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Arquivo Fotográfico/Santuário de Fátima

Arquivo Fotográfico/Santuário de Fátima

Fátima: 100 anos de uma história mal contada

Durante o último século, o que se fez em Fátima foi manipular um acontecimento até fazer desaparecer toda a surpresa e complexidade. Mas Fátima resiste às suas caricaturas. Um ensaio de Rui Ramos.

Na história de Fátima, a explicação mais simples é a da “aparição” – ou da “visão”, como preferem os teólogos mais melindrosos — da Virgem Maria. Todas as outras explicações são mais ou menos rebuscadas. O problema é o da proverbial borboleta que bate as asas na Amazónia e causa uma tempestade na Florida: como é que em Maio de 1917 três crianças numa charneca – Lúcia Santos, de 10 anos, Francisco Marto, de 9 anos e Jacinta Marto, de 7 anos – iniciaram um dos maiores movimentos de massas da história de Portugal, de que resultaria, nas décadas seguintes, um dos maiores santuários europeus, uma nova cidade, e um culto que já trouxe a Portugal vários papas?

Há um truque para não ter problemas: é agarrar no acontecimento, e reduzi-lo a certas circunstâncias, até fazer desaparecer toda a sua surpresa e complexidade. Em A Fabricação de Fátima, traduzido em 1971, o professor da universidade de Estrasburgo Prosper Alfaric ensinou como proceder: bastaria descrever o lugar e a época, e “os factos maravilhosos explicar-se-ão então muito naturalmente”. O lugar: uma povoação isolada e pobre na serra de Aire, perdida numa idade média de lendas e folclore. A época: 1917, na Europa mais um ano de guerra, com faltas generalizadas de alimentos e de combustíveis, e em Portugal mais um ano de confronto entre um governo republicano laicista e o clero católico.

Há mais alguma coisa para saber? Há, muita coisa. Nenhum outro acontecimento histórico do século XX em Portugal está tão sistematicamente documentado. Sem sair da história, é possível sugerir um contexto mais interessante para Fátima do que o da “religiosidade popular” e o do conflito entre o Estado e a Igreja.

Uma história do povo

No começo de Fátima, não está, como em outros acontecimentos do tempo, um chefe doutorado ou um partido político, mas três crianças da aldeia de Aljustrel, na serra de Aire. Os apologistas de Fátima e os seus inimigos caracterizaram-nas da mesma maneira: seriam “simples” e “ignorantes”. Para os apologistas, estava aí a garantia da sinceridade dos videntes: “evidentemente”, dizia o cónego Manuel Nunes Formigão, professor do Seminário de Santarém, “não são cabeças onde pudesse germinar o gigantesco desígnio de mistificar toda a gente”. Para os inimigos de Fátima, pelo contrário, era a prova da sua vulnerabilidade a delírios e a manipulação. Que se poderia esperar — segundo João Ilharco, autor de um violento panfleto publicado em 1971 — de um “lugarejo perdido no meio de cerros”, habitado por “pessoas ignorantes e crendeiras”, e de três crianças de “tipo grosseiro”, “broncas e abúlicas”, em que eram manifestos o “atrofiamento das actividades mentais e falta de entendimento”?

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Curiosamente, para teses que dependiam tanto da caracterização dos protagonistas e do seu meio, nem apologistas nem inimigos de Fátima conseguiram ser claros. Em que sentido eram os pais das crianças “gente pobre”? Na aldeia de Aljustrel, os seus vizinhos achavam-nos “abastados”. O pai de Lúcia era precisamente o dono da Cova de Iria. A Cova de Iria era um ermo distante, diz Formigão, mas depois nota, inocentemente, que a “trezentos metros” corria uma “grande estrada distrital”, em macadame. Os seus habitantes eram gente isolada do resto do mundo? Numa nota dos Documentos Críticos de Fátima, descobrimos que um dos irmãos mais velhos de Lúcia tinha estado emigrado no Brasil, donde voltara em 1917 e para onde regressaria em 1925. Um irmão de Jacinta cumpria serviço militar em Cabo Verde. As crianças, aliás, fizeram do fim da guerra na Europa a matéria principal das revelações. Eram meninos incultos? Não frequentavam a escola, mas uma das recomendações da Virgem foi que aprendessem a ler, o que aliás deixou “descrente” a mãe de Lúcia, porque, conforme declarou no inquérito canónico de 1923, custava-lhe a crer que “Nossa Senhora (tivesse) vindo à terra para lhe dizer que aprendesse a ler”. A mãe de Lúcia, todavia, era alfabetizada, e lia livros de devoção aos filhos (entre os quais, a Missão Abreviada, que descrevia a aparição de La Salette). Antes de 1917, a família já conhecia o Padre Cruz, o mais célebre padre de Lisboa.

As expressões, as roupas, as casas, tudo suscita agora aquela mistura de repulsa e de comiseração que os povos das colónias inspiravam outrora ao explorador europeu. Uma espécie de olhar colonial contaminou quase tudo o que se escreveu sobre Fátima e os seus habitantes. Este não era, porém, o povo selvagem e messiânico dos romances de aventuras.

O problema é que todos os autores que nesse tempo escreveram sobre Fátima, incluindo os padres locais, eram membros de uma classe letrada que viera ou passara pelas cidades. Para eles, a população que cavava a terra e criava gado era uma massa indistintamente “pobre” e “simples”. A passagem do tempo generalizou essa impressão. Com o fim da sociedade rural e a aplicação retrospectiva da noção de “subdesenvolvimento”, as imagens da época transformaram-se em janelas para um mundo que o moderno espectador urbano só pode considerar exótico: as expressões, as roupas, as casas, tudo suscita agora aquela mistura de repulsa e de comiseração que os povos das colónias inspiravam outrora ao explorador europeu. Uma espécie de olhar colonial contaminou quase tudo o que se escreveu sobre Fátima e os seus habitantes.

