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Uvalde é o nome mais recente a ficar marcado na memória coletiva norte-americana como palco de um tiroteio letal. Esta terça-feira, Salvador Ramos disparou sobre a avó e depois dirigiu-se a uma escola primária no estado do Texas, onde matou 19 crianças e duas professoras. É o atentado com armas mais mortífero nos EUA desde o da escola de Sandy Hook (Connecticut), onde em 2012 Adam Lanza tirou a vida a 28 pessoas, a maioria também crianças.
O caso provocou comoção nacional, acentuada pelo facto de as vítimas serem menores, mas está longe de ser caso isolado. Só neste mês, é o quinto atentado com armas nos Estados Unidos e o segundo mais mediatizado, depois de um homem ter matado 10 pessoas num supermercado em Buffalo.
O Presidente Joe Biden deixou um apelo emocionado no rescaldo do ataque: “Este tipo de tiroteios em massa não acontecem com a frequência que acontecem nos Estados Unidos. Porquê? Porque é que estamos dispostos a viver com essa carnificina? Porque é que continuamos a deixar isto acontecer?”, questionou.
No Congresso, repetem-se as declarações sobre se devem ser aplicadas novas medidas para lidar com este problema. Mas por que razão são os Estados Unidos palco de um fenómeno destes? E por que razão o poder político não parece conseguir travá-lo? O que divide apoiantes e detratores de maior controlo no acesso a armas no país? E o que é a tal 2ª Emenda? O Observador responde a estas e outras perguntas.
Ouça aqui o episódio de “A História do Dia” sobre o acesso às armas nos EUA.
Um maior controlo das armas poderia impedir mais massacres nos EUA?
O que é a 2ª Emenda e por que razão são as armas tão populares nos Estados Unidos?
A 2ª Emenda é o segundo artigo da Declaração dos Direitos dos EUA (Bill of Rights), o documento de emendas à Constituição norte-americana, texto fundamental do país. Em concreto, diz o seguinte: “Sendo necessária uma milícia bem regulamentada para a segurança de um Estado livre, o direito do povo de manter e transportar consigo armas não deve ser violado.”
Aprovada em 1791 com o objetivo de assegurar que a população pode derrubar um governo tirânico através da força das armas, a 2ª Emenda é frequentemente invocada pelos defensores do direito ao porte de armas como argumento para impedir mais restrições a esse direito. É também reveladora da influência cultural do uso de armas nos Estados Unidos, onde cerca de um terço da população diz ter armas pessoais. A principal razão invocada não é, porém, a garantia da “segurança de um Estado livre”, mas sim a proteção pessoal, de acordo com dados do Pew Research Center. Há ainda muitos norte-americanos que dizem ter armas para ir à caça, praticar desporto ou por ser uma herança de família.
O direito ao porte de armas nos Estados Unidos está intrinsecamente ligado às ideias de individualismo e liberdade e é visto por muitos como um direito inalienável. O ativista pró-armas Stephen Gutowski resumiu numa entrevista ao Vox, em março, o que chama de “relação especial [do país] com armas de fogo”: “Vem de uma tradição americana das armas, de uma perspetiva de individualismo áspero e de como a posse de armas de fogo se relaciona com isso”, afirmou, acrescentando que assenta sobretudo na ideia de “ser capaz de se proteger a si próprio e aos seus entes queridos”.
Os Estados Unidos são o país do mundo onde mais civis possuem armas: 46% dos civis armados em todo o mundo estão nos Estados Unidos, de acordo com dados do Small Arms Survey. É também o país onde há mais armas per capita: são cerca de 400 milhões de armas para 330 milhões de pessoas.
O que defendem os que querem mais restrições ao porte de armas nos EUA?
