durante um período de tempo duas vezes maior, porque tornámos o clima mais quente e o verão duplicou em extensão. Depois, os invernos não são suficientemente frios para matar as larvas das carraças, as carraças bebés. Assim, as carraças continuam a reproduzir-se, tornam-se cada vez mais. E as carraças transportam a doença de Lyme e transmitem-na a tudo o que mordem, incluindo a nós — e continuam a ter muita comida, com os veados. Se olharmos para um mapa das anomalias climáticas no nordeste dos EUA e depois para um mapa dos casos de doença de Lyme, conseguimos desenhar uma linha, são o mesmo.

Se continuarmos as alterações climáticas a este ritmo…
Vamos ter mais surtos de doenças epidémicas.

"Poderão ser necessários vários passos que não conhecemos — animais que migram, pessoas que migram e que dão início ao efeito borboleta, ao efeito dominó, um efeito depois do outro até que volta a nós para nos morder, para nos afetar."

E mais mortíferas? Por causa desse segundo impacto, de nos tornar mais vulneráveis?
Bom, não consigo prever se vão tornar-se mais mortíferas. Os vírus estão sempre a sofrer mutações. Poderá haver variantes mais mortíferas, poderá haver variantes menos mortíferas, ou menos infecciosas. É imprevisível. Mas o que quero enfatizar é o facto de os sistemas da natureza, os ciclos da natureza, o modo como a natureza encontrou o equilíbrio, existirem há muito mais tempo do que os humanos viveram neste planeta. Nos últimos dois mil anos — e, mais ainda, nos últimos duzentos anos —, mudámos esses ciclos, essa estabilidade, com a nossa poluição e com a comercialização e extração de recursos naturais em troca de coisas que não são assim tão necessárias. Por coisas que são, na verdade, ineficientes. Causámos tantos danos que esses danos vão voltar e afetar-nos.

A natureza tende para a estabilidade.
Tudo na natureza encontra equilíbrio. Encontramo-lo na química, na física, em todo o lado. A natureza quer o equilíbrio.

E mudar os habitats, mudar as temperaturas, é introduzir um fator de desequilíbrio.
Exatamente. E vamos ter uma reação como resultado. E essa reação será inesperada. Estamos habituados à estabilidade; estamos habituados a uma vida de ciclos humanos — e esses ciclos dependem da natureza, de um modo ou outro. As estações, a chuva… esse tipo de coisas que esperamos. Se as mudarmos, vamos mudar as nossas vidas como resultado. Poderão ser necessários vários passos que não conhecemos — animais que migram, pessoas que migram e que dão início ao efeito borboleta, ao efeito dominó, um efeito depois do outro até que volta a nós para nos morder, para nos afetar. Essa complexidade é muito difícil de compreender para a maioria das pessoas, porque andamos nas nossas vidas, distraídos com as nossas necessidades quotidianas.

E algumas vezes são processos que demoram mais do que as nossas vidas.
Demoram mais e são invisíveis para nós. Mas estão lá. A migração dos pássaros nas estações, a cada primavera e a cada outono, está a acontecer à nossa volta a toda a hora. Eles transportam doenças, transportam parasitas, transportam todo o tipo de coisas. Está a acontecer, mas não prestamos atenção. Os mamíferos também migram, os peixes migram, as pessoas estão a migrar do Médio Oriente e da África Subsariana por causa das alterações climáticas. Nós simplesmente não prestamos atenção ao facto de as doenças deles migrarem com eles. Em alguns casos, nós vamos ser expostos a essas doenças, e algumas dessas doenças vão emergir como grandes ameaças. Novamente, a zika, a dengue, a chikungunya… Estas são, na verdade, doenças do sudeste asiático e da América do Sul que agora estão no hemisfério Norte.

Com base na sua investigação relativa a tudo isto, acredita que a pandemia da Covid-19 pode ser um argumento forte para que a Humanidade entenda, finalmente, os verdadeiros perigos das alterações climáticas? Que elas podem virar-se contra nós?
Penso que sim. De vários modos, tal como já disse: mudar o que os animais fazem vai mudar a nossa saúde; mudar o que as pessoas fazem vai mudar a nossa saúde, porque as pessoas migram e levam as suas doenças com elas. Mas outro motivo pelo qual acho que a pandemia da Covid-19 verdadeiramente fez com que as pessoas reavaliassem, passassem a acarinhar a natureza, se voltassem a relacionar com a natureza, é o seguinte: passámos 18 meses nos nossos apartamentos. Na Europa, em muitos países, nem sequer vos deixaram abandonar o apartamento, nem podiam ir a um parque. Sei que esse foi o caso de Itália durante algum tempo, mas nos EUA, pelo menos, podíamos ir a parques, podíamos ir aos bosques ou à praia. Em Nova Iorque, onde vivo parte do tempo, as pessoas nunca tinham usado tanto o Central Park. Adoram o Central Park. Porque, de outro modo, estaríamos sozinhos em apartamentos durante o tempo todo. O Central Park tornou-se este centro comunitário onde nos encontrávamos com os nossos amigos, onde nos relacionávamos com a natureza, onde estávamos em paz, onde encontrávamos serenidade e verdadeiramente apreciávamos o que a natureza nos dá. Nós evoluímos na natureza. Só nos últimos duzentos anos é que nos separámos inteiramente do ambiente natural. Durante toda a nossa evolução enquanto humanos, vivemos no meio da natureza.

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Tem esperança que este momento nos ajude a reverter alguns dos impactos das alterações climáticas?
Já vejo isso. Nós já tínhamos um grande movimento de alerta para a ação climática antes da Covid-19. Em setembro/outubro de 2019, os ciclos noticiosos estavam sempre a falar do clima, mais tempestades tropicais do que nunca, todo o tipo de fenómenos climáticos extremos. Toda a gente falava de como a crise climática se apresentava diante dos olhos de todos.

