Uma Bíblia patriótica que custa 60 dólares. Misturando o sagrado e o profano, o candidato às eleições presidenciais norte-americanas Donald Trump lançou, em março deste ano, uma edição especial do livro mais importante para o cristianismo, já em plena campanha eleitoral. O republicano, que ganhou até agosto 300 mil dólares com esta iniciativa, procurava cativar os cristãos e chegar ainda mais perto deles. O ex-Presidente já se assumiu cristão não denominacional, em que não existe um vínculo específico a nenhum dos ramos do cristianismo. Raramente fala em público sobre a sua religião, mas é entre os cristãos que estão os seus apoiantes mais ferrenhos.
Por sua vez, Kamala Harris pertence à terceira Igreja Evangélica Baptista de São Francisco. Sendo a sua mãe de origem indiana, a democrata também teve contacto com o hinduísmo, mas decidiu seguir as pisadas do pai e optar por um ramo do protestantismo ligado às comunidades negras do estado da Califórnia. Tal como o seu adversário, a candidata pouco comenta a sua religião e a forma como vive a fé. Mais vocal é o seu marido, Doug Emhoff, que é judeu; enquanto segundo cavalheiro, tem-se empenhado na luta contra o antissemitismo.
Os Estados Unidos da América são dos países mais religiosos do Ocidente. Não por acaso, a 1ª emenda à Constituição estabelece precisamente a liberdade religiosa, mas isso não se traduz numa atitude de laicidade assumida. Pelo contrário, é um país onde o juramento de bandeira feito diaramente nas escolas inclui a expressão “Uma nação, sob Deus” e onde se jura sobre a Bíblia nos tribunais.
Perante este cenário, não é de admirar que praticamente todos os candidatos a Presidente nos EUA façam questão de divulgar a sua fé publicamente e usá-la durante a campanha. Por exemplo, o atual chefe de Estado, Joe Biden, fez questão de realçar o seu catolicismo, o que o ajudou a ganhar votos em alguns estados mais conservadores. Contudo, nestas eleições, poucos sentem que os dois candidatos à Casa Branca estejam conectados com a sua fé. Numa sondagem publicada pela Associated Press, apenas 14% dos norte-americanos veem os dois candidatos como “muito cristãos”.
Em declarações ao Observador, Brian Newman, professor de Ciência Polícia na Universidade Cristã de Pepperdine na Califórnia, concorda que “a religião não desempenhou um papel muito visível nas campanhas” de Donald Trump e Kamala Harris. Porém, o especialista frisa que as “identidades e as práticas religiosas vão fortemente dividir os eleitores republicanos e democratas outra vez em 2024”. Por causa disso, o docente antecipa “que a religião tenha uma grande influência nestas eleições”, mesmo que os candidatos não falem abertamente sobre o assunto.
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Trump domina entre os evangélicos brancos, Kamala entre os ateus e agnósticos
É como se fosse uma sobreposição. Os republicanos dominam no chamada Bible Belt [o “Cinturão da Bíblia”, em português], no sudeste dos Estados Unidos, a que pertencem estados como o Alabama, o Arkansas ou o Mississippi. É a região norte-americana onde o protestantismo, nomeadamente o evangelismo, exerce uma maior influência na vida cultural e social, ocupando um papel central em várias comunidades. Por conseguinte, a população destes estados costuma ser mais conservadora e vê-se representada no Partido Republicano, tradicionalmente contra medidas como o aborto ou o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
É esperado que Donald Trump tenha um excelente resultado no Bible Belt e em outras regiões dos Estados Unidos em que existe um grande número de fiéis protestantes. “São generalizações, mas as pessoas que vão à missa ou a outros eventos religiosos com alguma regularidade provavelmente vão votar em Trump. Cerca de 80 a 85% das pessoas que foram à missa todas as semanas votaram nos republicanos nas últimas eleições”, explica Brian Newman.