Há diferentes posições, mas em comum a maioria destes norte-americanos tem o facto de considerarem que essa é a única forma de reduzir o número de tiroteios em massa no país. Desde o ataque à escola de Sandy Hook, em 2012, houve mais de 3.500 tiroteios deste género. Só este ano já houve pelo menos 39 ataques com armas em escolas e universidades. Nos últimos anos, houve ataques do género em vários tipos de locais e eventos: igrejas como a de Charleston (2015), uma discoteca gay em Orlando (2016), escolas como o liceu de Parkland (2018) e até um supermercado (El Paso, 2019).
As ideias dos que defendem uma maior restrição, como Joe Biden, baseiam-se no pressuposto de que quanto maior for a circulação de armas, maior é o número de homicídios cometidos com elas. Estatisticamente, parece verdade: para além de número um no ranking mundial de armas per capita, os EUA são também o país onde há mais mortes por armas de fogo (cerca de 10 mortes por cada 100 mil habitantes). No extremo oposto, países como o Japão, com algumas das leis de porte de arma mais restritivas do mundo, a média é de menos de dez mortes por ano com armas de fogo em todo o país (população: 125 milhões).
Vários estudos, como um da Universidade de Harvard, concluem que “onde há mais armas, tanto homens como mulheres estão em maior risco de serem vítimas de homicídios”. A mesma tendência acontece com os suicídios, segundo um estudo publicado no American Journal of Public Health.
Dados empíricos apontam no mesmo sentido: quando o estado do Connecticut apertou as restrições, as taxas de morte por armas de fogo desceu 40%; quando o Missouri relaxou as regras, a mesma taxa aumentou 25%.
O que dizem os que são contra mais restrições ao porte de armas?
O primeiro argumento é o de que haver mais homicídios com armas em locais onde há mais armas é um nexo de correlação, mas não necessariamente de causalidade. Para além disso, ao longo dos anos os EUA têm aprovado mais leis restritivas, mas nem por isso o número de ataques com armas tem diminuído.
Também deste lado há estudos para apontar. Dois investigadores, por exemplo, concluíram que na larga maioria dos casos de tiroteios em massa (87%), os atiradores compraram as armas de forma legal, cumprindo as restrições em vigor. E nem apertando a malha se conclui necessariamente que o número de casos diminua: muitos dos estados que têm leis mais restritivas à compra e porte de armas, como o Connecticut, o Maryland e a Califórnia, são precisamente aqueles que têm os maiores índices per capita deste tipo de crimes, de acordo com o mesmo estudo.
A isso soma-se o argumento de que, mesmo limitando a compra de novas armas, isso não retira de circulação os milhões que já existem — mais de 5 milhões de metralhadoras do tipo AR-15, por exemplo.
Além de tudo o mais, para muitos há a questão ideológica — qualquer tentativa de restrição é vista como uma violação do princípio constitucional da 2ª Emenda, que encara a compra e porte de armas como um direito inviolável dos cidadãos.
Há mais pessoas nos Estados Unidos a comprar armas neste momento?
Sim. A tendência é habitualmente flutuante, com o número de compras a disparar após atentados como este de Uvalde por receios de parte da população de que sejam impostas medidas mais restritivas como consequência. Mas a pandemia de Covid-19, aliada a um ano de 2020 marcado por fortes protestos nas ruas americanas, fez disparar a compra de armas por parte dos cidadãos.
Segundo estimativas da Small Arms Analytics and Forecasting, que se baseia no número de background checks (verificações prévias à compra de armas a que os compradores são sujeitos pelo Estado para excluir cadastro e doença mental) feitos num só ano, em 2021 foram compradas 19,9 milhões de armas nos Estados Unidos. Embora seja uma queda de 12,5% face ao ano anterior (quase 23 milhões), 2020 e 2021 foram os anos em que se terão vendido mais armas em toda a História dos EUA. Como termo de comparação, em 2019 foram vendidas cerca de 14 milhões.
A tendência atual é de facto diferente do padrão anterior. Se antes quem se precipitava a comprar armas após um ataque eram sobretudo consumidores que já possuíam armas, em 2021 quase metade (40%) das armas vendidas foram adquiridas por pessoas que nunca tinham comprado uma arma.
