A tensão na fronteira entre a Rússia e a Ucrânia continuou este sábado a intensificar-se gravemente, com um conjunto de movimentações militares registadas na zona oriental da Ucrânia, nas regiões de Donetsk e Lugansk, lideradas por separatistas pró-russos, cujo alcance é ainda difícil de entender integralmente — mas que fazem um cenário de guerra parecer mais próximo do que nunca. Ao mesmo tempo, as atenções internacionais estiveram este sábado concentradas em Munique, cidade onde por estes dias decorre a edição de 2022 da Conferência de Segurança de Munique (MSC), com a presença de líderes de todo o mundo, incluindo o Presidente ucraniano, para debater a situação de guerra iminente no leste da Europa.

Na sexta-feira, os líderes separatistas pró-russos que governam as regiões de Donetsk e Lugansk deram início a uma operação de evacuação das populações daquelas regiões para a Rússia, alegadamente devido à escalada da violência entre o exército ucraniano e os rebeldes pró-russos que dominam a zona. A evacuação foi interpretada por muitos no Ocidente como fazendo parte de um esquema orquestrado por Moscovo e pelos pró-russos no leste da Ucrânia para simular um casus belli, ou seja, um motivo para justificar a invasão e o início da guerra. Ainda na sexta-feira, a notícia de uma “grande explosão” junto à sede do governo separatista em Donetsk, inicialmente avançada por agências noticiosas ligadas a Moscovo, fez soar as campainhas para a possibilidade de se tratar de operação de propaganda bélica da Rússia: poderia tratar-se de uma false flag operation, isto é, a simulação de um ataque adversário para justificar um contra-ataque.

A crise adensou-se na manhã deste sábado, quando o exército da Ucrânia anunciou que um soldado ucraniano tinha sido morto durante os confrontos com os separatistas pró-russos. “Na sequência de um bombardeamento, um soldado ucraniano foi mortalmente ferido“, disse o exército em comunicado, uma mensagem que fez elevar o medo de uma invasão em larga escala. As forças armadas ucranianas afirmaram, no entanto, naquele comunicado, que “controlam a situação” e “continuam a sua missão de repelir a agressão armada russa”. Mais tarde, em Munique, o Presidente ucraniano viria a dizer que os conflitos já tinham causado a morte a dois soldados do exército da Ucrânia.

Durante a manhã, a operação de evacuação iniciada na sexta-feira continuava em curso. Mais de 6.500 pessoas já haviam abandonado Donetsk e pelo menos 25 mil já tinham saído de Lugansk rumo à Rússia, de acordo com informações prestadas pelos líderes separatistas às agências russas.

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Numa fase em que as tensões entre a Rússia e o Ocidente estão no seu ponto mais elevado desde o fim da Guerra Fria, o Presidente russo, Vladimir Putin, não colocou água na fervura. Pelo contrário, Putin aproveitou este sábado para mais uma demonstração de força, supervisionando um conjunto de exercícios militares de grande escala — incluindo o teste de mísseis com capacidade para transportar armas nucleares. Ao lado do seu homólogo e aliado bielorrusso, Alexander Lukashenko, Vladimir Putin supervisionou um conjunto de exercícios militares com mísseis balísticos e de cruzeiro que fizeram subir ainda mais as tensões e a perspetiva de uma invasão russa iminente contra a Ucrânia.

Putin lança exercícios militares com mísseis balísticos

A partir de Moscovo, a diplomacia russa esforçou-se este sábado por enquadrar o conflito na fronteira entre a Rússia e a Ucrânia como um ataque levado a cabo pelos ucranianos e os ocidentais contra os russos. Através do Telegram, a porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia, María Zakharova, acusou as “democracias civilizadas” do Ocidente de ignorar a catástrofe humanitária em curso nas regiões de Donetsk e Lugansk e que esteve na origem da evacuação.

“Já repararam no quão abruptamente toda a comunidade ocidental se esqueceu dos direitos humanos? Como de repente se esqueceram das palavras mágicas que lhes permitiam violar o direito internacional e os países soberanos como ‘população civil’, ‘idosos e crianças’, ‘mulheres e meninas’ ou ‘garantir o acesso de organizações humanitárias e jornalistas’, etc?”, escreveu Zakharova no Telegram, acrescentando que o Ocidente “será cúmplice dos crimes contra a humanidade perpetrados pelo regime de Kiev“. Também este sábado, a agência estatal russa RIA Novosti divulgou imagens de um projétil que teria explodido na cidade russa de Rostov — justamente onde estão a ser acolhidos os refugiados de Donetsk e Lugansk. Seria já o segundo projétil a cair em território russo, de acordo com as agências de Moscovo, o que aumentou ainda mais a ideia de que a Rússia estaria a recolher argumentos para atacar a Ucrânia.

