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PEDRO JORGE CASTRO/OBSERVADOR

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"Estou pronto!" Chefe Naveta, um dos mais temidos veteranos de guerra moçambicanos, pede armas para ir matar os "malfeitores"

O veterano de guerra que só aguarda uma ordem. O professor que dorme de mala feita para fugir. O militar baleado. E o cerco à caixa multibanco. O Observador em Mueda, que pode ser o próximo alvo.

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É uma história tão surpreendente que é uma pena não ser contada com mais detalhes pelo próprio protagonista. O artigo publicado em Moçambique em outubro avançava que “uma operação de abate de 270 terroristas em Mocímboa da Praia foi liderada por um ancião de 80 anos (…) conhecido localmente como Velho Naveta”. O Observador falou com ele esta semana em Mueda, no interior de Cabo Delgado.

Valentim Naveta Ngalonga, conhecido como chefe Naveta, tem 74 anos e é talvez o guerreiro mais respeitado de Mueda: pela bravura que mostrou no combate ao exército português na guerra pela independência de Moçambique; depois na guerra civil entre a Frelimo e a Renamo; e agora pelo seu voluntarismo e pelos conselhos para combater os insurgentes.

Ao pedido do Observador para o fotografar, o Chefe Naveta respondeu de rajada: “Vai-me vender?” Mas depois aceitou

PEDRO JORGE CASTRO/OBSERVADOR

Tinham-lhe dado na véspera um recado a pedir este encontro com o Observador e o veterano de guerra estava serenamente sentado num banquinho à porta da associação de combatentes de Mueda, de blazer e sapatilhas — mas isso não queria dizer que ia aceitar dar uma entrevista.

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O secretário da associação de combatentes, Hilário Dade, bastante mais novo, sentou-nos aos três lado a lado a uma mesa, com Naveta no meio. O ancião não gostou e pediu para ir para a outra ponta, para guardar distâncias e perceber exatamente como é que o Observador tinha chegado ao nome dele, o objetivo do encontro e tudo o que se iria passar a seguir — se ele deixasse.

"Sou experiente, mas tenho medo. Esta guerra é muito diferente. Não foi organizada, foi de repente. Nós não conhecemos os donos da guerra. Não estamos organizados, por isso estamos a fugir."
Chefe Naveta ao Observador, em Mueda

Depois de um longo diálogo em maconde (dialeto local) com o secretário, em que pareceu mostrar o seu desagrado por não ter tido mais informações antes, Naveta perguntou porque é que o Observador não o tinha chamado a ir a Pemba — o que seria de qualquer forma uma deslocação algo improvável, tendo em conta que demora dez horas de carro.

O veterano combatente acedeu finalmente a responder a algumas perguntas, com o gravador ligado, mas frisou que apenas abriu esta exceção por o Observador ter vindo de muito longe, “de Portugal a Maputo, de Maputo a Pemba e de Pemba a Mueda”. No fim, a um pedido para ser fotografado, respondeu de rajada: “Vai-me vender?” Depois afinal também anuiu e posou para um retrato. Começou por falar em português, mas a meio sentiu-se mais confortável a usar o dialeto maconde, traduzido pelo secretário.

Chefe Naveta: “Estou pronto. Não estou bem da vista, mas vou matar pessoas. Ou eu matá-los ou eles matarem-me.”

— Como é que vê estes ataques dos insurgentes?
— Ninguém sabe por que estão a fazer essa guerra, nem nós que estamos aqui. Esta guerra não é militar, estão a matar população que não tem armas. Quem está a sofrer aqui é a população. Os malfeitores têm armas, a população não tem nada.

— Saiu uma notícia [no jornal Carta de Moçambique] a dizer que o chefe Naveta organizou uma batalha de ataque aos insurgentes em Mocímboa da Praia, em que morreram 270 deles. Entrou nessa batalha?
— Não, porque não havia ordem para eu organizar.