Também temos toda esta nova geração de ativistas…
Verdade. A geração Z, como lhes chamamos nos EUA. Depois, aconteceu a pandemia e colocámos aquilo em pausa para começar a pensar mais na saúde. Eu trabalho sobre as duas crises, o meu trabalho está na intersecção entre as crises do clima e da saúde. Toda a gente começou a pensar em como haveria de ultrapassar este ano sem ver ninguém, não posso tocar em ninguém, não posso dar um abraço. “Para onde irei? Não posso ficar nesta sala para sempre. Estamos todos na prisão, em isolamento, basicamente.” E as pessoas começaram a ir para os parques. Na Google, não sei como tiveram esta informação, eles mostraram um gráfico de onde as pessoas estavam a ir — penso que através dos telemóveis, pelo GPS ou GSM. Os centros comerciais, as escolas, o trabalho, os edifícios governamentais… Tudo isso caiu a pique. Ninguém ia à escola nem a nenhum destes lugares. O único lugar, o único destino que disparou foram os parques.

As pessoas precisam da natureza.
Sim. As pessoas reorientaram-se imediatamente e foram para a natureza. Por exemplo, a Linnaean Society de Nova Iorque, que é uma sociedade naturalista, de ciência-cidadã, que estuda a natureza, organizava caminhadas semanais pelo parque às terças-feiras. Habitualmente eram 10 ou 15 pessoas, mas agora eram 90 pessoas em cada caminhada! Eu fui lá, organizámos algumas com o Explorers Club, também, porque as pessoas precisavam de ver os amigos, de estar na natureza e de se sentirem em paz. Penso verdadeiramente que a pandemia reorientou as prioridades das pessoas, que passaram a querer estar mais perto da natureza. É possível vê-lo nos mercados — eu estudo muito os mercados, porque faz parte do meu trabalho. O mercado imobiliário, nas áreas rurais, no meio do nada, no Montana, no Wyoming… Já não é possível encontrar lá casas vazias para comprar! Os preços dispararam.

Porque as pessoas estão a fugir das cidades?
Absolutamente. A cidade de Nova Iorque esvaziou, não apenas por causa dos imóveis comerciais, que começaram a fechar, mas também porque as pessoas não queriam ficar confinadas. Queriam estar num lugar onde pudessem ir ao exterior, estar na natureza e estar em segurança. Penso que as pessoas estão a reorientar as suas prioridades. Claro que somos humanos e temos uma memória curta.

Talvez a maior prova disso seja que o Alexander esteve a estudar a gripe espanhola, que foi há um século, e agora temos novamente uma pandemia. E quando esquecermos as lições desta, voltaremos ao mesmo caminho?
Acho que nós, os humanos, temos uma memória curta. Não nos lembramos bem de um período superior a dois ou três anos. A maioria das pessoas nem se lembra do que comeu ontem ao almoço. O desafio, no meu trabalho enquanto cientista e comunicador, é dar a perspetiva do longo prazo. Não apenas os últimos vinte anos, mas os últimos cem ou os últimos mil. Aí, é possível ver os padrões a repetir-se. É isso que estudamos: padrões, para perceber como tudo funciona. É isso a ciência — encontrar padrões na natureza, encontrar padrões nas provas e depois retirar conclusões. É preciso muita informação. Não podemos olhar apenas para os últimos vinte anos, é preciso ter perspetiva. E para ter essa perspetiva, não são apenas dois anos. É muito difícil e é o meu primeiro desafio. A maioria de nós tem uma memória de uma vida, o que não é muito. Para entender, por exemplo, o aquecimento global e as alterações climáticas, é preciso entender o longo prazo. Como sabemos o que é normal se tudo o que sempre tivemos é o anormal? Se sempre tivemos temperaturas a subir, achamos que isso é o normal. Mas não é. O normal é aquilo que existia há trezentos anos. Mas como é que eu mostro isto? Às vezes conto a história de uma lagosta. Como é que cozinhamos uma lagosta? Eu vivo na Nova Inglaterra, onde se gosta de lagostas — eu sou vegetariano, por isso não as como. Mas, se queremos cozinhar uma lagosta, a melhor maneira é pô-la em água fria, ligar o lume, que lentamente vai aquecer a água e a lagosta não se vai ‘queixar’. A dada altura, a água vai começar a ferver e a lagosta já estará tão relaxada que, mesmo que se ‘queixe’ um pouco, não vai tentar fugir, o que seria terrível de ver. Mas a maioria das pessoas limita-se a ferver a água e depois atiram a lagosta para lá. Nós somos a lagosta na água fria que está a aquecer lentamente e não nos apercebemos de que as coisas estão a mudar, porque a mudança é lenta. Precisamos de ser a lagosta que é atirada para a água a ferver e passa da temperatura ambiente para água a ferver. Aí, sim, percebemos que não é normal.

Talvez a pandemia seja esse momento?
Exatamente. Penso que é aí que as pessoas percebem que a natureza faz parte das suas vidas e que, sem ela, vão acabar por morrer. Não é possível simplesmente viver numa cidade, viver em cimento. É preciso preservar o verde, preservar o que resta da natureza — e até renaturalizar esses lugares. Pergunto-me o que vai ser feito a todos os centros comerciais dos EUA que estão a fechar, em declínio, porque ninguém lá vai devido à pandemia. E toda a gente mandar vir as coisas da internet, isso foi algo que a pandemia acelerou. Toda a gente encomenda tudo online, pela Amazon. O que vamos fazer com estes espaços enormes que criámos? Bom, que sejam demolidos e que plantemos lá árvores. Tragam as árvores de volta.

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