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— Nicholas Sa’id ???????????????? (@eggsovereasy746) December 21, 2023
A população mais religiosa vota, assim, em candidatos mais conservadores e que procuram uma maior influência da religião na política. Uma sondagem do Pew Research de junho de 2024 revela que “maioria dos apoiantes de Trump” — cerca de 69% dos inquiridos — “gostaria que a Bíblia tivesse pelo menos alguma influência nas leis dos Estados Unidos, incluindo 36% que disse que deveria ter bastante influência. Para além disso, 45% dos apoiantes de Trump referem que, quando a Bíblia e a vontade dos homens entram em conflito, a Bíblia deve ter uma maior influência do que as leis dos EUA”.
Entre as populações mais conservadoras estão os evangélicos brancos, o que corresponde a 14% da população norte-americana. São protestantes, mas pertencem a distintas igrejas espalhadas pelos Estados Unidos — como os congregacionalistas ou os baptistas. “A grande maioria, provavelmente cerca de 80%, é muito provável que vote em Trump, tal como fizeram nas últimas eleições”, constata Brian Newman
Apesar de todas as polémicas em que Donald Trump está envolvido — como as condenações relacionadas com o pagamento à atriz pornográfica Stormy Daniels — os evangélicos brancos, bastante conservadores, continuam do seu lado. O pastor de uma Igreja Baptista em Dallas e apoiante do candidato republicano, Robert Jeffress, explicou à Associated Press que o magnata adota “políticas a favor da Bíblia”, ao contrário dos democratas: “De várias formas, os cristãos sentem que estão numa guerra cultural existencial entre a bondade e a maldade e eles querem um guerreiro como Donald Trump que possa vencer”. O exemplo mais frequentemente apontado por estes eleitores foi a nomeação de juízes conservadores para o Supremo Tribunal, que são agora uma maioria neste órgão.
Para muitos evangélicos, prevalece a imagem de que o candidato republicano é um “guerreiro” e alguém que está disposto a fazer sacrifícios pelo bem comum. Robert Franklin, professor de teologia na Universidade de Candler, na Geórgia, sublinha igualmente à Associated Press que “quanto mais Trump se queixa de perseguições”, mais o “apoiam”. A narrativa existente é que o magnata até pode aparentar ser um “mau tipo” e estar a ser perseguido, mas consegue “fazer coisas boas” — e é visto como um “herói”. “Sob esta narrativa, Trump não faz nada errado. O seu errado está certo.”
Contudo, nem todos os evangélicos apoiam Donald Trump. Se entre a população branca o republicano é muitas vezes encarado como um “herói”, não é exatamente assim entre os evangélicos latinos, asiáticos e negros. A mensagem anti-imigração e mais conservadora socialmente não é bem vista por muitos. “Cerca de 60% dos evangélicos que não são brancos votam nos democratas”, ilustra Brian Newman. Por exemplo, a democrata Kamala Harris pertence a uma igreja baptista negra, por influência do pai.
Ainda assim, a população que mais votará em Kamala Harris será, de acordo com Brian Newman, composta por “ateus e agnósticos” — cerca de 80% destes eleitores optará pela democrata no boletim de voto. Mesmo entre pessoas que dizem “não ter religião”, a vice-presidente deverá obter cerca de 65% dos votos. Este setor populacional costuma ser mais progressista, incompatibilizando-se com o conservadorismo social do Partido Republicano.
O número de ateus e agnósticos nos Estados Unidos está a aumentar consideravelmente — o que acaba por se tornar uma vantagem eleitoral para Kamala Harris. Em 2021, segundo uma sondagem do Pew Reserach, cerca de 29% dos norte-americanos diziam que não tinham religião, face a 16% em 2007. Não obstante, a maioria (63%) ainda se assumia como cristã, independentemente do ramo. Assim como acontece entre republicanos e evangélicos, nos estados em que existe um maior número de não-religiosos a democrata deverá vencer facilmente.
É o caso da região da Nova Inglaterra, em estados como o Vermont (de onde é oriundo o senador progressista Bernie Sanders), o Massachusetts e o Maine, onde mais norte-americanos assumem-se como ateus. Kamala Harris não deverá ter quaisquer dificuldades em obter uma vantagem confortável face ao adversário no nordeste dos Estados Unidos.