Este não era, porém, o povo selvagem e messiânico dos romances de aventuras. Era uma população integrada no Estado e na igreja, que fazia muita questão de respeitar a autoridade, fosse a do clero ou a da administração pública. Quando o administrador do concelho de Ourém mandou chamar os videntes, a 11 de Agosto de 1917, o pai de Jacinta e de Francisco não os levou, mas teve o cuidado de se apresentar ele próprio. O administrador irritou-se: “Então desobedece?!”. O lavrador respondeu, habilmente: “Não, porque aqui estou”. A mãe de Lúcia não se inquietou quando o administrador, no dia 13 de Agosto de 1917, sequestrou os videntes, “porque sabia que não comiam as crianças”.

A freguesia de Fátima, em 1917, também não era exactamente um local inacessível e parado no tempo. A população estava dispersa por várias aldeias, e as suas propriedades espalhadas por toda a região. As deslocações eram constantes. Foi pelas serranas que vinham vender carvão que em Torres Novas se soube das aparições logo no princípio de Julho. Não era um povo dado à crença fácil. A mãe de Lúcia não acreditou na filha e tentou obrigá-la a confessar: “Vocês andam a enganar o povo”. Angustiou-a sempre a “vergonha a que se expunha”. A aldeia dividiu-se. O jornalista Avelino de Almeida, em 13 de Outubro de 1917, tomou nota do sarcasmo do carroceiro a quem perguntou se vira a “Senhora” na Cova de Iria: “Eu cá só lá vi pedras, carros, automóveis, cavalgaduras e gente”. Em Vila Nova de Ourém, na véspera, muitas “mulheres do povo” riam-se: “Então vais ver amanhã a santa?” No seu depoimento de 1923, uma das primeiras crentes, Maria Carreira, lembrou como no Verão de 1917 “tivera de arrostar com a troça das pessoas da sua terra”. Em 1938, o escritor Antero de Figueiredo descreveu Fátima como “um sítio ao mesmo tempo de fé intensa e de extensa incredulidade; de alta beleza, e de intriga e mesquinhez”. Por alguma razão, Lúcia pediu sempre à Virgem um “milagre” para a população acreditar. Mas segundo o jornalista Costa Brochado, teria sido o Padre Cruz quem, ao fazer uma visita ao local, estabeleceu finalmente a “confiança de toda a gente” no milagre. O padre de Lisboa obteve o que a suposta credulidade indígena não produzira.

Na verdade, foi preciso mais do que superstição montanhesa. A serra já tinha sido o local de uma antiga romaria no século XVII, a da Nossa Senhora da Ortiga, e toda a região, como outras em Portugal, estava cheia de invocações marianas. Mas Fátima não foi simplesmente um episódio daquela “religiosidade popular”, primitiva e rural, que fascinou os folcloristas românticos e depois alimentou doutoramentos de antropologia. Na segunda aparição, a 13 de Junho de 1917, esteve pouca gente, umas 40 a 50 pessoas, porque as famílias dos videntes tal como a demais população de Aljustrel preferiram as festas de Santo António em Ourém. Em Julho, teriam aparecido umas 2500 pessoas, segundo o administrador do concelho de Ourém. Mas foi a partir do mês seguinte que se deu uma explosão: sempre segundo o administrador, muito contido nas estimativas, acorreram 12 a 15.000 pessoas em Agosto, 20.000 em Setembro e, finalmente, em Outubro, entre 30 a 40.000.

A localização e a propaganda jornalística tornaram possível que a 13 de Outubro, para a última aparição, tivessem aparecido milhares de pessoas de fora da freguesia. Para muita gente, o que fez destacar Fátima de todos os outros casos de “aparições” foi precisamente este facto: a sua “rápida propagação por todo o país”, arrastando gente “de todas as classes sociais”.

Ora, entre Julho e Agosto, o que aconteceu não foi uma súbita erupção de fé rural, mas a intervenção sensacionalista da grande imprensa de Lisboa, a começar com uma notícia do maior diário português de então, O Século, a 23 de Julho. Significativamente, foi só a partir de então que a imprensa local reparou no caso. Fátima é, em grande medida, a prova da capacidade de jornais como O Século, com tiragens de 100.000 exemplares, para criarem uma conversa nacional. A aparição de Outubro teve intensa cobertura jornalística, incluindo a reportagem fotográfica da Ilustração Portuguesa. Muitos comerciantes trataram de aproveitar. Na manhã do dia 13, na Cova de Iria, Avelino de Almeida já viu vendedores ambulantes a apregoar “os retratos das crianças em bilhetes postais”, e “outros bilhetes que representam um soldado do CEP pensando no auxílio da sua protectora para salvação da pátria”.

Para quem tivesse de vir de Lisboa, a Cova de Iria não estava no fim do mundo. Ficava a dois quilómetros de Fátima, sede da freguesia, a 12 km de Vila Nova de Ourém, sede do concelho, e a 60 km de Santarém (capital do distrito). Era rodeada por duas das principais vias férreas do país: a 20km da estação de Chão de Maçãs, na Linha do Norte, e a 25 km da estação de Leiria, na Linha do Oeste. De facto, o milagre deu-se no que era um dos principais eixos de comunicação do país, o que explica que hoje o santuário esteja convenientemente ao pé da A1. Em 1917, ainda os acessos não eram tão fáceis (de Santarém, demorava-se três horas de automóvel), mas a paciência dos viajantes era outra, e estes foram também os anos em que os veículos automóveis se multiplicaram: 4335 registados em 1917, 5183 em 1919, 14.868 em 1925, 23.463 em 1927, com 50 carreiras de transporte no sul e 80 no norte. Em Outubro de 1917, os jornalistas contaram mais de 100 automóveis estacionados na estrada, ao pé da Cova de Iria.

A localização e a propaganda jornalística tornaram possível que a 13 de Outubro, para a última aparição, em que se esperava um “sinal”, tivessem aparecido milhares de pessoas de fora da freguesia. Para muita gente, como o padre Luís de Andrade e Silva, num depoimento de 30 de Dezembro de 1917, o que fez destacar Fátima de todos os outros casos de “aparições” foi precisamente este facto: a sua “rápida propagação por todo o país”, arrastando gente “de todas as classes sociais”. Na manhã de 13 de Outubro, a baronesa de Almeirim veio trazer dois vestidos novos às videntes: um azul para Lúcia, e outro branco para Jacinta, além de grinaldas de flores artificiais. O barão de Alvaiázere, advogado e funcionário do Registo Civil, encontrou na Cova de Iria muitos conhecidos de Lisboa. E por uma desprevenida nota de Tomás da Fonseca, no seu livro Fátima, descobrimos que o célebre escritor António Sérgio também esteve na Cova de Iria no dia 13 de Outubro, a “acompanhar a esposa”.