— Mas ajudou e deu conselhos?
— Sim, mas não fui eu que organizei. Se eu for sozinho, sem uma ordem [militar], quem é que vai tratar de mim? Vão dizer: “Esse camarada foi sozinho para a guerra e ninguém o mandou”. O comandante é que pode mandar, dizer: “Você, faça isso!”.

— Tem falado com o comandante militar sobre a organização da defesa?
— Sim. Porque tenho conhecimento e experiência. Vou mostrar.

E tira da carteira um velhinho e amarrotado cartão de desmobilização, colado com fita preta para não se desconjuntar, e que atesta que foi incorporado em Outubro de 1963, com 17 anos, tendo sido desmobilizado em outubro de 1992, três décadas depois.

O boletim militar de Valentim Naveta Ngalonga, com as datas de incorporação e desmobilização

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De volta a esta guerra, quase se zanga com a insistência para perceber se esteve num cerco aos insurgentes em Mocímboa da Praia, em outubro, e sobe o tom de voz: “Não. Eu estou aqui em Mueda. Fico aqui.”

— Não foi com armas combater os insurgentes?
— Iiii, não, não, não. Ainda não foi dada a ordem.

— Mas se for dada a ordem, está pronto?
— Ah, posso ir. Estou pronto. Não estou bem da vista, mas vou matar pessoas.

— Vai matar pessoas?
— Sim, quando tiver armas, e receber a ordem: “Vai lá, pode ir”. Ou eu matá-los ou eles matarem-me. Não me vão dar armas porque sou velho e há soldados jovens. Mas eu queria ensinar os soldados jovens, meus filhos e sobrinhos [Naveta tem uma filha militar, colocada na Zambézia, longe da zona onde estão os insurgentes]. Queria dizer-lhes: “A guerra não se faz assim, faz-se assim. Não se pode deixar no campo de batalha o seu companheiro, precisa de ir lá”. Se me derem a ordem para ir, não deixo ninguém mexer neste local histórico.

Mueda foi um bastião da luta pela independência. À entrada da vila fica o memorial do massacre de Mueda, em 1960, em que um grupo de moçambicanos (os relatos oscilam entre 16 e 600 vítimas) foram assassinados a mando da administração colonial portuguesa, quando se revoltaram com a detenção de dois deles, que pediram ao governador liberdade para a terra. Não se pode tirar fotografias no interior do museu por indicação dos militares. E alguns dos objetos mais raros ou importantes que aqui estavam expostos, como certas peças de mobiliário do tempo da administração portuguesa, foram retirados para um local mais seguro, para preservar o património e reduzir os danos em caso de ataques e saques por parte dos insurgentes.

O monumento que recorda as vítimas do massacre de Mueda foi inaugurado 50 anos depois, pelo presidente Armando Guebuza

Naveta já recebeu em tempos a visita de um antigo oficial português, com quem esteve a recordar os combates e as posições que ocupavam durante a guerra pela independência (ou pela defesa do Ultramar, consoante a perspetiva). Cinco décadas depois, dá esse assunto como ultrapassado: “Nós e os portugueses somos irmãos. Os portugueses é que nos ensinaram a guerra. Nós sabíamos usar flechas. Mas os portugueses vieram com as armas até nós e ensinaram-nos a guerra.”

Apesar da dificuldade deste combate aos insurgentes, prefere não ver tropas internacionais — nem portuguesas, nem americanas, nem sul-africanas — a lutar lado a lado com o seu exército. “Prefiro só tropas moçambicanas. Eles são de muito longe. Eu estou aqui. Podíamo-nos nós próprios organizar bem com armas potentes, de longo alcance, e misturar veteranos e jovens. Podíamos ter um batalhão de veteranos.”

É em Mueda que fica a sede do quartel-general com mais tropas moçambicanas, é a terra dos guerreiros Macondes e do presidente moçambicano, Filipe Nyusi — e é apontada por vários especialistas como o próximo alvo dos insurgentes, que já atacaram em força no distrito vizinho de Muidumbe. Naveta admite ter de sair de Mueda se os inimigos chegarem. “Eu posso ter de fugir, porque não tenho arma para me defender. Eles têm armas, vão-me expulsar”.