No passado, os EUA já tiveram em vigor uma lei nacional que proibia a venda de armas semi-automáticas e outro tipo de armamento de maior capacidade. Porém, a lei expirou em 2004 e não foi renovada pelo Congresso. Atualmente, as leis federais apenas exigem a um potencial comprador que passe num chamado background check, em que as autoridades confirmam se foi ou não condenado por crimes como homicídio ou violência doméstica e se tem um historial de doença mental. Para além disso, há ainda os chamados “buracos” na lei: em muitos estados é possível comprar uma arma sem ser sujeito a verificações prévias se esta for comprada numa feira de armas, online ou diretamente a outro indivíduo.
Alguns estados têm leis muito mais restritivas. É o caso do Massachusetts, onde os compradores são obrigados a preencher uma série de requisitos, cumprir uma formação e registar oficialmente a sua arma. A maioria dos estados, porém, não exige a maioria destes passos.
A maioria da opinião pública americana quer mais ou menos restrições às armas?
Os estudos de opinião mostram que a maioria quer mais restrições. Medidas como o reforço dos background checks atualmente em vigor são apoiados por mais de 80% da população, por exemplo. Contudo, quando chamados a votar em medidas para reforçar estas verificações prévias em diferentes estados, a medida não reuniu o mesmo consenso: no Nevada foi aprovada por menos de um ponto percentual de diferença e no Maine foi chumbada.
Para além disso, todas as outras medidas discutidas tendem a não reunir consenso, com os eleitores a dividirem-se por linhas partidárias claras. Dados do Pew Research Center mostram que ideias como a criação de uma base de dados nacional sobre armas e a proibição de venda de determinados modelos contam com o apoio de 80% dos eleitores do Partido Democrata, mas são rejeitadas pela maioria dos republicanos. Por outro lado, 66% dos eleitores do Partido Republicano defendem que seja permitido aos professores usarem armas nas escolas como medida de defesa, mas apenas 24% dos democratas apoiam essa proposta.
Como se explica o impasse político sobre esta matéria?
Explica-se sobretudo pelo facto de democratas e republicanos não concordarem no tipo de medidas que devem ser aplicadas para lidar com este problema.
Em março, a Câmara dos Representantes (câmara baixa do Congresso) aprovou duas propostas de lei neste tema: o “Charleston loophole”, que aumenta o período de avaliação das verificações prévias para 20 dias, e o “loophole das feiras”, que passa a exigir background checks quando a arma é comprada numa feira. O problema é que as propostas de lei foram aprovadas na câmara baixa, onde a maioria é democrata, mas provavelmente chumbarão no Senado, onde não há neste momento maioria de nenhum dos partidos. Soma-se a isso o facto de alguns democratas se oporem às propostas e seria necessário que dez senadores republicanos votassem a favor para esta poder ser aprovada, o que é altamente improvável. Por essa razão, a medida não avançou ainda para a câmara alta do Congresso.
Agora, perante o massacre de Urvdale, vários democratas no Congresso voltaram a fazer apelos para que estas e outras medidas semelhantes sejam postas em prática. Do lado republicano, porém, muitos deixaram claro que não concordam com as propostas: foi o caso do senador Ted Cruz, que acusou os democratas de estarem a “tentar restringir direitos constitucionais de cidadãos cumpridores da lei” — uma referência à 2ª Emenda. Cruz voltou a sugerir que fossem antes aplicadas medidas como o armamento de professores para lidar com estes tiroteios.
As leis não são aprovadas devido ao “lóbi” pró-armas nos Estados Unidos?
Como se explica que muitos republicanos continuem a opor-se a medidas como o reforço das verificações prévias, apesar de as sondagens revelarem que a maioria dos americanos são a favor dessas medidas? Há várias explicações possíveis. Uma é que, de acordo com o Pew Research Center, os ativistas pró-armas têm tendência a ser politicamente mais ativos neste tema do que aqueles que são contra, mobilizando-se em grupos de cidadãos, escrevendo cartas a congressistas ou doando dinheiro a políticos que são contra as restrições.
