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Tentativa de golpe foi criticada pela Rússia, que sugeriu que não deve haver "interferência" de outros países

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Tentativa de golpe foi criticada pela Rússia, que sugeriu que não deve haver "interferência" de outros países

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Explicador. Três horas na rua, uma acusação de "encomenda" e uma cena dramática no Palácio: o que aconteceu no golpe falhado da Bolívia?

Soldados saíram à rua e até entraram no palácio presidencial, mas por pouco tempo. General que liderou tentativa garantiu que ação foi combinada com Presidente, mas pode ser condenado a 20 anos.

Bastaram três horas para que a crise na Bolívia chegasse a todos os noticiários internacionais, graças a uma aparente tentativa de golpe de Estado que gerou perplexidade dentro e fora do país. Nesse espaço de três horas horas, tropas invadiram o palácio presidencial, rebentando um dos seus portões; o Presidente, Luis Arce, demoveu os revoltosos, numa cena dramática e transmitida em vídeo a partir do palácio; e o militar que supostamente liderou o golpe acabou preso e alvo de uma investigação, enquanto alegava que tudo não passou de um esquema combinado com Arce para aumentar a “popularidade” do Presidente no país.

Para já, a situação na Bolívia parece estar controlada. Mas como muitos analistas apontam, a história dificilmente ficará por aqui: a tentativa de golpe acontece no seguimento de uma escalada de tensão no país, que atravessa dificuldades económicas graves e a “pior recessão em 40 anos”. O Presidente tenta agora unir os bolivianos, enquanto pede que se mantenham firmes na luta pela democracia.

Como é que a revolta começou?

Tudo começou na tarde desta quarta-feira, na capital da Bolívia, La Paz (cujo fuso horário tem um atraso de quatro horas em relação a Portugal continental), quando centenas de soldados e tanques do exército boliviano se posicionaram na praça Murillo, onde se encontram vários edifícios do Governo, incluindo o palácio presidencial. Não demorou até que os soldados invadissem o palácio, com os tanques a arrombarem um dos portões do palácio.

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O primeiro aviso do Governo veio através de uma publicação do presidente, Luis “Lucho” Arce, que na rede social X denunciou o que descreveu como “mobilizações irregulares do exército boliviano”, avisando que “a democracia deve ser respeitada”.

Antes de entrar no edifício do governo, o comandante geral do exército, Juan José Zúñiga, prometeu aos jornalistas que já estavam presentes na praça que “seguramente em breve haverá um novo governo; o nosso estado, o nosso país não pode continuar assim”, cita a Associated Press. Depois de entrar, teve um confronto com Luis Arce nos corredores do palácio, registado em vídeo.

Nessa conversa, e com os ânimos exaltados e dezenas de pessoas a rodear os dois, Arce levanta a voz a Zúñiga e declara: “Eu sou o seu comandante e ordeno-lhe que retiro os seus soldados, e não vou permitir esta insubordinação”.

Numa declaração em vídeo, gravada também no palácio, Arce dirigiu-se à população: “Não podemos permitir, mais uma vez, que tentativas de golpe dominem a vida dos bolivianos”. A televisão estatal ainda chegou a mostrar dois tanques e alguns militares à porta do palácio enquanto a cena decorria, mas as tropas não demoraram a retirar-se, enquanto apoiantes de Arce enchiam a praça Murillo com bandeiras vermelhas, verdes e amarelas, das cores da Bolívia.

Uma “aventura militar” iniciada e terminada em três horas, como resume hoje a capa do jornal Correo del Sur.

Qual foi a reação do Governo?

Houve várias figuras de peso do Governo que se apressaram a pronunciar-se sobre o ocorrido, criticando os militares envolvidos na tentativa de golpe. Um dos primeiros foi o ministro da Presidência, Eduardo del Castillo, que veio, em conferência de imprensa, acusar o “grupo” de revoltosos de querer “derrubar uma autoridade democraticamente eleita, assegurando que Zúniga teria a intenção de “tomar o poder”.

Durante a mesma declaração, o governante adiantou que no decorrer da tensão nas ruas que levam à Praça Murillo houve duas pessoas feridas e levadas para o hospital.