— Tem medo?
— Sim. Sou experiente, mas tenho medo. Esta guerra é muito diferente. Não foi organizada, foi de repente. Nós não conhecemos os donos da guerra. Não estamos organizados, por isso estamos a fugir.

O medo do professor: “Durmo com a mala feita, com os documentos e as roupas básicas, para poder sair daqui”

Se um combatente consagrado admite recear a entrada dos insurgentes, imagine-se o pavor em que viverão alguns civis residentes na vila. Francisco Agostinho, 31 anos, gostava de ter sido militar, “por patriotismo”, mas ainda hoje acha que os irmãos mais velhos boicotaram esse seu desejo e nunca chegaram a enviar a sua candidatura à academia. Acabou por ir para a universidade, hoje é professor de Geografia, Inglês e Francês — e admite o alívio por não estar no exército a combater estes inimigos que decapitam os moçambicanos.

Há uma semana, na quinta-feira, dia 15, a meio da tarde, Mueda perdeu as redes das duas operadoras de telemóveis, a Movitel e a Vodacom. “Fiquei em pânico, porque os insurgentes costumar cortar as comunicações antes dos ataques. A noite foi das longas. Eu não dormi”, admite o professor. Nessa noite, um post do jornalista Fernando Veloso no Facebook e outro da analista Jasmine Opperman no Twitter referiram que Mueda estava a ser atacada e que tinham visto vídeos que mostrariam corpos esventrados pelas ruas. A informação foi oficialmente desmentida e ambos pediram desculpa poucas horas depois, mas, como era impossível estabelecer comunicação com a vila, os familiares e amigos dos residentes ficaram num alvoroço, até ao dia seguinte, em que reapareceu a rede da Movitel e puderam ter a certeza de que estavam todos bem e que a notícia do ataque era mesmo falsa.

“Obviamente que tenho um plano de fuga. Há quem durma tranquilo? Eu durmo com a mala feita, com os documentos principais e as roupas básicas, para sair daqui se houver algum barulho. Mas se cortam aquela saída para Montepuez, estamos lixados: será o ‘Deus que nos ajude’”.
Francisco Agostinho, professor que vive em Mueda

Em 2019, com a intensificação dos ataques em Cabo Delgado, Francisco Agostinho retirou a mulher e as duas filhas para uma casa que alugou em Nampula, a 600 km de Mueda. Ele próprio só continua aqui por não ter uma alternativa de emprego e não conseguir transferência para qualquer outra localidade: diz que esses movimentos de funcionários estão congelados, porque seria difícil encontrar substitutos interessados em vir representar o Estado numa província parcialmente controlada por terroristas.

A seguir aos ataques no distrito vizinho de Muidumbe, em novembro, o professor fugiu a correr, apanhando boleia no carro de um polícia amigo à saída da vila até Metoro, e depois num camião que distribui Coca-Cola até Nampula. Nesse carro de distribuição do refrigerante encontrou dois militares que estavam a desertar. “Não sabiam por que haveriam de continuar a combater. Preferiam tirar a farda. Em todos os distritos onde houve ataques tínhamos posições militares, mas não foram capazes de defender: uns são mortos, outros têm medo”, explica o professor.

Francisco Agostinho, professor de Geografia, Inglês e Francês, já pôs a família em Nampula, mas não consegue uma transferência para sair de Mueda

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Voltou umas semanas mais tarde a Mueda, chamado pela escola, depois de passar a agitação maior, só que continua a não se sentir seguro, apesar da forte presença militar. “Se em Palma havia segurança máxima por causa do projeto da Total e aconteceu o que aconteceu, quem garante que em Mueda não acontece também?”

Está sempre pronto para fugir, ao mínimo sinal suspeito — acha que há o risco de um ataque iminente. “Obviamente que tenho um plano de fuga. Há quem durma tranquilo? Eu durmo com a mala feita, com os documentos principais e as roupas básicas, para sair daqui se houver algum barulho. Mas se cortam aquela saída para Montepuez, estamos lixados: será o ‘Deus que nos ajude’”.

