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Entrevista com Fátima Lopes, apresentadora, a propósito do tema da saúde mental (burnout), no hotel Pestana Palace. Lisboa, 10 de Março de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR
Entrevista com Fátima Lopes, apresentadora, a propósito do tema da saúde mental (burnout), no hotel Pestana Palace. Lisboa, 10 de Março de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR
"Perdia-me no meio dos parágrafos. Ia a meio do parágrafo e já não me lembrava o que tinha lido no início."
"E há um outro sinal: chama-se tristeza. Há uma tristeza que se vai instalando."
"Se tivesse sido preguiçosa na parte que me competia, se calhar uma droga não tinha chegado."
"Às vezes somos nós próprios que boicotamos o processo. És tu que achas que vais ficar um bocadinho mais 'heroína'."
"Já não ficamos iguais. Ficamos com o sensor muito ativado para com as pessoas à nossa volta que tenham os mesmo sintomas."
"As pessoas não podem esperar que a recuperação de um burnout seja de novo um estalar de dedos, porque não vai acontecer. Não há milagres."
"Não é agradável sentir o que senti. Sentes que se continuares assim vais despistar-te em alta velocidade. Pior: pode ser um despiste do qual não haja retorno."
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FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Fátima Lopes e o burnout: "Quando queria respirar fundo cansava-me. Quando estás aí, já não dá. Estás em cima do risco vermelho"

Socorre-se todos os dias da agenda para perceber se está a esticar a corda, aprendeu a pedir ajuda e conta com família e equipa para lhe chamar a atenção quando o ritmo aumenta. Há três anos foi-lhe diagnosticado um princípio de burnout. “A Fátima está nas lonas”, ouviu do médico de família. Foi o clic que precisava para desacelerar. Na altura, a apresentadora de televisão Fátima Lopes tinha uma média de 12 horas diárias de trabalho: gravações, viagens, programas em direto e nem um único dia da semana para respirar. Assim foi durante cinco meses, embora os sinais estivessem todos lá: exaustão, noites mal dormidas, tristeza, falta de força anímica. Nesta entrevista da série “Labirinto – Conversas sobre Saúde Mental”, uma parceria do Observador e da Fundação Luso Americana para o Desenvolvimento, conta como foi decisivo tomar as rédeas do processo. “Estava nas minhas mãos sair dali. Se colocas esse poder nas mãos de outra pessoa ou simplesmente no fármaco que te vão dar a seguir, estás a demitir-te de um papel importante que tens com a tua saúde.” Chama a atenção para a importância de desligar e avisa que muitas vezes somos nós a boicotar o processo. “O céu deve estar cheio de pessoas insubstituíveis. Achas que vais ficar um bocadinho mais heroína se aguentares mais duas semanas? Não provas nada. Não receberás mais do que uma medalha de cortiça.”

Como era o teu ritmo em 2018? Nunca paravas, era isso?
Em 2018, o ritmo era alucinante. Calhou ter na mesma altura vários projetos profissionais ao mesmo tempo, que implicavam não ter dia nenhum de descanso. Tinha um programa diário, o A Tarde é Sua, e tinha um programa que passava no fim do dia, que gravava em Espanha, e ia sempre dois, três dias a Espanha para gravar uma média de 12 horas por dia. Depois, tinha ainda o Conta-me Como És, que gravava sempre que possível dois de cada vez, e que passava ao sábado. Portanto, de repente, os meus dias eram muito mais longos do que era suposto e as minhas semanas não tinham um único dia para respirar. E isto vai deixando um cansaço acumulado, que mais lá para a frente acaba sempre por trazer uma fatura que não é simpática.

E esse cansaço acumulou-se quanto tempo? Quanto tempo é que esse ritmo sem fins de semana e sem folgas se arrastou?
Ali pelo mês de outubro começou a acelerar. Novembro também, dezembro já foi acelerado, janeiro e fevereiro foram péssimos nesse aspeto, péssimos. Porque aí é que não restava quase tempo nenhum. Há que acrescentar a isto, ao tempo físico que não tens para descansar, o tempo que não tens para estar com as pessoas que são importantes para ti. Porque isto também é importante. Nós também nos equilibramos e também nos restabelecemos quando temos tempo para estar com os nossos e com as pessoas que nós amamos. Quando isso também não existe, não tens nenhum sítio onde faças uma descompressão daquilo que foi o teu dia, a tua semana, o teu mês. Para uma pessoa muito ligada à família como eu, em que é muito importante ter tempo para estar com os meus filhos, aquilo começou a pesar-me verdadeiramente. Então, ali pelo mês de fevereiro, o cenário já estava um bocadinho complicado para o meu lado.

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Quando vens muito acelerada, não vês sequer o botão para fazer o off. Ocupas o tempo, nem que seja o stress da tua vida pessoal. Acrescentas 40 coisas, porque estás habituada a trabalhar com 40 coisas ao mesmo tempo. Estás a olhar para o relógio e dizes: ok, é às cinco com o miúdo mas, não, então antes das cinco se calhar ainda consigo ir tratar de não sei o quê e mais não sei o quê. Tens de encafuar coisas para bater no ritmo em que te viciaste sem dar por isso.