Já com a praça cheia de apoiantes, vários elementos do Executivo deslocaram-se à varanda presidencial para saudar a população. Foi a partir dali que o vice-presidente, David Choquehuanca, anunciou que “o povo da Bolívia nunca mais permitirá golpes de Estado”. E foi também ali que o presidente, Luis Arce, deixou um grande “agradecimento” ao povo da Bolívia — “longa vida à democracia!”, antes de os apoiantes começarem a cantar o hino do país.

A Associated Press conta também que Arce reagiu ao que disse ser um “dia atípico na vida de um país que quer a democracia” atacando as tropas que “mancham o seu uniforme e atacam a Constituição”. “Repelimos a atitude de más tropas que infelizmente repetem a História, tentando levar a cabo um golpe, quando o povo boliviano sempre foi democrático”.

Arce não demorou a tomar medidas relativamente às Forças Armadas da Bolívia, anunciando pouco depois remodelações nas chefias do exército, da marinha e da força aérea. Foi já o novo chefe do exército, José Wilson Sánchez, que ordenou que as tropas voltassem para trás, argumentando que ninguém desejaria “ver as imagens” que se estavam a registar nas ruas, enquanto a polícia de choque colocava baias protetoras à volta do palácio e da praça.

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Zúñiga foi detido e pode ser condenado a pena de 15 a 20 anos de prisão

Anadolu via Getty Images

Quem liderou o golpe? E quais as consequências?

O homem que está a ser apontado como o líder do golpe é Zúñiga, que na noite de quarta-feira foi detido, assim como o antigo vice-almirante da marinha Juan Arnez Salvador. Ambos foram dispensados das Forças Armadas por Luis Arce.

Zúñiga ainda disse aos jornalistas que estava a tentar “restaurar a democracia” e “ouvir o grito da população”, “porque há muitos anos que uma elite tomou o controlo do país”. O general acusou ainda os políticos de “destruírem” a Bolívia e deixarem o país “em crise”, garantindo que a intenção dos militares seria “fazer da Bolívia uma verdadeira democracia.

O procurador-geral da Bolívia já anunciou a abertura de uma investigação que poderá levar a que Zúñiga seja condenado com a pena máxima, 15 a 20 anos de prisão, por “atacar a democracia e a Constituição”.

Zúñiga já tinha feito na quinta-feira comentários “provocadores”, como escreve a BBC, sobre o antigo presidente Evo Morales, prometendo prendê-lo se voltasse a concorrer às eleições presidenciais em 2025. Morales veio entretanto condenar o golpe, depois de em 2019 ter sido retirado do poder (e enviado para o exílio) por chefias militares que o acusaram de manipular o resultado das eleições presidenciais desse ano, depois de concorrer a um quarto mandato contornando a Constituição do país.

Houve uma acusação de “encomenda”?

Sim, e partiu do próprio Zúñiga. Aos jornalistas, antes de ser detido, o militar garantiu que o presidente Arce lhe disse o seguinte: “A situação é muito difícil, muito complicado. É preciso preparar algo para aumentar a minha popularidade“. Ainda segundo a versão de Zúñiga, o militar perguntou então ao presidente se deveria “trazer os tanques para as ruas”, ao que este lhe teria respondido: “Trá-los para fora”. “Então, no domingo à noite, os blindados começaram a sair”, contou.

O Ministro da Justiça, Iván Lima, já veio entretanto negar esta versão, assegurando que Zúñiga está apenas a tentar justificar as suas próprias ações com mentiras. Foi, de resto, o próprio ministro que revelou na rede social X qual a pena a que o militar poderá ser condenado. Também a Ministra da Presidência María Nela Prada Tejada veio dizer que a acusação é “absolutamente falsa e inconcebível“, antes de ler uma declaração disse ter sido escrita pelo próprio Zúñiga. No papel lia-se que o golpe falhou em parte porque a marinha e a força aérea não se juntaram aos tanques.

Mas parte da oposição pareceu acreditar na versão de Zúñiga, com a senadora Andrea Barrientos, citada pela BBC, a sugerir que Arce organizou um “auto-golpe” e que o governo tem “muitas perguntas a que responder pelo povo da Bolívia”, pedindo uma investigação aprofundada sobre o incidente.

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Anadolu via Getty Images

Qual é a situação económica e política na Bolívia?