O cerco ao Multibanco e a falta de eletricidade há 9 meses

Desde que os insurgentes controlam a estrada mais rápida que liga Mueda a Mocímboa da Praia e a Pemba, a única ligação entre a vila e o resto da província é uma estrada de terra batida que só pode ser feita aos solavancos por entre as irregularidades do piso. A partir de Montepuez, são 200 km que demoram pelo menos cinco horas a ser percorridos.

Ao longo da estrada praticamente deserta, rodeada de vegetação densa dos dois lados, caminham aqui e ali homens armados com facalhões que podem usar na agricultura ou como arma de defesa. Também há alguns macacos, rios que transbordam na época das chuvas — o que torna a estrada intransitável — e postos de controlo militar crescentes à medida que os viajantes se aproximam de Mueda.

Passam tão poucas viaturas (pouco mais de duas dezenas ao longo do percurso) que é fácil identificar quem vem em sentido contrário. O Observador encontrou-se a meio do caminho com o secretário permanente de Mueda, Albertino Mananba, a conduzir uma carrinha de caixa aberta que transportava uma dezena de pessoas. Ia para uma reunião em Pemba, onde também se encontra a administradora da vila de Mueda, que acaba de ser mãe.

Albertino Mananba cruzou-se com o Observador na estrada que liga Mueda a Montepuez e deu boleia a uma dezena de residentes

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A vila ficou assim a ser gerida pelo diretor da educação, Celso da Cruz, que só está em Mueda há três semanas, depois de ter desempenhado o mesmo cargo em Mocímboa da Praia até aos ataques. “Sim, eu estava lá”, admite. Fugiu num alvoroço e ainda está tão traumatizado com tudo o que viu que prefere não recordar essa experiência.

É ele que recebe o Observador: esta apresentação às autoridades locais em Moçambique é obrigatória, antes de iniciar qualquer reportagem no terreno. Leva-nos depois à presença da responsável militar pela segurança no distrito, a comandante Teresinha, que se mostra ainda muito incomodada com o boato do ataque a Mueda da semana anterior. Não é esta comandante que conduz a guerra (isso é com um general que também está em Mueda, mas preferiu não receber o Observador). Contudo, foi bastante assertiva a garantir que todo o distrito está seguro e controlado pelos militares moçambicanos.

O restaurante principal tem apenas quatro opções de prato, que não variaram muito nos três dias em que o Observador lá esteve: frango, lulas, bife ou peixe. A pensão mais procurada da vila, onde Filipe Nyusi chegou a ficar alojado quando era ministro da Defesa, não tem água a sair das torneiras da casa-de-banho: em vez disso, disponibiliza dois baldes, um maior e outro mais pequeno. Não há eletricidade na vila há mais de nove meses. Carregar o telemóvel na rua custa 20 meticais (cerca de 27 cêntimos)

Independentemente destas garantias, as elites de Mueda saíram em novembro, depois dos ataques em Muidumbe, e não voltaram. “Se os insurgentes destruírem um negócio, o empresário pode continuar com empresas noutros locais. Se matarem o empresário, não há mais negócios”, justifica um negociante de Mueda, que se estabeleceu entretanto noutro ponto da província. Só fica quem não tem alternativa, quem está preso a um emprego ou não tem meios para fugir, mesmo que temporariamente, para mais longe dos insurgentes.

A rua principal da vila ainda tem muitas bancas de venda, mas nota-se a falta de alguns produtos essenciais. O restaurante principal, que pertence a uma empresa que costuma trabalhar nas campanhas do presidente Filipe Nyusi em Cabo Delgado, tem apenas quatro opções de prato, que não variaram muito nos três dias em que o Observador lá esteve: frango, lulas, bife ou peixe.

A pensão mais procurada da vila, onde Filipe Nyusi chegou a ficar alojado quando era ministro da Defesa, não tem água a sair das torneiras da casa-de-banho: em vez disso, disponibiliza dois baldes, um maior e outro mais pequeno.