Mais renhido é o que acontece entre protestantes considerados tradicionais — como os luteranos ou os presbiterianos (oriundos dos calvinistas), muitos deles mais progressistas do que os evangélicos. “Provavelmente será 50%-50% entre Trump e Harris, pelo menos é o que tem acontecido nas eleições presidenciais”, diz Brian Newman. A maioria destes protestantes vivem em estados no norte, como o Minnesota (onde é governador Tim Walz, o candidato a vice-presidente democrata), o Dakota do Norte e do Sul e o Iowa.
Como expõe Brian Newman, o candidato a vice-presidente democrata faz parte de uma “igreja de tradição luterana”, ainda que “raramente fale sobre isso”. Em concreto, Tim Walz pertence à Igreja Pilgrim do Minnesota. Já o seu adversário na corrida à vice-presidência, JD Vance, tem uma história conturbada relativamente à sua fé. Cresceu num meio protestante, tornou-se ateu durante a faculdade e, em 2019, converteu-se ao catolicismo. “Fui batizado e recebi a minha primeira comunhão”, escreveu num longo artigo sobre religião na revista The Lamp, onde cita como uma das maiores influências na sua conversão o magnata Peter Thiel.
Em termos concretos, entre os católicos, a situação também tende a ser dividida, mas com vantagem para Donald Trump, que escolheu um católico para a vice-presidência. Na ótica de Brian Newman, JD Vance é aquele que mais aborda a sua fé, mas nunca a torna no centro da campanha: “Às vezes fala sobre isso, mas nunca teve uma discussão explícita sobre a sua fé. Nunca fez disso um alicerce da sua carreira política ou da retórica na campanha, pelo menos da mesma força que Mike Pence fez”. O ex-vice-presidente (que entrou em rota de colisão com Donald Trump) cresceu como católico e depois tornou-se evangélico.
No seio dos católicos, existe uma grande diferença. “Cerca de 60% dos católicos brancos têm vindo a votar nos republicanos”, sublinha Brian Newman. A Igreja Católica norte-americana tem até protagonizado o papel de oposição ao Papa Francisco em várias matérias, assumindo uma das correntes mais radicalizadas dentro do catolicismo atual. O biógrafo de Francisco Austin Ivereigh chegou mesmo a afirmar em entrevista ao Observador, em 2021, que os católicos norte-americanos “tradicionalistas, ou rad-trads [do inglês radical traditionalism, ou tradicionalismo radical]” estão de tal forma radicalizados que assumem várias bandeiras das guerras culturais — “a invasão do Capitólio foi uma ilustração brilhante disso”, disse à altura.
Por isso mesmo, a maioria dos católicos norte-americanos estão alinhados com a mensagem mais conservadora de Donald Trump e JD Vance — este último que tem como bandeiras eleitorais o aumento da taxa de natalidade e as críticas aos casais que não têm filhos. Porém, como destaca o professor de Ciência Política na Universidade Cristã de Pepperdine, os “católicos não brancos — muitos deles latinos — votaram nos democratas nas eleições mais recentes”.
Enquanto defensora do direito ao aborto, Kamala Harris é olhada com desconfiança por muitos católicos. Ainda assim, muitos latinos — a maioria católicos e muitos deles vivendo perto da fronteira com o México — não conseguem alinhar-se com o discurso anti-imigração dos republicanos.
Para os católicos, chegou uma importante mensagem em meados de setembro. O Papa Francisco já se pronunciou sobre estas eleições, enviando uma mensagem para os cerca de 20% eleitores norte-americanos crentes no catolicismo. Aconselhou-os a votar na opção “menos má” e deixou críticas aos dois candidatos: “Ambos são contra a vida, seja expulsando migrantes, seja matando bebés”.
Já em duas minorias religiosas, Kamala Harris obtém uma importante vantagem. Entre os judeus, 2,4% da população norte-americana, os democratas têm sido a opção de voto “de 65%” nos últimos atos eleitorais, aponta Brian Newman. “Cerca de 80% de muçulmanos” também “têm votado no Partido Democrata”, acrescenta o docente universitário. Já os mórmones, 1,2% da população, são tradicionalmente republicanos, mas cada vez mais apoiam os democratas.