Foram então cinco meses, que passaram até pela fase do Natal, a fase da família. E não havia tempo para a família. Lembras-te desse Natal?
Lembro-me perfeitamente. Ali do dia 15 de dezembro para o final já não estávamos com tantas gravações, porque é Natal e não há tanta disponibilidade. Só que já não consegui compensar o que trazia de trás. Porque depois há a agitação normal daquela época, o corre-corre. Portanto, não desliguei. E atenção a isto do desligar. O desligar é mesmo importante. Nós precisamos de momentos em que fazemos off. E temos mesmo de fazer off. Quando vens muito acelerada, não vês sequer o botão para fazer o off. Ocupas o tempo, nem que seja o stress da tua vida pessoal. Acrescentas 40 coisas, porque estás habituada a trabalhar com 40 coisas ao mesmo tempo. Então, aquela coisa simplesmente de encostar-me aqui e estou aqui sem pensar em grande coisa, relaxada, ok, tenho de ir ali à escola do meu filho, mas está tudo bem… já não sabes fazer assim. Estás a olhar para o relógio e dizes: ok, é às cinco com o miúdo mas, não, então antes das cinco se calhar ainda consigo ir tratar de não sei o quê e mais não sei o quê. Tens de encafuar coisas para bater no ritmo em que te viciaste sem dar por isso.

Então era quase uma adição, esse ritmo frenético tornou-se a única forma de vida.
Sim. O cérebro habituou-se a isso. O que acho que acontece muitas vezes nas situações de burnout é que tens o ritmo profissional e depois quando sais o teu cérebro não percebeu que saíste. E continua a exigir-te o mesmo tipo de ritmo. Então inventas coisas para manter o ritmo que conheces.

E falhavas? Nessa fase de alta intensidade de trabalho o teu desempenho profissional refletia-se?
Falhas, falhas. Falhas porque fazes tudo em esforço. A partir de determinado momento não te sai naturalmente. Estás cansada, estás exausta. Quer dizer, cansada é uma coisa, é um campeonato. O burnout, no meu caso princípio de burnout, mas é igual neste aspeto, não é cansaço: é exaustão. Fazes tudo com muito esforço! Quando digo muito esforço, é muito esforço! Imagina: tens de subir umas escadas. E aqui vamos ao esforço físico. Só de pensares, olhas para as escadas, trazes uma malinha, nada de especial, mas olhas para as escadas e dizes, ‘vou ter de subir isto tudo?’.

Um dos sinais mais evidentes do burnout é teres muita dificuldade em leres o que quer que seja sem te perderes. Estava a ler os textos do A Tarde é Sua para uma entrevista. Eu perdia-me no meio dos parágrafos. Ia a meio do parágrafo e já não me lembrava o que tinha lido no início.

É essa a diferença entre cansaço e exaustão? Pensar no mínimo esforço já é cansativo?
Cansa-te. Não tens força anímica. Quando digo que fazes tudo em esforço, é mesmo fazer tudo em esforço. Por exemplo, um dos sinais mais evidentes do burnout é teres muita dificuldade em leres o que quer que seja sem te perderes. Estava a ler os textos do A Tarde é Sua para uma entrevista. Eu perdia-me no meio dos parágrafos. Ia a meio do parágrafo e já não me lembrava o que tinha lido no início. Então tinha de voltar lá. E tens de fazer um esforço acrescido porque sabes que se não registares o parágrafo todo há metade da história que não vais apanhar. Consegues, mas esforçando-te ainda mais. E no meu caso, que tinha esta consciência, ainda te sentes mais aflita porque sabes o que está a acontecer. Fui tomando consciência do que me estava a acontecer.

A partir de quando, mais ou menos? Janeiro.
Ao fim dos primeiros três meses, até daquela ressaca do Natal em que o contacto familiar não foi tão calmo como gostaria. Mas não te apercebes disso na altura, apercebes-te depois. Em janeiro começo a perceber que qualquer coisa não está bem.

E era o quê? Essa exaustão?
É a exaustão, é a dificuldade de concentração, que é muita, a dificuldade de memorização, que é muita, o sono que não tem qualidade. Estás cheia de sono, deitas-te, dormes uma hora e estás acordada. E a partir daí, a noite é um combate. Estás deitada, à espera da oportunidade de voltares a adormecer, rezando a todos os santinhos para que seja um período um bocadinho mais alargado. Depois, há este tal cansaço que dizia, uma certa apatia. Há por um lado esta coisa de não parar, mas por outro lado há momentos em que te sentas e parece que estás anestesiada. Estás apática. Alguém vem, diz qualquer coisa que é suposto reagires, e não tens força para reagir. Ouves e dizes, está bem. Acho que são os momentos em que folgas interiormente sem te dares por isso. Dizes, está bem. Do género, agora não tenho de dizer mais nada, vou ficar por aqui. Esta questão da apatia também é importante. E há um outro sinal: chama-se tristeza. Há uma tristeza que se vai instalando. Há momentos em que estás triste na vida e sabes que tens razão para estar triste, porque estás a enfrentar um divórcio, morreu-te um parente, ficaste sem trabalho… Mas agora olhas para a tua vida de forma fria e com distanciamento e dizes que não há razão para estar triste. As coisas estão onde era suposto estar. Concretizei aquilo que queria, tenho as pessoas que amo. Estou triste porquê? Estás triste porque provavelmente tens um burnout, ou um princípio de burnout. E isso é como se mudasse a lente que tens perante a vida e vês tudo de uma forma distorcida.

Entrevista com Fátima Lopes, apresentadora, a propósito do tema da saúde mental (burnout), no hotel Pestana Palace. Lisboa, 10 de Março de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

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E isso tudo começou a aparecer? Começaste a ter consciência disso em janeiro?
Em janeiro. Nessa altura tinha acompanhamento por decisão minha, durante sete anos, de uma psicóloga, com quem fazia um trabalho de psicoterapia quando precisava, e também de coaching. E que me ensinou muito. É uma pessoa também muito treinada a ler e a ver estes sinais. E lembro-me que numa das consultas em janeiro disse-lhe, ‘oh Ana, estou aqui preocupada com uma coisa. Ando a sentir algumas coisas que tenho medo do que possam ser’. Ela perguntou-me o quê. E comecei a verbalizar o que acabei de contar. E ela disse, ‘eu já tinha notado. Acho que a Fátima está com um princípio de burnout, mas não sou médica. Por isso aconselho-a a procurar o seu médico quanto antes’. E foi o que fiz.