Não há eletricidade na vila há mais de nove meses — foi cortada na sequência da sabotagem das torres de energia elétrica por parte dos insurgentes. Este problema obriga a improvisar: alguns estabelecimentos têm geradores; os candeeiros que iluminam a rua principal são alimentados a energia solar; mas a maioria dos residentes não tem dinheiro para comprar e manter um gerador ou um painel solar. Francisco Agostinho, o professor, voltou a usar velas a partir das 5 e meia da tarde, quando anoitece em Mueda. E paga 20 meticais (cerca de 27 cêntimos) na rua, de cada vez que precisa de carregar o telemóvel.

Os dias em que o Observador ficou na vila coincidiram com os dias em que são pagos os salários mensais aos funcionários do Estado. Mais do que a falta de eletricidade, o que estava a causar perturbação era a falta da Vodacom, a rede usada pelos terminais de pagamento automático, que estavam todos inativos, pelo que todas as compras tinham de ser feitas em dinheiro vivo.

Apenas o banco BCI tinha quatro caixas multibanco a funcionar, à frente das quais se concentravam centenas de pessoas desorganizadas, amontoadas e desesperadas para tentarem levantar dinheiro, enquanto um grupo de militares e seguranças privados do banco tentavam manter alguma ordem no acesso aos terminais ATM. Um residente admitiu ao Observador que pagou 200 meticais (2,7 euros) a um deles para conseguir passar à frente na fila e foi escoltado até à caixa — mas depois de levantar as notas sentiu-se mal perante os protestos de quem estava a aguardar há horas.

Não há filas ordenadas, nem qualquer distanciamento imposto pelo combate ao Covid-19. Se a multidão se aproxima muito das caixas multibanco, os militares empurram as pessoas para garantir uma distância de segurança mais folgada, o que dá origem a cenas de caos e gritos, com o balde de água ali colocado para os clientes lavarem as mãos a ser derrubado e a encharcar quem estava por perto, como o Observador pôde testemunhar. Mas a maioria dos clientes não arreda pé até conseguir levantar dinheiro, até porque não tem alternativa.

Centenas de pessoas concentradas frente às únicas caixas multibanco que funcionam em Mueda

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Mueda tem uma forte presença do exército, com viaturas militares ao longo da rua principal, e uma segurança mais apertada face a qualquer movimento que possa parecer suspeito. O Observador estava a captar fotografias desta multidão frente ao Multibanco e foi logo abordado por um segurança, que quis ver as imagens e, mesmo perante a credencial passada pelas autoridades que confirma o trabalho jornalístico, levou-nos para as traseiras da instituição, por entre gritos da multidão. “Tinha de ter avisado os responsáveis do banco antes”, advertiu. E começou a chamar militares, para verificarem a credencial e as fotos tiradas. O militar mais graduado olhou para tudo e decidiu: “Pode filmar”. Mas obviamente já não havia condições, perante o alvoroço causado em frente à multidão.

Às seis da tarde, é hora de recolher obrigatório em Mueda (quatro horas mais cedo do que no resto do país), precisamente por ser uma zona militar. Toda a vila fica deserta, as bancas de venda desaparecem e não há ninguém nas ruas — exceto em frente às caixas multibanco, onde continuam centenas de pessoas à espera da sua vez para terem dinheiro.

Militar baleado: “Ganhei força para sair dali a pensar que me podiam cortar”

Um jovem militar das Forças de Defesa e Segurança baseado no quartel-general de Mueda contou ao Observador como foi baleado pelos insurgentes na primeira vez que saiu para os enfrentar. Foi no ano passado, na sequência de um dos ataques a Mocímboa da Praia. Pelas 14h, os primeiros veículos da coluna militar foram atingidos na estrada por granadas. “Mocímboa não é um distrito onde se entra de qualquer maneira, estava ocupado por aqueles homens. Nessa aldeia tinham a primeira cancela deles”, recorda.