A quatro anos de começar a colaborar na Seara Nova, Sérgio já era a encarnação viva do “racionalismo”. Como seria de esperar, não lhe foi difícil criar uma explicação para a célebre “dança do sol”, testemunhada por milhares de pessoas na tarde de 13 de Outubro: “Ao fitar o sol, quando irrompeu das nuvens, verificara terem ficado ainda, a embaciá-lo, leves flocos, que, tocados pela aragem, se tinham enovelado, provocando movimentos giratórios que nada tinham de maravilhoso”. Mas a “multidão devota, sugestionada pelo grito de Lúcia, caíra de joelhos”. Acontece que para muitos crentes, o “fenómeno solar” foi fundamental, não por si, mas pelo seu contexto: uma testemunha ouvida pelo pároco de Fátima declarou que meses depois, a 2 de Fevereiro de 1918, “verificou no sol idênticos sinais aos do dia 13 de Outubro (de 1917)”. Mas os “sinais” do dia 13 tinham sido previstos pelos videntes e haviam acontecido perante “cinquenta mil pessoas”. Era isso que o convencia de que o fenómeno, natural em Fevereiro, teria sido sobrenatural em Outubro.

Para Prosper Alfaric, os “milagres” eram necessariamente um fenómeno rural, de montanhas e de pastores, porque “nas cidades, nos grandes meios em que as gentes se acotovelam e esbarram umas nas outras, sobretudo na escola em que devem submeter-se à disciplina intelectual, os sonhos mais brilhantes e mais sedutores depressa se desvanecem”. Acontece que Fátima não foi simplesmente um surto de “sonhos sedutores e brilhantes” num círculo singelo de lavradores analfabetos, confundidos por tradições marianas e fenómenos atmosféricos. O “facto extraordinário” não aconteceu apenas na serra de Aire, mas em Lisboa, no Porto, e em todas as localidades de onde veio gente e onde serviu de tema de conversa e de discussão no Verão de 1917.

Porquê? O costume aqui é invocar o aspecto apocalíptico da época. A guerra europeia, no seu quarto ano, não acabava. A falta de abastecimentos era cada vez maior. A 19 de Maio de 1917, em Lisboa, uma população desesperada com a falta de pão saqueou as lojas e atacou a Guarda Republicana, que matou talvez 40 pessoas e prendeu mais de 500. Mas antes de assumirmos que as dificuldades, só por si, tivessem transformado todo o Portugal numa crédula aldeia serrana, será importante percebermos que outras condições levaram tanta gente a interessar-se por um “facto extraordinário”, e a continuarem interessadas, mesmo quando o contexto original mudou.

Arquivo Fotográfico/Santuário de Fátima

Um novo catolicismo

O primeiro autor a fazer o elenco de todas as “visões e aparições celestiais” de que houve notícia nesta época, classificando-as como “explorações ignóbeis”, não foi um inimigo de Fátima, mas o seu principal propagandista, o cónego Formigão, no processo canónico diocesano de 1930. Os anti-fatimistas copiaram depois estes dados para demonstrar que Fátima nada tivera de extraordinário. Formigão usara-os de outra maneira. Todas as “visões e aparições” tinham inspirado “grandes levantamentos do povo durante muitos dias”, mas “caíram todas por si, desaparecendo como que por encanto”, menos Fátima. O que, para Formigão, só podia ter uma explicação divina.

Para um inimigo de Fátima, como João Ilharco, em 1971, não havia necessidade de incomodar Deus: Fátima tinha sido simplesmente “uma reacção do clero português contra o regime republicano”, uma encomenda para sabotar a Lei da Separação de 1911. Antes dele, em 1950, Tomás da Fonseca descreveu a conjura. Tudo teria começado em 1914. O pároco de Fátima queixava-se da pobreza da sua paróquia. Alguém o teria então convencido a “provocar uma aparição como a de La Salette (1846) ou a de Lourdes (1858)” para “enriquecer depressa”. O pároco recrutou assim uns “filhos de gente pobre e inculta”, a quem “ensaiou” durante meses. Daí que tudo lembrasse o que ocorrera em França: ermos, pastores, “segredos”. Uma “fabricação clerical”.

Os propagandistas de Fátima, como o cónego Casimir Barthas, mantiveram o contrário: “Na sua grande maioria, o clero e o episcopado de Portugal foram indiferentes e, em parte, hostis às aparições e ao movimento popular dirigido para a Cova de Iria”. O pároco de Fátima nunca acreditara nos videntes. A imprensa católica demorou a reagir. O patriarcado de Lisboa proibira o clero de participar nas manifestações. Só em 1921 foi celebrada a primeira missa na Cova de Iria, só em 1927 o bispo de Leiria compareceu oficialmente, e só em 1930 deu crédito às aparições. Em 1929, ainda o bispo de Portalegre não autorizara o culto de Fátima na sua diocese.

A ideia de Fátima como uma “construção” friamente planeada e dirigida no segredo das sacristias é uma ilusão. Alguns padres entusiasmaram-se desde cedo com a perspectiva de uma “Lourdes portuguesa”, como o cónego Formigão. Lourdes atraía milhares de peregrinos portugueses. Mas a possibilidade de replicar Lourdes na Cova de Iria não era óbvia no Verão de 1917. O próprio Formigão, inicialmente, teria ido a Fátima com a intenção de “parar aquela impostura”.

Mas numa carta ao Mensageiro de Leiria, de 22 de Agosto de 1917, o pároco de Fátima explicara que a sua “aparente indiferença” se devia a não querer dar pretexto aos “inimigos da religião”. Para os críticos de Fátima, estava aqui confessada a estratégia da Igreja: operar na sombra. Acontece que o pároco estava a defender-se da acusação de que colaborara com o administrador do concelho no sequestro dos videntes. De facto, a ideia de Fátima como uma “construção” friamente planeada e dirigida no segredo das sacristias — é uma ilusão. Alguns padres entusiasmaram-se desde cedo com a perspectiva de uma “Lourdes portuguesa”, como o cónego Formigão. Lourdes, perto da fronteira da França com a Espanha, atraía centenas, por vezes milhares de peregrinos portugueses (em 1909, 1250; em 1910, 2500). Mas a possibilidade de replicar Lourdes na Cova de Iria não era óbvia no Verão de 1917. O próprio Formigão, inicialmente, teria ido a Fátima com a intenção de “parar aquela impostura”.