Como a religião pode influenciar as eleições presidenciais de 2024
Nestas eleições presidenciais, a maneira como as diferentes religiões votam deverá manter-se mais ou menos a mesma. “Não vejo nada que possa radicalmente alterar os padrões que temos visto nas últimas eleições”, sinaliza Brian Newman.
Isso não significa que os candidatos não tentem cativar algum eleitorado que sabem que à partida é difícil de persuadir. Por exemplo, Kamala Harris tem tentado apelar aos evangélicos e aos católicos, assim como aos mórmones. Para este último grupo, o apoio de Joe Biden tem sido fundamental. Num evento no início de setembro, o Presidente norte-americano destacou a “bússola moral de santa” da democrata.
Já Donald Trump, também tem tentado angariar apoio dos católicos, tendo lançado uma “coligação” que reúne vários apoiantes. Além disso, uma ideia que o republicano já repetiu várias vezes é que Kamala Harris “odeia Israel” e não merece o voto dos judeus. “Todos os judeus que adorem ser judeus e adorem Israel são tolos se votarem num democrata. [Se o fizerem], deviam fazer um exame à cabeça”, chegou a atirar.
No entanto, estes esforços dificilmente terão efeitos práticos. Assim sendo, Donald Trump e Kamala Harris procuram igualmente mobilizar as suas bases eleitorais, persuadindo-as a irem votar no próximo dia 5 de novembro. A tarefa é particularmente mais difícil para a democrata; como escreve Michael O. Emerson, especialista em religião e políticas públicas no think tank Baker Institute, “os cristãos praticantes”, em particular os evangélicos, apresentam “muito mais probabilidade de votar do que os restantes eleitores”.
Em termos totais, os cristãos praticantes terão, deste modo, uma “forte influência” nestas eleições presidenciais de Donald Trump, acredita Michael O. Emerson. Mas também é certo que nem todos simpatizam com o republicano e que Kamala Harris poderá mobilizar desde protestantes tradicionais a católicos.
Ainda assim, por conta do sistema de colégio eleitoral e da polarização entre as duas candidaturas, a situação está definida em grande parte dos estados nestas eleições presidenciais. Como ficou demonstrado em 2020, existem sete incógnitas nestas eleições e que são designados de swing states: o Nevada, o Arizona, o Wisconsin, o Michigan, a Pensilvânia, a Geórgia e a Carolina do Norte. Foi apenas neste último que Donald Trump conseguiu vencer há quatro anos, ao passo que, em 2016, a democrata Hillary Clinton ganhou apenas no Nevada.
Em 2024, as dinâmicas religiosas destes sete estados poderão ser fundamentais. Segundo uma análise da Sky News, o Wisconsin, o Michigan, a Pensilvânia e a Geórgia tornaram-se menos religiosos desde há quatro anos, enquanto a Carolina do Norte, o Nevada e o Arizona mais. Por esta ordem de ideias, os democratas — como têm mais sucesso entre os ateus e agnósticos — têm vantagem em quatro estados, contra três para os republicanos.
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— Epic Maps ????️ (@Locati0ns) November 29, 2021
As dinâmicas regionais influenciam também a forma como os dois partidos podem vencer determinados estados. Segundo o Politico, na antiga zona industrial designada Rust Belt (o “Cinturão do Aço”, em que se incluem o Michigan, a Pensilvânia e partes do Wisconsin), a população está a mudar-se essencialmente para os subúrbios de grandes cidades, como Milwaukee, Detroit ou Filadélfia, o que, em muitos casos, diminui a sua ligação com a religião.
Em contrapartida, num tradicional swing state como a Flórida, o estabelecimento de imigrantes latinos, sobretudo de origem cubana, na região está a ser prejudicial para os democratas. É uma comunidade bastante católica com uma propensão para o conservadorismo — e que, por isso, tende a favorecer os republicanos.
Num país cuja constituição estabelece na primeira emenda a liberdade religiosa, a religião continua a ser um importante fator para muitos no momento de preencher o boletim de voto. Mesmo que Donald Trump e Kamala Harris sejam discretos na forma como vivem a fé, o tópico não está esquecido para a maioria dos eleitores norte-americanos.