O governo ucraniano, por seu turno, apressou-se a responder às acusações. “Refutamos resolutamente todas as acusações de alegadas bombas ucranianas a cair no território russo. A Ucrânia nunca abriu tal fogo. Pedimos uma investigação internacional, imediata e imparcial, sobre os incidentes relatados pelos media russos“, escreveu o ministro dos Negócios Estrangeiros ucraniano, Dmytro Kuleba, no Twitter.

No fim da noite de sábado e nas primeiras horas da madrugada de domingo, terão sido ouvidas múltiplas explosões na cidade de Donetsk, de acordo com o relato da agência Reuters. A origem das explosões não foi clara.

Atenções viradas para Munique

Enquanto na fronteira entre a Rússia e a Ucrânia a tensão militar se agrava para níveis históricos, os principais líderes mundiais estiveram este fim de semana reunidos em Munique, para a Conferência de Segurança anual, em que o tema central foi inevitavelmente a situação no leste europeu. O Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, esteve presente na cimeira — apesar de, no Ocidente, terem surgido fortes dúvidas sobre se Zelensky deveria ou não abandonar o território ucraniano neste momento de grande tensão.

Em Munique, Volodymyr Zelensky procurou convencer os líderes ocidentais de que a situação está por um fio e que “qualquer provocação é muito perigosa” e poderá espoletar a guerra. “Acho que a questão mais complicada é que na Crimeia, no território ocupado temporário de Donbass ao longo da Ucrânia e da Rússia, há 30/35 mil nos territórios de ocupação temporária. Então provocações são, de facto, muito perigosas, se se tiver em consideração este número de tropas. Um bombardeamento, um tiro de canhão pode levar à guerra“, disse Zelensky em Munique.

Zelensky também se opôs à ideia de as sanções contra a Rússia só serem tornadas públicas se e quando Moscovo efetivamente invadir a Ucrânia. “Não precisamos de sanções depois dos bombardeamentos, depois de o nosso país começar a ser atacado ou depois de não termos fronteiras, ou depois de deixarmos de ter economia. Para que é que precisaríamos dessas sanções?”, questionou o Presidente ucraniano.

“Agradecemos qualquer ajuda, mas todos devem entender: não são as contribuições de caridade que a Ucrânia deve pedir (…). Esta é a sua contribuição para a segurança da Europa, onde a Ucrânia é um escudo há oito anos, e do mundo“, disse também Zelensky, discursando perante os líderes mundiais reunidos em Munique. No discurso, o Presidente ucraniano pediu ainda aos países ocidentais um conjunto de “garantias de segurança”, incluindo um calendário “claro e exequível” para a adesão da Ucrânia à NATO — algo que vai diretamente contra a principal exigência russa neste processo, a de que a aliança militar atlântica não se alargue até às fronteiras russas.

Na cidade da Baviera, líderes políticos de todo o mundo multiplicaram-se em apelos à paz, condenações a Moscovo e manifestações de preocupação sobre a situação na fronteira e de esperança na capacidade de o diálogo diplomático conseguir resolver a situação antes de uma escalada militar irreversível.

Os Estados Unidos estiveram representados pela vice-presidente, Kamala Harris, que ameaçou a Rússia com um reforço das forças da NATO e com sanções económicas “severas e rápidas” caso a invasão aconteça. “Não nos limitaremos a medidas económicas. Reforçaremos ainda os nossos aliados da NATO no flanco oriental”, disse Kamala Harris. “Imporemos sanções financeiras de grande alcance, controlos de exportação e apontaremos a quem for cúmplice, ajudar ou instigar uma invasão não provocada.

Kamala Harris acusou ainda a Rússia de estar a aumentar a presença militar junto da fronteira com a Ucrânia ao mesmo tempo que se diz disposta a negociar. “A Rússia continua a dizer-se pronta a negociar, enquanto, ao mesmo tempo, reduz o caminho da diplomacia“, disse a vice-presidente norte-americana.