O distanciamento do clero não foi um simples estratagema para dissimular uma direcção oculta. A tendência para supor que Fátima estava, desde o princípio, destinada a acabar num grande santuário, faz frequentemente os historiadores esquecerem o carácter “caótico”, inicialmente imprevisível e incerto, que Fátima teve para os seus contemporâneos. A carta do pároco de Fátima, padre Manuel Marques Ferreira, ao patriarcado de Lisboa, a 15 de Outubro de 1917, não parece a de um conspirador na posse do fio da meada. Tantos “acontecimentos espantosos” haviam-no deixado perplexo: “Careço e imploro (…) urgentes e acertados conselhos para o governo desta freguesia”. O sucesso final de Fátima impede que se perceba o que, para o clero, começou por ser um desafio difícil. Videntes leigos, em contacto directo com a divindade, sem a mediação da Igreja, nunca confortaram a autoridade eclesiástica (em 1938, ainda Lúcia dizia a Antero de Figueiredo, acerca dos “segredos”: “Ninguém na terra tem poder para me mandar falar sobre tal assunto”). Os riscos eram óbvios. Era impossível adivinhar o que crianças sujeitas às maiores pressões acabariam por dizer ou fazer. O administrador do concelho e os militantes laicistas estavam vigilantes. Toda a gente desconfiava de toda a gente. O pároco de Fátima foi acusado de colaborar com a administração do concelho, e ele próprio suspeitou do prior de Porto de Mós. O povo oscilou: a 11 de Novembro de 1917, o prior de Porto de Mós informava o patriarcado que a fé “resfriara”, devido à continuação da guerra, cujo fim Lúcia anunciara a 13 de Outubro. Nem os mais devotos estavam constantemente disponíveis: em 1920, Formigão lamentou que, quando Jacinta adoeceu, não se tivesse conseguido encontrar em Lisboa uma “pessoa abastada” para a acolher, embora depois da sua morte se “mostra(ssem) solícitas em lhe prestar homenagem”.

Como não podia deixar de ser, dada a natureza do caso, o clero esteve sempre envolvido, desde os párocos locais, pelas suas funções, até aos seminaristas que Avelino de Almeida viu na Cova de Iria a 13 de Outubro de 1917, movidos pela curiosidade, mas mantendo-se prudentemente à distância, como “mirones”. Nos interrogatórios aos videntes, o pároco de Fátima, o cónego Formigão ou o padre José Ferreira Lacerda, director do jornal Mensageiro de Leiria, mostraram-se determinados, e com muita habilidade, em despistar histeria, sugestão ou malícia. Os videntes foram perguntados se conheciam a história de La Salette, ou o que “veste a imagem da capela onde costumam ir à missa”. Nunca a excitação venceu a cautela. Em 1918, o pároco de Fátima reportou ao patriarcado que a mãe de Lúcia, em Maio de 1917, lhe pedira que instruísse a filha sobre que dizer à aparição: “Disso a dissuadi, para evitar algum mau conceito que a impiedade ou os mal intencionados pudessem fazer, como ainda assim fizeram”. Mas os padres não estavam apenas a prevenir, maquiavelicamente, as objecções de outros. Carlos de Azevedo Mendes, advogado de Torres Novas, almoçou com o pároco de Fátima e mais seis padres no dia 7 de Setembro de 1917, e reparou que a insistência das crianças sob interrogatório “impressionava-os”, mas que todos concordavam em que “não era razão suficiente para poderem formar um juízo”.

Um dos artigos mais cépticos sobre Fátima saiu no principal jornal católico, A Ordem, a 17 de Outubro de 1917. O seu autor, o advogado Domingos Pinto Coelho, de uma família miguelista, era, aos 62 anos, a encarnação do mais rigoroso tradicionalismo. Não hesitou em aplicar a Fátima um duche gelado.

Em 1930, o bispo de Leiria arranjou ainda outro argumento para refutar a tese da “fabricação clerical”: como é que um clero “espoliado”, “perseguido” e “caluniado”, ainda por cima na mais “pequenina e pobre diocese” do país, “teria poder para criar o movimento religioso de Fátima que hoje se estende a todo o Portugal”? É uma boa questão. De facto, as aparições ocorreram fora das regiões de mais densa malha eclesiástica e de mais intensa devoção tradicional em Portugal, como era o norte do país. Leiria nem sequer era diocese (restaurada em 1918, só teria bispo em 1920). O momento, para o catolicismo português, também não era o mais áureo. Depois da Lei da Separação de 1911, mas sobretudo depois de décadas de tutela liberal no século XIX, a Igreja portuguesa dependia de um clero expropriado e vigiado, cujos números diminuíam havia um século. Os liberais tinham reduzido o catolicismo a uma disciplina social, usada para controlar o povo menos instruído e sobretudo as mulheres. Os republicanos pretendiam agora reduzi-lo ainda mais, a um culto privado sem expressão pública. Mas o que o bispo de Leiria esquecia em 1930 é que Fátima também aconteceu quando tudo estava a mudar. Durante muito tempo, o catolicismo parecera destinado a não passar de uma “reacção” nostálgica contra a época moderna. O papa Leão XIII, com a “doutrina social da igreja” e o “neo-tomismo”, começara a reconstruí-lo como uma resposta aos impasses e insuficiências da modernidade. Novos movimentos católicos passaram a aspirar a uma igreja da sociedade civil, e não do Estado, e a uma religião de crença e militância, e não de simples cerimónia e rotina. Tudo isso provocou conflitos dentro da Igreja, como a polémica sobre o “modernismo” (1907), mas gerou o ambiente em que Fátima pôde escapar a ser arquivada entre o folclore rural.