O jovem militar — que o Observador não vai identificar para não lhe provocar problemas com a corporação — foi atingido por uma bala no ombro e ficou prostrado na estrada, sob fogo cerrado do inimigo. “Os outros estavam em árvores e dentro de casas. E nós no meio da estrada. Eles viam-nos sempre. Disparavam contra nós e nós contra eles, mas via os meus colegas a cair ali mesmo. Tínhamos de evacuar”, lembra.

“Foi um susto mesmo.” Pelo menos seis elementos das forças de segurança tiveram de ser internados no hospital. Este jovem ouvido pelo Observador não sabe precisar quantos morreram na emboscada, nem o que lhes aconteceu a seguir: “Não sei se os que morreram foram cortados”.

O terror das decapitações ajudou-o a não desistir e a procurar fugir desta emboscada. “Estava quase a perder a vida. Ganhei forças para sair dali a pensar que me podiam cortar. Pensei: ‘Tenho de tentar uma forma de sair daqui’.” O militar ferido tinha os inimigos a cerca de 70 metros. “Quando me levantei tentaram disparar, mas não conseguiram. Corri para o quintal de uma casa, escondi-me atrás de um coqueiro, depois eles chegaram e vasculharam a casa. Foi a primeira vez que os vi. Assustei-me: nunca tinha visto aquele tipo de pessoas, são sujos mesmo. Pela forma como estavam a apresentar-se, eram terroristas, com lenço na cabeça. Falavam swahili, não percebia nada.”

Fugiu para outro quintal e reencontrou-se com os seus camaradas militares, que o carregaram em ombros, protegidos pelos disparos de um helicóptero que entretanto sobrevoou o local. Os insurgentes continuaram a disparar, agora para o helicóptero e para os militares. “Foi um susto mesmo.” Pelo menos seis elementos das forças de segurança tiveram de ser internados no hospital. Este jovem ouvido pelo Observador não sabe precisar quantos morreram na emboscada, nem o que lhes aconteceu a seguir: “Não sei se os que morreram foram cortados”.

O salário dos colegas oscila entre 7 e 15 mil meticais por mês (100 a 200 euros). Como a bala que entrou pelo ombro o atingiu na coluna, está em fisioterapia e ainda coxeia. “Não sei se vou voltar a andar. Isso já é com Deus.” Mas não está arrependido de se ter juntado às Forças de Defesa e Segurança: “Já sabia que ia ser só missões. Era para defender a pátria”. E, contrariando o discurso oficial, acha que será preciso envolver apoio militar estrangeiro para resolver o conflito: “Precisamos de apoio, muito mesmo”.

Os escultores que deixam a arte para trás: “O que importa é a vida”

A poucos metros das filas para as caixas multibanco em Mueda fica um centro de arte maconde, onde continuam a trabalhar duas dezenas de escultores, mesmo sem clientes: o conflito com os insurgentes e também a pandemia reduziram drasticamente o número de visitantes.

O mais experiente, uma espécie de mascote do grupo, é Maiko Tiago, 83 anos. No dia do massacre de Mueda, em 1960, queria vir da aldeia onde mora para a vila, mas o pai proibiu-o. “Foi a minha sorte”, admite. Apesar do medo de um ataque dos insurgentes, fica no distrito enquanto esse dia não chegar: “Se entrarem aqui em Mueda, não vamos conseguir carregar essas obras de arte todas a fugir”, reconhece, enquanto olha para centenas de esculturas que estão em exposição. “Mas aí o importante é a vida. Não são as esculturas, isso podemos fazer noutro sítio, temos a arte nas mãos”.

Os escultores de arte maconde não têm clientes, por causa do conflito e da pandemia

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As peças, esculpidas em madeira escura e espessa, custam entre 2 e 30 mil meticais (27 a 400 euros), dependendo do tamanho, explica o vendedor, Francis Issa Miteda, 52 anos. Ali ao lado, Romao Daudi, 31 anos, esculpe uma mãe africana, que transporta bananas e abóbora, agarrada aos seus cinco filhos: “Estamos a trabalhar só a confiar no futuro. Não vendemos nada por causa dos malfeitores. Agora é só sofrer. Diz ao mundo que este escultor está a sofrer”.