Kamala Harris ameaça Rússia com mais tropas da NATO e sanções

O chanceler alemão, Olaf Scholz, também interveio na conferência para garantir que qualquer violação das fronteiras ucranianas terá um “preço alto” para a Rússia. “A diplomacia não vai falhar por nossa causa“, disse Scholz. O líder do governo alemão pediu “tanta diplomacia quanto for necessário” para evitar um conflito na Ucrânia, mas insistiu que qualquer tentativa de invasão russa seria “um grave erro”.

Também este sábado, múltiplos governos europeus, incluindo Alemanha, Áustria, França, Reino Unido e até Portugal emitiram recomendações para que os seus cidadãos abandonem a Ucrânia o mais rapidamente possível. “Atendendo ao possível agravamento da situação de segurança no país e eventual suspensão de voos comerciais, aconselhamos os cidadãos portugueses que se encontrem na Ucrânia e não tenham uma razão premente para ficar a que saiam do país enquanto o podem fazer pelas vias normais”, lê-se numa nota publicada no site do Ministério dos Negócios Estrangeiros.

Militares portugueses poderão ser mobilizados

No dia em que as tensões entre a Rússia e a Ucrânia atingiram um ponto máximo, o ministro português da Defesa, João Gomes Cravinho, também presente em Munique, explicou de que modo Portugal poderá ser chamado a envolver-se nos conflitos. “Portugal faz parte da NATO, portanto a nossa primeira preocupação será a solidariedade em relação aos nossos aliados na NATO. Neste caso, muito em particular aqueles que fazem fronteira com a Ucrânia”, disse Gomes Cravinho em entrevista à CNN Portugal a partir de Munique.

“Existe uma força chamada VJTF, que é a força de mais elevada prontidão da NATO, em que os países membros da NATO participam de forma rotativa. Portugal neste momento participa na VJTF, em 2022 estamos na VJTF. Se a VJTF for mobilizada para efeitos de defesa da NATO, naturalmente que Portugal participará”, disse ainda.

O ministro da Defesa português disse também que a possibilidade de adesão da Ucrânia à NATO não está atualmente em cima da mesa. Gomes Cravinho salientou que “a adesão da Ucrânia à NATO foi discutida em 2008”. “Nessa altura, decidiu-se que não havia condições para a NATO aceitar a Ucrânia e desde então o assunto tem ficado exatamente nesse ponto”, disse. “É absolutamente falso que esta crise seja sobre a adesão da Ucrânia à NATO. Essa matéria não está em cima da mesa. Nem aqui em Munique, nem ao longo dos últimos 13, 14 anos se discutiu essa possibilidade.”

Naturalmente, essa é uma matéria da exclusiva decisão da Ucrânia e dos países membros da NATO. Desde 2008 que esse assunto não é discutido”, acrescentou ainda. O ministro português sublinhou também que a tensão entre Rússia e Ucrânia está a ser “o grande tema de discussão” na conferência de Munique. “Há uma grande preocupação em torno da elevadíssima tensão que existe. Em torno do facto de termos uma concentração militar sem precedentes desde o final da Guerra Fria na Europa. E da possibilidade que existe de um qualquer incidente espoletar um conflito militar muito mais alargado”, disse.

O Presidente Zelensky está muitíssimo preocupado em relação àquilo que se passa nas suas fronteiras. Mas ele faz um apelo em duplo sentido. Não apelou a que a NATO aceitasse a Ucrânia como membro. A ideia dele é de que a Ucrânia precisa de garantias de segurança. Não precisa de ter entrando na NATO”, disse Gomes Cravinho, sublinhando que o líder ucraniano fez um “apelo em duplo sentido” à comunidade internacional.

Por um lado, a Ucrânia precisa de “garantias de segurança”; por outro lado, “precisa de ter o apoio da comunidade internacional para a sua economia não sofrer um impacto terrível”.

Gomes Cravinho salientou que o espaço para o diálogo com a Rússia ainda não está esgotado e destacou que é ainda necessário compreender melhor qual “a ideia do Presidente Putin” ao colocar mais de 150 mil soldados nas fronteiras com a Ucrânia, o que representa uma “postura altamente agressiva e intimidaria, com potencial para uma incursão, invasão em grande escala, nas próximas horas, nos próximos dias”.