A história de Fátima não fez parte da restauração de um catolicismo tradicional, mas da emergência de um novo catolicismo, que iria ser protagonizado por uma Igreja muito diferente da Igreja do século XIX. O contraste de opiniões entre os católicos é, a esse respeito, sugestivo. Um dos artigos mais cépticos sobre Fátima saiu no principal jornal católico, A Ordem, a 17 de Outubro de 1917. O seu autor, o advogado Domingos Pinto Coelho, de uma família miguelista, era, aos 62 anos, a encarnação do mais rigoroso tradicionalismo. Não hesitou em aplicar a Fátima um duche gelado: “O milagre é excepção. E as excepções não se presumem. Precisam de prova cabal”. Ora, havia apenas “as afirmações de três crianças e mais nada”: “É muito pouco”. Pinto Coelho também estivera na Cova de Iria, como “curioso”. O fenómeno solar seria “coisa excepcional”? Não: vira o mesmo espectáculo em Lisboa, uns dias depois. Em Fátima, funcionara apenas a “psicologia colectiva” das “multidões”, agitadas por uma “grande onda de fé”.

Arquivo Fotográfico/Santuário de Fátima

A dissonância com o artigo do escritor António Sardinha no jornal Monarquia, de 8 de Novembro de 1917, não podia ser maior. Aos 30 anos de idade, Sardinha liderava um novo movimento intelectual, o “Integralismo Lusitano”. Ao contrário de Pinto Coelho, tinha poucos anos de monárquico e católico. Em 1910, ainda era republicano e “livre-pensador”. Sardinha não citou autoridades e protocolos eclesiásticos, como Pinto Coelho, mas cientistas, filósofos e matemáticos contemporâneos (William James, Henri Bergson, Henri Poincaré, Georg Riemann, etc.), para defender que as aparições faziam todo o sentido, não à luz da pseudo-ciência materialista do século XIX, mas da nova ciência do século XX. Inverteu assim os termos do debate: o materialismo é que era uma superstição, e os “livre pensadores” é que eram uns pobres ignorantes.

Sardinha começava o artigo com uma citação de Ernest Renan: “A razão e o bom senso não chegam”. O seu catolicismo não era o dos crentes tradicionais, como Pinto Coelho, centrados nas instituições eclesiásticas, mas o dos conversos, disponíveis para todos os entusiasmos. O jovem advogado Carlos de Azevedo Mendes, membro do Centro Académico de Democracia Cristã de Coimbra, representava bem a tendência. Foi ele o homem muito alto (media quase um 1,90 m) que, no dia 13 de Outubro, na Cova de Iria, levantou Lúcia ao colo depois da aparição. Numa carta ao irmão, explicou que passara por muitas dúvidas. Um mês antes, a 13 de Setembro, também estivera na Cova de Iria, mas “nada vi nem senti”. A multidão apertava as videntes, que choravam “aflitas”. No dia 13 de Outubro, voltou com “ansiedade”. Tudo foi diferente. Tal como Pinto Coelho, Azevedo Mendes perguntava: os fenómenos atmosféricos “seriam naturais?” Mas respondia de outra maneira: “Que me importa?” O “extraordinário de tudo o que vi é a coincidência de sinais atmosféricos com a prevenção da criança, e depois aquela mole imensa de gente”. Azevedo Mendes tornou-se um dos grandes activistas de Fátima. Anos depois, no santuário, comentaria: “O grande milagre de Fátima é tudo aquilo que vemos, essas multidões penitentes… Essa devoção… Essas conversões…” O que era “pouco” para Pinto Coelho, o idoso tradicionalista, era tudo para Azevedo Mendes, o jovem militante.

O clero nunca esteve totalmente à vontade. Tentou regularizar as “curas”, através de um serviço de assistência aos doentes, a que se chamava Gabinete de Verificações, como em Lourdes, e esforçou-se por tirar a Fátima o aspecto de um romaria tradicional, com barracas de comes e bebes, foguetório, e mendigos, tal como hoje se esforça por transformar as “aparições” em “visões”.

O lado “caótico” dos acontecimentos foi essencial, porque a surpresa e a admiração, no contexto desta nova sensibilidade religiosa, jogaram a favor de Fátima. O professor da Universidade de Bamberg, Ludwig Fischer, rendeu-se a Fátima em 1929, quando, depois de visitar a Cova de Iria, entre a multidão de peregrinos, seguiu para um congresso eclesiástico em Sevilha. Entre as grandes autoridades da Igreja, sentiu o contraste: “Sevilha é organização – Fátima é fé. Sevilha é tradição, rotina – Fátima é actualidade, é vida. Sevilha é obra do homem – Fátima é obra de Deus. Sevilha é o fim – Fátima é o princípio”.

Deste ponto de vista, a logística de Fátima, em que os seus inimigos descortinam a causa, só podia parecer a consequência. O bispo de Leiria, D. José Alves Correia da Silva, devoto de Lourdes, foi criando condições para uma eventual regularização do culto: comprou terrenos na Cova de Iria, deixou rezar missas, e nomeou uma comissão de inquérito canónico em 1922 (o seu argumento a favor da possibilidade de um milagre é curioso: se os homens podiam “desviar as águas de um rio, utilizá-lo para a produção de energia eléctrica que nos dá luz, calor, movimento”, como não admitir que Deus pudesse “produzir efeitos muito superiores”? Afinal, o progresso tecnológico tinha “introduzido no mundo material mais mudanças do que todos os milagres do cristianismo”).

A propósito da comissão canónica, Ludwig Fischer reparou que “trabalhava com extrema lentidão”, mas “a fim de permitir que o tempo e os factos se encarregassem de falar”. Entretanto, os entusiastas fundavam jornais e associações. Na passagem para a década de 1930, Fátima assinalou a reorganização da Igreja portuguesa: deslocada para sul, mais popular, e mais “romana”, através de um marianismo associado à afirmação da autoridade do papa. O clero, porém, nunca esteve totalmente à vontade. Tentou regularizar as “curas”, através de um serviço de assistência aos doentes, a que se chamava Gabinete de Verificações, como em Lourdes, e esforçou-se por tirar a Fátima o aspecto de um romaria tradicional, com barracas de comes e bebes, foguetório, e mendigos, tal como hoje se esforça por transformar as “aparições” em “visões” (fenómeno místico, em vez de físico).