É uma situação complicada, pelo que as tensões sociais e políticas já vinham aumentando há muito. Como conta a Associated Press, a combinação da inflação em crescendo e de um crescimento económico insuficiente acabaram com o que tinha sido, na década anterior, classificado como o “milagre económico” da Bolívia, que se tornara uma grande produtora de energia.

Arce chegou a ser Ministro das Finanças durante esse tempo de crescimento, quando o presidente era Evo Morales. Acabou por chegar à liderança do governo em 2020, mas a economia estava então a sofrer com as consequências da pandemia e com uma redução na produção de combustíveis. E se este ano o crescimento ficar pelos 1,6% que o FMI prevê, será o mais baixo da Bolívia em 25 anos.

Entretanto, a situação económica levou ao confronto político entre Arce e o seu antecessor, Morales, o que tem levado a um Parlamento paralisado e incapaz de tomar medidas para resolver a situação. Mas, como recordam vários órgãos da imprensa internacional, a situação está longe de ser uma novidade no país: desde que se tornou independente, em 1825, a Bolívia já registou 190 tentativas de golpe de Estado (42 delas com sucesso), naquilo a que a Associated Press chama um “ciclo repetitivo entre elites políticas em áreas urbanas” e “setores rurais mobilizados”.

Quem é Luis Arce, o presidente boliviano?

O presidente da Bolívia é um economista e político de esquerda com 60 anos, tendo sido já ministro no consulado de Morales, antes de se tornar presidente, há quatro anos.

Depois de estudar Economia em Londres, Arce trabalhou no Banco Central da Bolívia entre 1987 e 2006, tendo depois trabalhado com Morales durante o “milagre” económico do país. Durante os anos 1990, o país tinha chegado a tornar-se a uma nação de rendimentos médios, e não baixos, e a ver a percentagem de pessoas em situação de pobreza extrema diminuiu em 15%. Mas desde 2014 que a economia está em queda, situação que só piorou com a pandemia.

Quando se tornou presidente, Arce anunciou que o país estava a enfrentar a pior recessão em 40 anos, com uma falta de produção e exploração de combustíveis que passou a obrigar a Bolívia a importar 86% do seu diesel e 56% da gasolina.

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Arce falou aos apoiantes, misturados com alguns críticos, na varanda do palácio presidencial

Bloomberg via Getty Images

Quais são as reações internacionais?

A União Europeia condenou rapidamente a tentativa de golpe, com a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, a vir declarar o apoio europeu à ordem constitucional e ao Estado de Direito na Bolívia. Outros países mais próximos da Bolívia, como o Chile, disseram condenar o golpe e esperar que o “governo legítimo” de Arce continue no poder.

Já a Rússia veio insinuar que o incidente pode ter tido mão estrangeira: “Este é um assunto interno da Bolívia. É muito importante que os nossos amigos da Bolívia lidem com os seus próprios problemas dentro da legalidade constitucional”, disse o porta-voz do Kremlin Dimitri Peskov, citado pela Reuters. “É muito importante que não tenha havido interferência de países terceiros no que aconteceu na Bolívia”.

O aviso chega três semanas depois de Luis Arce e Vladimir Putin terem estado juntos no Fórum Internacional Económico de São Petersburgo e de Arce se ter referido ao governo russo como um Executivo “amigável”, agradecendo a Putin o “apoio” à Bolívia e a “agenda cheia” de projetos para cooperação entre os dois países.

A situação está controlada?

Até ver, sim. O presidente fechou as declarações às centenas de os apoiantes que o esperavam na Praça Murillo em tom de euforia: “Os únicos que nos podem retirar daqui são vocês”. “Temos o controlo total e absoluto das nossas Forças Armadas, já está tudo sob controlo”, veio garantir, ainda a quente, o Ministro da Defesa.

Mas como já apontaram vários especialistas nas últimas horas, as próximas semanas serão chave para se perceber se a tentativa de golpe foi apenas um incidente isolado ou se é um sintoma de uma insatisfação maior, e que poderá levar a outros golpes. Desde o final do ano passado que o próprio Arce, por quem os apoiantes e críticos gritavam na praça usando a sua alcunha (“Lucho!”), dizia suspeitar de possíveis planos de golpes promovidos pela oposição.

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