Já vamos então a esse processo de ir ao médico. A questão é: na altura — porventura hoje terás uma ideia diferente — não estavas a parar, não estavas a interromper esse ritmo frenético. Porquê? Porque não podias, porque achavas que ninguém te podia substituir?
Não, não, não! Isso não. O céu deve estar cheio de pessoas insubstituíveis. Não tenho nada essa ilusão, essa coisa de aquela pessoa ninguém a pode substituir. As únicas pessoas que não podem ser substituídas são as que estão no nosso coração. Os nossos pais não são substituíveis, os nossos filhos não são substituíveis, essas pessoas não são substituíveis. Agora, quando falamos de trabalho, é sempre possível substituir. Não podes estar à espera de, nessa substituição, teres uma cópia. Vem uma pessoa diferente, com uma personalidade diferente e vem fazer de modo diferente. Ponto final. Está feita a substituição, vamos ser pragmáticos, ok? Não era por isso. Era porque não me deixavam. O calendário que existia em termos de programação e em termos de gravações de programas não me deixava margem para fazer diferente.

Lembro-me perfeitamente que ele fez um exame qualquer às minhas pupilas e conforme tentou ver a reação — que era nenhuma pelos vistos —, usou a expressão que nunca mais me esqueci, e espero não me voltar a esquecer para não voltar a cair lá, que foi 'A Fátima está nas lonas. Está nas lonas, está em cima do risco vermelho. E portanto vamos ter de agir já para isto não dar asneira'.

Portanto estavas barrada, não podias mesmo. A sensação era que estavas cercada e não havia como dizer que não?
Vou dizer-te que se fosse hoje… eu não sou nada de arrependimentos, acho que a vida foi como tinha de ser, não me arrependo sequer do que vivi nessa altura, porque me deu uma consciência. Permitiu-me estar aqui a falar e a partilhar com as pessoas uma série de coisas que aprendi, vivendo na pele. Portanto não foi mau. Ganhei uma consciência maior. Mas se olhássemos com aquele olhar de então, se hoje estivesse de novo aí, fazia diferente? Fazia. Dizia que poderiam contar comigo, mas não tudo ao mesmo tempo. Se fasearem isto, contam comigo. Não conseguem fasear isto, então não podem contar comigo para três projetos porque eu sou só uma.

O erro foi teres dito que sim a vários projetos ao mesmo tempo?
Sim, sim. Esse foi um erro assumido.

Mas houve esse alerta em janeiro. Quando é que vais ao médico depois dessa consulta com a psicóloga?
Depois da consulta vou logo. Sou muito responsável com a saúde. Muito. Sei que há pessoas que não são. E que dizem sempre depois vou e depois passa. Não sou nada assim. Sou super responsável. Portanto marquei de imediato uma consulta com o médico de família e comecei a relatar-lhe o que estava a sentir, o que estava a viver e que tinha sido a minha psicóloga que me tinha dito que achava que estava na altura de ir a uma consulta. Ele é um médico muito experiente. Tem uma visão muito holística da saúde que a mim me agrada porque não consigo ter a acompanhar-me um médico que tenha uma visão muito quadrada. Sou uma pessoa que integra várias coisas na minha noção de saúde. Tem de ter obrigatoriamente a parte da meditação, a parte das caminhadas, uma série de práticas que para mim são importantes. E, portanto, um profissional que também me fala nisto e aceita, então sim, vamos fazer uma boa equipa. Ele ouviu e depois fomos medir a tensão arterial, uma série de coisas e lembro-me perfeitamente que fez um exame qualquer às minhas pupilas e conforme tentou ver a reação — que era nenhuma, pelos vistos —, usou a expressão que nunca mais me esqueci, e espero não me voltar a esquecer para não voltar a cair lá, que foi ‘A Fátima está nas lonas. Está nas lonas, está em cima do risco vermelho. E portanto vamos ter de agir já para isto não dar asneira’.

Se colocas o poder de sair dali nas mãos de outra pessoa ou simplesmente no fármaco que te vão dar a seguir, estás a demitir-te de um papel importante que tens com a tua saúde. Porque é a tua saúde, não é a minha. É a tua. Tens de fazer alguma coisa para a recuperar ou para a preservar. E se fores tu a fazer, como estás a fazer parte do processo, também vais valorizar isso.