Um novo republicanismo

A 31 de Outubro de 1942, o cardeal Cerejeira resumiu assim a história de Fátima: “sem a Igreja e contra o poder do Estado”. Não era exacto. Nem pelo que dizia respeito à Igreja, nem pelo que dizia respeito ao “poder do Estado”. Era verdade que Fátima fora, desde o princípio, um alvo do chamado “livre-pensamento” republicano, mas este nem sempre contou com o “poder do Estado”. O “livre-pensamento” era uma causa das lojas maçónicas em que quase todos os chefes republicanos estavam filiados. Mas aplicava-se mais especialmente a uma corrente radical, protagonizada por associações próximas do Partido Republicano Português de Afonso Costa, no poder. A sua reacção a Fátima foi quase instantânea. A 18 de Agosto de 1917, o diário O Mundo, órgão do PRP, imputou logo os acontecimentos de “Torres Vedras” (sic, por Torres Novas) a um “charlatão” que, a fim de explorar o “povo bisonho”, “industria pobres crianças a verem a santa”. No terreno, já o administrador do concelho de Ourém, Artur de Oliveira Santos, maçon e militante do “livre pensamento”, recorria a todos os meios para liquidar a “especulação clerical”. A 13 de Agosto, no dia previsto para a quarta aparição, apareceu de surpresa em Fátima e raptou os videntes, com intenção de os submeter a exames médicos e os internar “numa casa de educação”. Durante dois dias, manteve as crianças presas em sua casa. A certa altura, para as aterrorizar, levou-as à cadeia, onde teriam sido ameaçadas de ser “fritas em azeite”.

Os seus correligionários mostraram igual zelo. Na noite de 22 de Outubro, um bando de “livre-pensadores” de Santarém viajou de automóvel até à Cova de Iria. Vandalizaram o local, cortaram a azinheira, e fizeram depois em Santarém uma procissão de paródia com os objectos roubados, o que lhes valeu um balde de água atirado de uma janela por uma mulher indignada. Em Dezembro, a Federação do Livre-Pensamento e a Associação de Registo Civil de Lisboa voltaram ao terreno, com uma conferência em Ourém e um comício na própria Cova de Iria, para denunciar o “vil embuste de Fátima”. No comício, não terão comparecido mais do que oito pessoas, apesar da protecção de uma grande força da Guarda Republicana vinda de Tomar e de Torres Novas.

Tanto afã acabou por suscitar dúvidas. A 18 de Novembro de 1917, Tomás da Fonseca, num artigo para O Mundo, perguntou-se mesmo se não eram os “livres pensadores” que estavam a alimentar o “fogacho” de Fátima com “a lenha seca dos nossos escritos e conversas”. De facto, a perseguição teve este efeito: deixou a imprensa católica à vontade para abordar Fátima, não como um “milagre”, de discussão delicada entre católicos, mas como um caso de falta de liberdade religiosa, com que todas as pessoas decentes, independentemente das suas convicções, se podiam escandalizar. Há a esse respeito, na transcrição do que a Virgem terá dito a 19 de Agosto a Lúcia, uma incerteza curiosa. O pároco de Fátima registou: “Se não tivessem abalado contigo para a Aldeia (Ourém) o milagre seria mais conhecido”; mas o cónego Formigão, mais tarde, anotou o contrário: “Se não tivessem sido presas não seria o milagre tão conhecido”. Na versão de Formigão, a Virgem confirmava os receios do Mundo.

O pormenor que tem escapado à historiografia é que os chamados “livre pensadores” precisavam de Fátima muito mais do que os católicos. Os “livre-pensadores” constituíam apenas uma corrente no republicanismo. Em 1917, sentiam a sua influência ameaçada, não por Fátima, mas pelo próprio regime. A guerra, como em França, levara à tentativa de estabelecer uma “união sagrada”. Nesse espírito, o governo aceitara a assistência religiosa em campanha, nomeando capelães militares. Mas corriam rumores mais preocupantes: que estaria a ser considerado o restabelecimento de relações diplomáticas com a Santa Sé ou até mesmo a revisão da “intangível” Lei da Separação. A intervenção na guerra não era popular e as dificuldades de abastecimentos eram graves. Para o regime, uma trégua com os católicos poderia ser conveniente, e parecia haver boa expectativa disso. A Igreja patrocinava um novo movimento político, o Centro Católico, que no fundo significava o seu distanciamento dos monárquicos. Mas para os “livre-pensadores” qualquer acordo com a “reacção clerical” era impensável. Ora, que melhor do que Fátima, ressurgência de uma credulidade fraudulenta, para provar a inconveniência de o regime se moderar? No primeiro artigo do Mundo sobre Fátima, a 18 de Agosto, era essa a verdadeira nota: “e é sob esta união sagrada (…), que com ousadia extreme os impostores vão praticando sem punições todas essas proezas de estupidez e de cegueira”. Era urgente voltar às “punições”. Foi o que aconteceu a 23 de Agosto, com o desterro do cardeal patriarca.

Arquivo Fotográfico/Santuário de Fátima

Mas a influência dos “livre-pensadores” diminuía. A 20 de Outubro de 1917, o Mundo atacou os jornais “que se prestam a servir essa mentira para iludir os papalvos”. Era uma referência ao Século, o maior diário português, que tinha sido também o maior jornal republicano antes de 1910. A 15 de Outubro, a reportagem de Avelino de Almeida sobre o dia 13 na Cova de Iria causara enorme sensação. Almeida havia sido um célebre ferrabrás do anti-clericalismo. Agora, aparecia deslumbrado por “um espectáculo único e inacreditável para quem não foi testemunha dele”: uma “imensa multidão” num “alarido colossal”, a gritar “milagre!, milagre!” Tinha sido avassalador: “a sugestão colectiva de que o sobrenatural impera ali e de que um poder extra-humano empolga os circunstantes é tão forte e tão arrebatador que os olhos se marejam de lágrimas, há rostos que se cobrem de uma palidez de morte, homens e mulheres prostram-se em terra, entoando cânticos e rezam o terço em coro”.