Pais em fuga com medo que as crianças chorem e os insurgentes as apanhem

Não há números oficiais sobre o número de residentes que saiu de Mueda, distrito que tinha 216 mil habitantes nos censos de 2017. Mas sabe-se que chegaram entretanto 19.990 famílias, com 90 mil pessoas no total, dos distritos atacados: Muidumbe, Mocímboa da Praia, Macomia, Palma, Quissanga.

A esmagadora maioria está a viver em redor de casas de familiares espalhadas pelo distrito. O catalão Xavier Correa chegou a Moçambique em janeiro, é um dos nove médicos da organização Médicos Sem Fronteiras em Mueda, e fica impressionado com a capacidade de acolhimento das famílias em relação aos deslocados, apesar de todas as carências que já enfrentam.

Xavier Correa, dos Médicos Sem Fronteiras, admite que tem pessoas na equipa que não se sentem seguras nas zonas mais próximas dos insurgentes, o que obriga a procurar outros voluntários

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Os principais problemas de saúde que afetam os moçambicanos que fogem vão desde as feridas nos pés feitas pelo caminho, até à hipoglicémia e desidratação, e também à malária. Apesar da repetição de histórias dramáticas, o médico continua a emocionar-se com a descrição do pânico dos pais em fuga, com medo que as crianças chorem enquanto estão escondidas e os insurgentes as ouçam; ou com os traumas de pais que conseguiram salvaram dois filhos mas tiveram de deixar outros para trás, por não conseguirem correr com todos. E preocupa-se muito também com todos aqueles que ainda possam estar escondidos em regiões controladas pelos insurgentes: “A principal dificuldade é ter acesso a pessoas mais vulneráveis que estão em zonas inacessíveis. Ainda não sabemos onde estão muitas pessoas, mas suspeitamos que possam estar no mato”.

A segurança e o controlo de riscos também tem de ser uma preocupação das ONG como os Médicos Sem Fronteiras. “Temos pessoas na equipa com algum medo, que não se sentem muito confortáveis quando é preciso ir perto da linha vermelha, ou não querem mesmo vir — e nesses casos temos de procurar outros voluntários”. Xavier Correa sente-se seguro em Mueda, por causa da forte presença militar, mas não tem a mesma sensação quando tem de ir a Nagade, mais perto dos insurgentes. “Aí seguimos o protocolo de segurança mais restritivo”.

As tendas do campo de deslocados Eduardo Mondlane, às portas de Mueda, acolhem 90 pessoas que não têm casas de familiares por perto. Muitos destes moçambicanos já fugiram de duas localidades na sequência de ataques. Issa Foumassane, 20 anos, escapou de Mocímboa da Praia depois de os insurgentes terem apanhado e degolado o seu irmão. Refugiu-se em Palma, mas agora teve de correr de novo, na sequência do ataque de há um mês, e parou neste campo de Mueda.

Cerca de 90 pessoas vivem em tendas à porta de Mueda. Algumas destas famílias já fugiram de duas localidades atacadas

PEDRO JORGE CASTRO/OBSERVADOR

O chefe do campo é Malik Rachid, 50 anos, pescador. Fugiu de Mocímboa a pé com a mulher e os seis filhos e uma neta para Nangade. Quando as aldeias à volta de Nangade começaram a ser atacadas, também teve de sair de novo, desta vez para Mueda, onde foi um dos primeiros deslocados a chegar. “Não temos comida suficiente. Dependemos dos apoios, que chegam semanalmente. Passamos fome, mas o governo está a tentar apoiar”, diz o chefe, sob o olhar de Cristina Eduardo, técnica do Serviço Distrital de Planeamento e Infraestruturas,  responsável por este campo de deslocados.

A residente mais nova tem um mês. Quase todo o tempo na barriga da mãe foi passado em fuga de Mocímboa da Praia, até nascer no hospital de Mueda, quando estava acolhida numa escola. “As primeiras prendas da bebé foram oferecidas pela Unicef”, diz Cristina Eduardo: uma capulana, uma banheira e um sabonete.

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