E o que foi ‘agir já’?
Foi o que perguntei. Ele disse-me: ‘Vamos ter de fazer várias coisas. Vai ter de fazer medicação’. As pessoas que não tenham preconceito em relação à medicação, porque às vezes ela faz falta e ela existe para nos ajudar. Se nalgum momento precisarmos dela, não tenhamos medo de tomar, desde que seja devidamente acompanhado por um profissional e, por amor de Deus, não embarquem naquela coisa que algumas pessoas ainda dizem, que medicação desse género é para gente maluquinha. Não, não é para gente maluquinha, é gente que precisa de ajuda. Ponto final. E que teve a humildade de pedir ajuda. Sinal de inteligência. Vamos falar depois daquilo que é preciso mudar para sairmos daí. Primeiro, o médico disse-me, ‘vai ter de dar uma volta nessa agenda’. ‘Vai ter de falar com os seus diretores e vai ter de dizer que isto humanamente não é possível permanecer. Não é possível, porque a Fátima vai acabar por ter uma baixa, vai para casa e não vai uma semana. Porque até recuperar de um burnout, a Fátima vai ficar em casa uns bons meses. Por isso, se calhar era interessante mudar este plano de trabalho para que volte a viver, porque a Fátima não vive, só trabalha. Depois, nunca mais caminhou, nunca mais fez o seu Ioga, nunca mais fez nada e a Fátima fazia isso com regularidade. O seu corpo está a precisar e a Fátima também. Vai ter de regressar. Meditação: a Fátima tem meditado?’ E eu: ‘Não’. ‘Pois, mas a Fátima meditava. Está a precisar de voltar a meditar. Isso tem de estar na sua agenda, como estão na sua agenda as reuniões. Terceiro conselho: nesta fase tem que ser amiga de si própria e tem de se saber proteger. E isto quer dizer: não atende telefones de pessoas que sabe que são negativas, são depressivas, puxam-na para baixo. A Fátima não tem nem para si, muito menos para os outros. Portanto não vai atender o telefone. E isso não é porque é egoísta, é porque está a cuidar de si própria. A partir de agora vai-se escudar de tudo o que for negativo’. Daí eu dizer tantas vezes, atenção à comunicação social. Não injetem só nas pessoas coisas que as deixam deprimidas, tristes e sem esperança. Dêem-lhes o contrário porque elas provavelmente estão a precisar disso como de pão para a boca. Portanto deu-me este conselho: ‘Mantenha-se longe daquelas pessoas que já sabe que drenam a sua energia, drenam a sua esperança, e faça só aquilo que lhe apetece’. Foi esse o último conselho: faça o que lhe apetecer. ‘Está em casa, apetece-lhe caminhar? Obviamente tem as suas obrigações, tem de as cumprir. Se é horário de trabalhar, pois com certeza tem de ir trabalhar. Mas chega a casa, tem 40 tarefas para fazer da casa e dos filhos. Não lhe apetece. Não faça. Faça os mínimos olímpicos. O resto deixa para depois, porque a Fátima tem de estar primeiro’.

Ouvindo isto, o que sentiste? Qual foi a tua reação?
Que estava nas minhas mãos sair dali. E isto é muito importante. Se colocas o poder de sair dali nas mãos de outra pessoa ou simplesmente no fármaco que te vão dar a seguir, estás a demitir-te de um papel importante que tens com a tua saúde. Porque é a tua saúde, não é a minha. É a tua. Tens de fazer alguma coisa para a recuperar ou para a preservar. E se fores tu a fazer, como estás a fazer parte do processo, também vais valorizar isso. E numa próxima experiência, se ela existir, vais estar alerta mais cedo. Sabes o trabalho que te deu sair dali e portanto vais evitar voltar a repetir o mesmo erro.

Entrevista com Fátima Lopes, apresentadora, a propósito do tema da saúde mental (burnout), no hotel Pestana Palace. Lisboa, 10 de Março de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

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Então quer dizer que houve um — e vou usar uma palavra da moda — empoderamento pessoal? Não ficaste assustada? Não te deu para pensar que estavas numa linha vermelha que te poderia deixar muito mal?
Não fiquei. Sei que é uma palavra da moda, mas é uma palavra que é mesmo muito importante. Muitas vezes o que se passa com as pessoas é que das duas uma: ou por si, não são pessoas que fizeram um percurso em que se sintam empoderadas, ou então estão rodeadas de pessoas que não lhes dão a oportunidade de se empoderarem. O que o meu médico me fez, foi empoderar-me. Foi dizer-me, eu estou cá, sou profissional, estou na retaguarda, vou ajudar em tudo o que precisar de mim. Mas o grande caminho é feito por si. Eu só estou aqui por trás, a ver se precisa de mais alguma coisa, mas é a Fátima a fazer. E isto é muito importante porque dá-te uma consciência. Até da tua capacidade de sair de lá. E isto ajuda-te. Anímica e psicologicamente, ajuda-te. No dia em que começares a dormir bem, por exemplo, sabes que estás a dormir bem não só porque tomaste aquele comprimido que tens de tomar, mas porque voltaste a caminhar. E porque não te deitas sem fazer os cinco minutos de meditação. Então de alguma forma, estás grata a ti própria. Colaboraste nisto. E isto é extremamente importante. A maior tendência das pessoas é fazerem assim com a saúde: adoram sacudir a água do capote e esperar que alguém faça o milagre de Fátima por elas. Mas essa é a atitude menos interessante e também a atitude, diria, mais perigosa em relação à nossa saúde. Não te podes demitir porque há muita coisa que faz parte das nossas escolhas. Podes escolher. Não fazes nada e tomas os medicamentos, simplesmente. Uma coisa te garanto: vais levar muito mais tempo a recuperar. Ao fim de seis meses estava a fazer os desmame da medicação. E o meu médico deu-me os parabéns: ‘Nunca tive uma paciente que tão rapidamente recuperasse, mas também nunca tive uma paciente que se empenhasse tanto como a Fátima se empenhou.’

Então vamos olhar para essa terapêutica, ponto a ponto: falar com os diretores e dizer ‘isto não pode ser assim, preciso de mudar o meu ritmo’? Isso aconteceu? Não disse só: ‘Preciso de mudar o meu ritmo’?
Disse: ‘Fui diagnosticada com um princípio de burnout, o mais normal seria tirar uma baixa e ir para casa recuperar. Não o vou fazer, porque vocês vão mudar isto. Não têm outra hipótese. Se vocês não mudarem isto, terei de ir para casa’.