Avelino de Almeida não se convertera. Apenas ficara impressionado por duas coisas em Fátima. Por um lado, uma demonstração da “psicologia das multidões”, popularizada pelo escritor francês Gustave Le Bon. Mas acima de tudo, a comunhão numa crença colectiva, como a que os republicanos, por outros meios, desejavam obter. Fátima mostrava à república, de modo perverso, aquilo que a república gostaria de ter sido: a ultrapassagem dos egoísmos, a disponibilidade de tudo sacrificar por um ideal. Foi esse precisamente o tema do Século num artigo de 17 de Outubro, em que comparou Fátima com as eleições municipais de 14 de Outubro: “Em Fátima, cerca de cinquenta mil pessoas se mobilizaram para presenciar um milagre. Idas de longínquas paragens, nem os incómodos da jornada, nem a inclemência do tempo as demoveram do seu propósito”. Mas “no dia seguinte, a concorrência às urnas em Lisboa foi uma coisa irrisória”, apesar de haver assembleias de voto em toda a cidade, e não chover. A conclusão era tremenda: “Se cada vez parece haver mais quem faça fé na Virgem, porque é que cada vez há menos quem faça fé nos homens? Com certeza não é por culpa da Virgem”.

Desde o fim do século XIX, o tipo de materialismo cientista que alimentava o chamado “livre-pensamento” recuava, como já Eça de Queirós constatara em 1893 no seu ensaio “Positivismo e Idealismo”, depois incluído no livro Notas Contemporâneas. As ciências experimentais, que em meados do século XIX pareciam o critério de todos os valores, tinham-se revelado limitadas e incertas. A religião, de patologia condenada pelo progresso, passou a exemplo de um impulso vital ou expressão de uma transcendência inultrapassável. A literatura dita “simbolista” reabilitou a indeterminação, a vida interior, o sonho, a religião, o hermetismo.

Foi essa a inspiração do mais importante movimento intelectual republicano destes anos, a Renascença Portuguesa, que juntou Teixeira Pascoaes, Leonardo Coimbra, Jaime Cortesão, Raul Proença, António Sérgio, Raul Brandão, e, ao princípio, Fernando Pessoa. Nos seus artigos e conferências, Pascoaes, o líder da Renascença, citava, tal como Sardinha, Henri Bergson e William James, para repudiar o “egoísmo materialista”, o “cientismo estreito e superficial”, e saudar o “espírito religioso que ora aparece na Europa”. Acreditava que só “pelo sentimento religioso” a humanidade poderia elevar-se “àquela altitude, onde todas as almas se encontram, como que libertas de seus corpos e esquecidas da sua tenebrosa existência”. Pascoaes abominava o clericalismo católico, mas sonhava com uma “democracia rústica e campestre”, feita de “lavradores” a quem queria dar uma religião nova, a da “saudade”. Com esse fim, não hesitou em aproveitar a imagística mariana. Em 1911, no poema Marános (grafia da época), apelou à “saudade” como à Virgem: “Ó Saudade! Ó Saudade! Ó Virgem Mãe,/Que sobre a terra santa portuguesa,/ Conceberás, isenta de pecado,/ O Cristo da Esperança e da Beleza!” Pascoaes não estava sozinho neste marianismo republicano. A sua expressão mais fantástica ocorreu na oração patriótica que o maior intelectual do regime, o poeta Guerra Junqueiro, enviou ao jornal República, a 13 de Fevereiro de 1917: “Pátria divina de Camões e de Nun’ Álvares, santificado seja o vosso nome. (…) perdoai, Senhora, os nossos erros. Para nos libertar de toda a fraqueza e de todo o crime, encheremos os corações do vosso amor, Ámen”. Os intelectuais cosmopolitas e anti-católicos da república tinham visto a Virgem muito antes dos pastorinhos de Aljustrel.

Começara uma espécie de fascínio pela fé que, anos depois, em 1938, levaria o escritor Antero de Figueiredo, em Fátima, a maravilhar-se: “A Fé! Que força extraordinária, que espiritual potência! Se esta multidão soerguesse as costas, levantaria cordilheiras; se esbracejasse, afastaria continentes” E teve esta nota significativa: “É neste instante, único, que tem realidade a ideologia (aliás socialmente falsa) da Revolução”. Ora, o que oferecia o “livre-pensamento” materialista em alternativa? Piadas sobre o “sol em folias”, dichotes contra os “pequenos labrostes”, troças da “crendice indígena”, ou a hilariante descoberta, em Agosto de 1917, de um “menino virtuoso” que, na rua dos Poiais de S. Bento, em Lisboa, previa uma “aparição” na capital. Em 1917, eram os homens do livre-pensamento que pareciam estéreis e intolerantes. A 26 de Outubro de 1917, o Diário de Notícias resumia assim, a propósito de Fátima, em que consistia o livre-pensamento oficial: no ataque ao “livre pensamento dos outros que não pensam como o Sr. Administrador do concelho”.

No mês de Dezembro de 1917, o poder do PRP de Afonso Costa desmoronou-se perante a sublevação militar comandada em Lisboa pelo major e professor universitário Sidónio Pais. Sidónio, embora ateu, rompeu com o livre-pensamento radical. Emendou a Lei da Separação, restabeleceu relações com o Vaticano e, como Presidente da República, assistiu a missas solenes em Lisboa. Segundo o ex-administrador do concelho de Ourém, o “sidonismo” deixou os “reaccionários à vontade” em Fátima. Curiosamente, isso não pareceu beneficiar muito o culto, que nestes anos perdeu dois dos videntes para a gripe pneumónica. Mas com o regresso ao poder do PRP, depois de 1919, os “livre-pensadores” decidiram tentar novamente a eliminação de Fátima, outra vez com Artur de Oliveira Santos à frente da administração de Ourém. Em 1920, com a morte de Jacinta, receou uma grande peregrinação a 13 de Maio. Forças da GNR cercaram a Cova de Iria e Lúcia, aos 13 anos, foi presa pela segunda vez por uma patrulha a cavalo da GNR. No jornal A Guarda, um “republicano histórico” estranhou: “na França republicana”, os governos facilitavam as peregrinações a Lourdes, e nunca “o regime correu por esse motivo algum perigo”.