Um dos grupos mais mobilizados nesse sentido é a National Rifle Association (NRA), grupo de lóbi que dá donativos a políticos contra a restrições ao direito de compra e posse de armas, classificando-os inclusivamente consoante as suas posições no tema. Segundo dados do grupo ativista anti-armas Brady Campaign, 19 senadores ou ex-senadores republicanos já receberam pelo menos um milhão de dólares cada um da NRA ao longo das suas carreiras políticas.
É por causa deste fenómeno que o Presidente Joe Biden referiu no seu discurso recente que há a necessidade de combater “o lóbi das armas”. A NRA, porém, já não tem a mesma força política de outrora. Envolvida em escândalos financeiros e com a liderança de Wayne LaPierre manchada, tem vindo a perder membros e receitas ao longo dos últimos anos.
O que não significa, porém, que as suas ideias tenham perdido influência. Nos últimos anos têm surgido muitos outros grupos de defesa de porte de armas, como o Gun Owners of America e a National Association for Gun Rights. Até grupos ligados a eleitorado tradicionalmente mais próximo do Partido Democrata, como as minorias, começam a criar os seus próprios grupos de lóbi pró-armas, como a National African American Gun Association e a Pink Pistols (LGBT).
As táticas e discurso de muitos destes grupo são por vezes mais radicais do que as adotadas habitualmente pela NRA. Isso tem muitas vezes o efeito de influenciar alguns políticos, mesmo que as suas ideias não correspondam às da maioria da população. Como o professor da Universidade do Texas Jim Henson explicou à Harper’s Magazine, estas novas organizações são “mobilizadas e apoiam candidatos nas eleições primárias, tendo-se tornado mais e mais entranhadas no Partido Republicano”.
Após este ataque, pode haver alguma mudança de fundo nos Estados Unidos?
Tendo em conta o panorama político atual e o facto de haver eleições intercalares para o Congresso ainda este ano, é pouco provável. Pode, porém, haver algum consenso em torno de algumas medidas específicas, como é o caso da proposta para criar uma “red flag law” (lei da bandeira vermelha, em tradução livre) a nível federal.
As red flag laws são leis que já existem em alguns estados e que permitem que autoridades policiais ou familiares de um indivíduo possam pedir com urgência a um tribunal que limite o acesso a armas de uma pessoa, por haver risco de magoar-se a si próprio ou a outros. A medida existe em 17 estados atualmente.
A ideia não é nova e tem sido discutida ao longo dos últimos anos, tendo havido sinais positivos por parte de congressistas de ambos os partidos. Foi o caso do atual líder dos republicanos no Senado, Mitch McConnell, que se mostrou favorável à ideia ainda em 2019 e de outros nomes de peso como o senador Lindsey Graham. Graham assegurou à altura que o Presidente em funções, Donald Trump, “parecia apoiar a ideia”. Agora, porém, no rescaldo do ataque na escola primária do Texas, ainda nenhum republicano falou a favor de esta ou outra medida.
No Senado, porém, ambos os partidos estão atualmente envolvidos em negociações para tentar chegar a um consenso entre democratas e republicanos para avançar com nova legislação no tema das armas. O mais certo, porém, é que nenhuma das medidas discutidas vá tão longe como as que outros países adotaram no passado para tentar resolver este problema.
Na Austrália, por exemplo, o ataque em Port Arthur (1996) levou o governo a reformular a lei das armas e a impor medidas como a proibição de venda de armas automáticas e semi-automáticas, o registo nacional obrigatório e um programa de compra de armas a cidadãos por parte do Estado. Nos Estados Unidos, quaisquer medidas deste tipo contariam certamente com forte oposição daqueles que as encararam como uma limitação dos seus direitos constitucionais.