Às vezes somos nós próprios que boicotamos o processo. És tu que achas que vais ficar um bocadinho mais "heroína" se aguentares mais aquelas duas semanas. "Vou provar que consigo...". Vais provar o quê? Não vais provar nada. Vais estar a arriscar mais auto destruíres-te. Não provas nada. E volto a dizer, não receberás mais do que uma medalha de cortiça.

E mudaram?
Mudaram.

Como é que então passou a ser?
Passou-se a organizar de uma forma diferente. Passei por exemplo, a folgar. Em vez de fazer o A Tarde é Sua todos os dias, havia um dos dias que não fazia, exatamente porque também trabalhava aos fins de semana. Então havia um dia para desligar a máquina. Todo o plano foi organizado de outra maneira, de forma a que já integrasse descanso. Tens de responsabilizar as pessoas quando é assim. Em Portugal, nas empresas, ainda não temos uma cultura generalizada de cuidar das nossas pessoas. E esta frase feita que vou usar é mesmo importante: as pessoas são mesmo o mais importante das empresas. E quanto mais as cuidares, mais tens gente capaz de produzir bem. E melhor essa empresa vai avançar. Não é uma perda de tempo e uma perda de dinheiro. É o melhor investimento que podes fazer. Ainda há poucos dias estava numa conferência com outros oradores a debater o problema da falta de mão de obra em Portugal e uma especialista na área da hospitality, que trabalha na área do turismo, dizia isto: ‘Enquanto as empresas em Portugal não perceberem que investirem nas pessoas é o melhor investimento que podem fazer, nós vamos andar sempre a um ritmo inferior ao dos outros países’.

Portanto, essa parte foi rapidamente resolvida e pacificamente. Não houve a tentação de pensar em acabar só mais um programa ou dois, esticar só mais um bocadinho e responder só a mais um mail? Não tiveste nunca essa tentação, essa vontade?
Não dava. Sabes que quando queria respirar fundo cansava-me? Quando estás aí, já não dá. Estás em cima do risco vermelho. É como se sentisses que ele te queima os pés. Se continuares ali, tens de ter consciência que estás a decidir. Só mais dois programas? Ok, tudo bem, mas há um risco. Tudo tem um risco. As nossas decisões têm todas um risco. Continuas no risco vermelho e é essa a tua decisão. Porque só faltam mais dois programas, mais duas semanas. E permaneces neste ritmo. Está tudo bem, mas provavelmente depois destas duas semanas, e acabando isto, recebes a medalha de cortiça e vais para casa tirar a baixa que poderias não ter tirado e ficas lá três meses. Às vezes nós temos de ser um bocadinho frios. Primeiro com as nossas chefias, sermos muito pragmáticos e exigirmos respeito. Aqui foi fácil, porque toda a gente percebeu. Percebeu que com boa vontade de todo o lado, conseguimos organizar isto de outra maneira. Foi fácil de resolver esse lado com os meus diretores na TVI. Depois tens a parte contigo. Porque às vezes somos nós próprios que boicotamos o processo. És tu que achas que vais ficar um bocadinho mais “heroína” se aguentares mais aquelas duas semanas. “Vou provar que consigo…”. Vais provar o quê? Não vais provar nada. Vais estar a arriscar mais, a auto destruíres-te. Não provas nada. E volto a dizer, não receberás mais do que uma medalha de cortiça. Porque feitas as contas, no final nem ninguém se vai lembrar. Só tu te vais lembrar e só tu vais ter marcas desse momento e dessa decisão. Então o melhor é, deixa lá as medalhas de cortiça de lado, escolhe-te. Trata de ti, cuida-te, porque assim sim, serás um elemento muito válido nessa equipa e nessa empresa. E até um elemento humanamente mais capaz, porque passaste pela experiência do risco vermelho. Nós já não ficamos iguais. Ficamos com o sensor muito ativado para com as pessoas à nossa volta que tenham os mesmo sintomas. Depois disso, não imaginas as pessoas à minha volta que em particular chamei e disse, atenção, já reparei que se está a passar isto, isto e isto contigo, vê lá se isto não é um princípio de burnout.

Isso já aconteceu, depois de ter passado por esta experiência?
Isto já aconteceu. Porque passaste por lá. E sabes identificar. Há coisas que são marcas que ficam para a vida. Talvez porque a saúde mental passou a ser um tema bastante recorrente com a pandemia, não se pode falar nele de forma leviana. É uma coisa muito complicada. Não tenham dúvida nenhuma que Covid mais guerra na Ucrânia vai dar uma fatura muito pesada. Mas não podemos falar disto assim (estala os dedos). Não é assim. A marca fica para a vida. Haverá sempre momentos em que te lembras. Um exemplo: depois disto, já tinha saído da televisão, o ano passado, estava com tanto trabalho (graças a Deus, porque quando saí da televisão não tinha plano nenhum), que olhava para a minha agenda havia dias em que pensava ‘Meu Deus, onde é que vou enfiar isto tudo? Isto assim não vai dar espaço para descansar. E eu tenho de descansar, tenho de ter aqui momentos’. E, quando é assim, lembras o que viveste. Já agora uma dica: pede ajuda aos que estão à tua volta para também te ajudarem a sinalizar. Pede ajuda. Isto é um sinal de humildade e também uma oportunidade para as pessoas que gostam de ti te ajudarem no processo. A minha filha chama-me muitas vezes a atenção: ‘Oh mãe, não estás a exagerar? Oh mãe, outra vez? Uma noitada outra vez?’ Mas não é só a minha filha. As pessoas que trabalham comigo, na minha equipa, são pessoas que acompanharam este processo, gostam de mim, trabalham comigo, e são elas muitas vezes que me dizem ‘Fátima, é fim de semana, não vale a pena sequer tentares mandar o que quer que seja que nós não te vamos responder. Porque é fim de semana’.