A aceitação de Fátima pelo “poder do Estado” não teve de esperar pela cumplicidade entre a ditadura de Salazar e a Igreja do cardeal Cerejeira nos anos 30, nem pelo fortalecimento da sua ressonância profética a partir da década de 1940. Resultou, em primeiro lugar, de um novo republicanismo, traumatizado pelo fracasso do “livre-pensamento”

O cerco de 1920 foi, em relação a Fátima, uma das últimas grandes exibições de poder dos “livre-pensadores”. A sua influência cairia dramaticamente nos anos seguintes, quando o presidente António José de Almeida (1919-1923), com o apoio do novo líder do PRP e chefe do governo, António Maria da Silva, pôs fim à “guerra religiosa”, ao mesmo tempo que a Igreja, através do Centro Católico, se desinteressava da “questão do regime”. A década de 20 teve momentos duros. Os governos tiveram de praticar uma austeridade violenta, para limitar uma das maiores inflações da Europa. Houve greves e terrorismo. Para viabilizar novas alianças, a elite republicana investiu fortemente no que pudesse servir como base de consenso. Foi uma época de ouro de eventos e cerimónias patrióticas, como a viagem aérea de Gago Coutinho e de Sacadura Cabral ao Brasil em 1922, ou a adopção pelo Estado do culto do condestável Nuno Álvares Pereira, beatificado em 1918 e a quem a república consagrou um “feriado cívico”, a “Festa da Pátria”, a 14 de Agosto. Mais uma vez, imitava-se a França: Nuno Álvares constituía, como Jeanne d’ Arc, um ponto de encontro entre a “fé patriótica” e a “fé religiosa”. Em 1921, a 14 de Agosto, houve grandes festas em Lisboa, com desfile militar, mas também missa. Os “livre-pensadores”, desesperados, declararam uma “Semana Anti-Clerical”. Estavam a perder. A prática religiosa recrudescera em Portugal, como na Europa, com a Grande Guerra. Nestes anos, como em França, só se falava das espectaculares conversões de escritores ateus: Gomes Leal, Guerra Junqueiro, Manuel Ribeiro, mais tarde Leonardo Coimbra. Até Afonso Costa, segundo os boatos, frequentava sessões espíritas em Paris.

O cónego Formigão procurou situar Fátima neste contexto. Em artigos no jornal Voz de Fátima, inseriu as aparições num triângulo nacional, situado no centro do país, cujos vértices seriam a Batalha, Fátima e Ourém, de que Nuno Álvares tinha sido conde. Estavam assim unidos o catolicismo e o patriotismo. A 10 de Abril de 1921, o bispo de Leiria participou com o Presidente da República na cerimónia de inumação do Soldado Desconhecido, no mosteiro da Batalha. As bombas que desconhecidos colocaram na capela da Cova de Iria, na noite de 5 para 6 de Março de 1922, demonstraram que Fátima já só podia ser atacada na sombra. Quando, em Maio, o governador civil de Santarém sugeriu que se proibisse a peregrinação, o novo administrador de Ourém respondeu que um tal acto só serviria para “desprestigiar a República”, e que não cumpriria nenhumas ordens nesse sentido, para o que já contava com o apoio de todos “os republicanos de várias cores do concelho”. Não precisou de se insubordinar, porque o governo, em Lisboa, apressou-se a esclarecer que nunca dera tais instruções ao governador civil (em Outubro de 1924, num novo momento de ascendência radical, houve outra tentativa de proibição, frustrada). O antigo administrador, Oliveira Santos, estava desconsolado: “A reacção vai triunfando”.

O último golpe no “livre pensamento” viria a 27 de Dezembro de 1922, quando o Mundo anunciou sensacionalmente que o Presidente da República iria ao Palácio da Ajuda, como os antigos reis, impor o barrete cardinalício ao núncio apostólico, como prova de que “o regime republicano é tolerante”. Almeida explicou então que a república, embora neutra, “tem especiais deferências” para com o catolicismo, por ser a religião da “quase totalidade da Nação”. Até Sebastião de Magalhães Lima, o Grão-Mestre da maçonaria, concordava: “A época dos mata-frades passou”. Para o Mundo, sempre o órgão do PRP, mas já com pouco em comum com o jornal de 1917, era uma excelente notícia: “Nunca mais poderão especular junto da pobre gente da província com a lenda de que a República odeia Deus, persegue e tortura os padres, profana os templos e impede o culto da religião católica”. Entretanto, a burocracia do Estado legalizava Fátima: a 12 de Maio de 1924, a Divisão de Estradas do Distrito de Santarém concedeu a primeira licença de obras na Cova da Iria, para os muros do recinto das aparições.

A aceitação de Fátima pelo “poder do Estado” não teve, assim, de esperar pela cumplicidade entre a ditadura de Salazar e a Igreja do cardeal Cerejeira nos anos 30, nem pelo fortalecimento da sua ressonância profética a partir da década de 1940. Resultou, em primeiro lugar, de um novo republicanismo, traumatizado pelo fracasso do “livre-pensamento” e fascinado pela ideia de um consenso de tipo religioso, que aliás inspirara o republicanismo europeu desde a “religião civil” de Rousseau. Mas resultou também da disponibilidade da Igreja em inserir o catolicismo na nação histórica, como um selo providencialista do patriotismo.

A história de Fátima está assim para além do fait-divers de uma suposta religiosidade rural, ou da guerra entre a Igreja e o Estado. Tudo é um pouco mais complicado. E no fim, para tornar a história ainda mais difícil, conviria regressar ao princípio, às três crianças de Aljustrel. Em 1921, quando duas já tinham morrido, a terceira desapareceu, internada em instituições eclesiásticas. Só em 1938, Lúcia voltou a falar em público, por intermédio de Antero de Figueiredo. Fátima, o livro do encontro, descreve-a como uma “figura meã de camponesa”, com “cara plebeia”, viva e jovial, talvez com uma “pontinha de génio”, igualmente dada a ditos humorísticos e a reflexões espirituais. Mas durante as conversas, Figueiredo reparou que em alguns momentos, de repente, havia nela uma “certa estranha expressão que surpreende e impressiona”: “Nos seus olhos, há lá dentro, lá no fundo, lá muito longe, um inatingível e insondável mundo”. Como em toda esta história.

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