Entrevista com Fátima Lopes, apresentadora, a propósito do tema da saúde mental (burnout), no hotel Pestana Palace. Lisboa, 10 de Março de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

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Vamos então perceber as linhas vermelhas que ficaram depois disso. Na altura, essa tua equipa percebeu o que te estava a acontecer?
A minha equipa não era exatamente toda a que está agora. Alguns elementos eram, outros não, e perceberam.

Não foi preciso contares…
Eu partilho. Não tenho medo de partilhar com as minhas pessoas, as da minha confiança. Tinha dificuldade numa coisa em que este princípio de burnout me ajudou. Não está totalmente superado, mas estou melhor do que estava. Tinha alguma dificuldade em pedir ajuda. Tentava fazer o máximo para não sobrecarregar os outros, para não incomodar. Achava que se calhar iam ficar aborrecidos de estar a pedir ‘ajuda-me aqui nisto, ou estou atrapalhada com este prazo’. Achava que não devia fazer isso, que era uma responsabilidade minha. Hoje não vejo as coisas assim. Pedires ajuda às pessoas que trabalham contigo e que respeitas e tratas bem — estas duas condições têm de lá estar —, não é seres (desculpem a expressão que é feia, mas é verdade) uma besta com quem trabalhas e depois quereres que as pessoas te ajudem e te cuidem, porque não vai acontecer. Ou então vai, mas porque têm medo de perder o ordenado. Mas isso é outra conversa. Uma coisa que fui aprendendo é que pedir ajuda é mesmo muito importante. E hoje peço ajuda. Às vezes ainda me acanho, porque penso que os outros também já têm as coisas deles. Mas estou melhor. Digo isto com toda a humildade e tenho 52 anos. Ainda preciso de ter um bocadinho mais de à vontade e dizer assim: ‘Dá mesmo para dividir isto comigo? É que estou aqui aflitíssima’.

Olho para aquele nome e digo, esta pessoa vai ficar 40 minutos ao telefone, mesmo que não lhe dê troco. Dos 40 minutos, vai estar 35 a queixar-se e 5 minutos eventualmente a perguntar, 'Estás bem, não estás, queres fazer qualquer coisa de divertido?' E 5 minutos, estou a ser generosa. Não atendas. Aí fui um bocado bruta.

Foi mais importante ter essa conversa com os diretores e reduzir drasticamente o tempo de trabalho ou ter esse tempo para o auto cuidado, as caminhadas, o Ioga e marcar isso na agenda? Foi também esse o fator que fez a diferença nesse processo de recuperação e de cura?
Na verdade, foram os dois 50/50. Porque se não tivesse havido essa conversa com os diretores não ganhava o tempo e o resto das coisas nunca iriam ser introduzidas. O tempo físico não dava. O dia não tinha mais horas do que aquelas 24. Se não existisse essa conversa prévia e se eles não tivessem redefinido o nosso horário de trabalho e o nosso planeamento, nunca tinha conseguido introduzir as outras ferramentas.

E era importante que estivessem presentes?
Era absolutamente fundamental. Gostava que esta mensagem passasse para as pessoas. A parte do exercício físico, a parte do dormir bem, a parte dos momentos de lazer, a parte deste tempo para os que amas, de te alimentares corretamente. Ainda não falei da alimentação. Neste corre-corre de horários, muitas vezes saltava refeições. E eu não salto refeições. Sou bastante responsável com a minha saúde e também com o cuidar da minha pessoa. Se sei por exemplo que não posso almoçar, então não saio de casa sem uma marmita. Sem vários snacks, para não ficar com fome. E naquela altura era tanta a correria que às vezes passava horas infinitas sem comer e nem me apercebia. Estava tudo errado. Mas tudo isto é muito importante. E esta é a parte que podes fazer. É bom, porque sabes que podes mudar algumas coisas. Então, introduzi estas ferramentas que estão na tua mão, não estão na mão de outros. Também te vai ajudar neste processo. E, psicologicamente, é um balão de oxigénio mesmo bom. Estou a conseguir fazer qualquer coisa diferente. Estou a conseguir mudar aqui qualquer coisa.

E aquela parte das relações tóxicas? Como é que se faz a triagem? Como é que se percebe?
Tu conheces as pessoas. Quando o teu telefone toca e olhas para um nome, sabes. Eu sei, tu sabes. As pessoas sabem. Olho para aquele nome e digo, esta pessoa vai ficar 40 minutos ao telefone, mesmo que não lhe dê troco. Dos 40 minutos, vai estar 35 a queixar-se e 5 minutos eventualmente a perguntar, ‘Estás bem, não estás, queres fazer qualquer coisa de divertido?’ E 5 minutos, estou a ser generosa. Não atendas. Aí fui um bocado bruta. Às vezes sou um bocado bruta. As pessoas dizem, ai mas a Fátima é muito sensível e respondo sempre: baixem a expectativa porque sou sensível, mas sou uma bocadinho bruta. Ou talvez excessivamente pragmática, não sei. Se disserem que sou um bocadinho bruta, não vou ficar ofendida com isso. Porque quando é assim, mato o mal pela raiz. O médico disse que é para não atender pessoas assim, não atendo, ponto final. E não atendia. Às vezes dava-me ao trabalho de mandar a seguir uma mensagem a dizer ‘não posso atender, depois explico-te’.

Isto de não atender os telefones não pode parecer que és desagradável e não pode levar-te a hesitar ?
Isso é um campeonato que já não assisto. A história do parecer mal, se calhar as pessoas vão ficar ofendidas… já não quero estar aí. As pessoas que te conhecem realmente bem sabem a massa de que és feita. E sabem que não és uma pessoa insensível. Se não atendes, há alguma razão. Se é uma urgência qualquer e não atendeste e a pessoa precisa mesmo de falar contigo, o mais provável é mandar uma mensagem a dizer que aconteceu um cataclismo. E então aí eu devolvia. Mas nestas situações, pelo menos naquele período, não me lembro de ninguém ter ligado com uma situação de vida ou morte. Eram situações daquelas que, como dizem os brasileiros, jogar conversa fora. Mas conversa fora que não me punha a sorrir. Se fosse uma coisa que me pusesse a sorrir, bem disposta, contar umas piadas, umas anedotas, sei lá, tudo bem. Mas agora a coisa do queixume, a crítica, o vê lá o que me aconteceu, blá, blá blá.. não! Agora não dá. Não vou dar para o peditório, já dei. Fiz um bocadinho isso. Expliquei a essas pessoas depois. Ou seja, meses depois. Porque este processo levou meses. Quando voltei a dar à costa, então aí expliquei. Passava-se isto assim, assim comigo e não estava capaz de atender o telefone. Quem quis ficar aborrecido ficou, mas ninguém ficou. Quem quis entender, entendeu.

Ao falares deste processo dá ideia que foi muito rápida a forma como percebeste que precisavas de mudar a tua vida. Foi mesmo assim? Essa consulta foi tão determinante que mudou tudo logo, as regras que definiste para ti própria foram imediatamente alteradas?
Essa consulta foi fulcral. Acho que aquilo que levei tempo foi a chegar à consulta. No sentido em que levei tempo a juntar os sintomas, levei tempo a partilhar com a minha psicóloga aquilo de que desconfiava, mas aí foi assim (num clic). Quando ela me diz, vá ao seu médico já, eu fui já. E quando ele diz, temos de atuar já, eu atuei já. Também é preciso ver que relação é que tens com o teu médico. Os nossos médicos conhecem-nos bem, mas nós também os conhecemos a eles. E se um médico me diz com os olhos muito abertos ‘A Fátima está nas lonas e temos de atuar já’, ele não me diz isto porque me quer assustar, porque ele não é uma pessoa que tenha tendência a assustar. Se ele diz isto, tem razões para me dizer. E não está a brincar. Então não brinques tu, porque trata-se da tua saúde.

Entrevista com Fátima Lopes, apresentadora, a propósito do tema da saúde mental (burnout), no hotel Pestana Palace. Lisboa, 10 de Março de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

A relação com o médico é então muito importante. Com estas alterações, quase que vale a pensar que a medicação não fazia falta nenhuma.
Fez. Na altura o médico explicou-me que naquela situação havia uma hormona qualquer, que agora já não lembro desses pormenores (essa parte eu não registei, é curioso!), que o meu corpo não produzia, pura e simplesmente. Sei que tomei uma medicação e que ao fim de seis meses fiz o desmame da medicação. Só precisei de tomar uma. E acho que só precisei de tomar uma porque o resto eu fiz certo. Se tivesse sido preguiçosa na parte que me competia, se calhar uma droga não tinha chegado. Mas assumi o compromisso com ele de que ia fazer aquilo tudo certinho. E ele disse, ‘então vamos fazer só isto. E tenho a certeza que com o seu empenho isto vai correr bem’. De novo, é a parte que tu podes fazer diferente. Não queres fazer mais nada? Queres que todos façam por ti? Então se calhar, não vais ter de tomar uma, vais ter de tomar duas ou três. E eu tomei apenas uma. Ele explicou-me o que era e o que não era e acho isso também muito importante. Não nos devem só prescrever qualquer coisa para tomar, sem nos esclarecerem o que nos estão a dar e porquê. E qual é o plano. Isso também nos ajuda a organizar a cabeça. Nós temos de saber que o nosso médico quando nos está prescrever esta substância tem como objetivo corrigir este e este défice ou este e este problema, que se as coisas correrem bem o plano são seis meses ou um ano ou o que for, que ao fim de x tempo o processo de desmame acontece desta maneira, que não é para falhar, porque tem estas e estas consequências. A informação é poder. Chama-lhe empoderamento se quiseres, mas é poder. E tens de a ter, para poderes fazer a tua parte. Simplesmente passar e dizer cumpra isto e tome? Não é uma medicina com a qual me identifique.

E o que sentiste? Que alteração física sentiste com a toma desse medicamento? Era dormir melhor?
Foi progressivo. Não foi instantâneo. Nada foi instantâneo, foi tudo progressivo. Juntaram-se várias ferramentas e elas depois vão-se ajudando umas às outras e vão atuando. Ali ao fim de mês e meio, dois meses, comecei a sentir melhoras. Comecei a sentir que já valia a pena ir para a cama, porque as noites já eram mais normais. Comecei a sentir que já tinha um bocadinho mais de energia.

A minha passada normal é larga. E naquela altura era uma passada lenta. Era passada de passeio, de quem vai ver as monstras. Também foi importante ele alertar-me para isso. Como quem diz, não ponha a fasquia lá em cima, porque não só não não vai conseguir, como também não é interessante que tente conseguir. Ponha a fasquia cá mais em baixo, porque é onde ela está agora neste momento.

Já era possível subir as escadas sem suspirar antes?
Sim. Mas não era possível ainda fazer caminhadas. Sou das que gosto de caminhar muitos quilómetros. Não era possível. Na altura o meu médico disse-me, ‘as caminhadas que a Fátima sempre gostou tanto de fazer e que não faz, agora têm de ser à dimensão da sua capacidade atual. Não se pode lançar para as caminhadas a esperar fazer cinco ou seis quilómetros como fazia. Neste momento não tem capacidade para isso. Se a sua capacidade for para 300 metros, é 300 metros, e não estica a corda. E ótimo, já fez 300 metros’.

E eram mesmo assim curtinhas, as primeiras caminhadas?
E eram mesmo assim. E lentas. Sentia-me muito cansada. Tenho um passo muito rápido. Os homens até costumam brincar comigo porque, às vezes, quando vou a caminhar com um homem que até é bastante mais alto do que eu, normalmente tem dificuldade a acompanhar-me porque tenho passada de atleta. A minha passada normal é larga. E naquela altura era uma passada lenta. Era passada de passeio, de quem vai ver as monstras. Também foi importante ele alertar-me para isso. Como quem diz, não ponha a fasquia lá em cima, porque não só não não vai conseguir, como também não é interessante que tente conseguir. Ponha a fasquia cá mais em baixo, porque é onde ela está agora neste momento. E é aí que é a sua realidade. Depois vamos subindo progressivamente, mas a fasquia agora está aí. Vá lá para os seus 300 metros e está muito bem. E isto é uma recuperação lenta. As pessoas não podem esperar que a recuperação de um burnout ou de um princípio de burnout seja de novo um estalar de dedos, porque não vai acontecer. Não há milagres.

Não há milagres, mas ao fim de seis meses houve esse processo de desmame, o que pode ser já uma vitória.
Foi muito bom, uma vitória. Não imaginas a felicidade quando fui à consulta e o meu médico me deu os parabéns. Disse-me: ‘Dou-lhe os meus parabéns, você foi empenhadíssima neste processo’.

Mas o que é que ele mediu nesses seis meses para já perceber que o risco tinha diminuído
Porque nas consultas que tivemos pelo meio, ia-lhe dizendo o que estava diferente. O recuperar o sono, o já não me sentir tão cansada, o já sentir que era capaz de me divertir. As pessoas vão perceber isto: imagina o que estares num jantar de amigos, só com pessoas de quem gostas e com quem normalmente te divertias, rias, e sentes-te numa ilha. Está toda a gente a rir-se à tua volta, os teus amigos, e estás calada. É como se fosse só barulho ali à volta. Eles dizem uma coisa com imensa piada, toda a gente se riu, e estás apática. Aos poucos, vais sentido que o teu espírito regressa. Sou uma pessoa, muitos podem não ter esta ideia, mas sou muito divertida e muito brincalhona. Aos poucos, a pessoa divertida e brincalhona foi voltando. Então, se estás atenta, vais dizendo isso ao teu médico. Vais revelando as coisas que estão a acontecer e é aí que se percebe se há condições ou não para fazer este desmame. Se não há, não tem mal nenhum. Não és fraca por isso. Nós temos a capacidade que temos, não somos todos iguais. Se há, vamos começar. Não há, vamos prolongar isto mais um bocadinho, até que estejamos em zona de segurança para deixar a medicação. Porque aquela coisa de entrar e já estar com a pressa de sair, normalmente dá asneira da grossa. Não vale a pena.

Portanto, entraste na zona de segurança. Quando se está nessa zona e se passa por este processo e há uma vitória a tentação é: agora já posso esticar um bocadinho a corda porque já sei voltar para trás?
Não. O que acontece às vezes, pelo menos comigo aconteceu e se calhar acontece com muitos seres humanos, é que nós às vezes temos memória curta. Por isso o ano passado várias vezes tive de dizer, ‘calma, Maria de Fátima, calma’. E a equipa à volta também: ‘Calma!’ Não pode ser assim. A tua vida não pode continuar neste ritmo mais tempo. Imagina que tenho duas semanas daquelas loucas. Campainhas à minha volta! E não era eu, era quem trabalha comigo a dizer: ‘Não vai continuar assim, pois não? Tens consciência de que isto não vai poder continuar assim? Tens de descansar’. E isso faz-te refrescar a memória, porque nós temos todos memória curta. O ser humano tem memória muito curta, aliás a história está cheia de exemplos. A História e as histórias da vida das pessoas estão cheias de exemplos de que às vezes nos esquecemos com alguma facilidade das coisas. Por isso, de vez em quando, convém fazer um refresh, para nos lembrarmos.

Então agora, neste momento, os sinais de alarme que tens, até são da equipa à volta? Não é olhar para a agenda e vê-la muito preenchida uma semana ou duas? Não voltaste a ter esse cansaço, irritação, o sono mais irregular? Ou isso aparece ainda?
Mesmo sem a equipa dizer nada, olhas para a agenda e vês logo, vais-te matar no processo se continuares assim. Sabes disso. Falo por mim que passei por lá. Agora, é muito mais fácil se quem está à tua volta reforça a mensagem. Porque te ajudam. E de novo, se são tua equipa, ajudam-te a vários níveis. Primeiro, chamando a atenção, e se calhar tirando peso das costas. A minha equipa faz isso comigo muitas vezes: ‘No que é que te podemos ajudar? Prazos: o que é tens com prazos?’. ‘Isto, isto e isto’. ‘Mas isto tem mesmo de ser nesta data? Não achas que é possível falar com eles e passar para dali a um mês e meio depois?’. ‘Se calhar até é’. Às vezes a equipa só faz o seguinte: pega em ti pelo bracinho, puxa-te para trás, e vamos olhar para a tua vida um passo para trás e ver se isto não é alterável. E vês que é alterável. Eles ajudam-te, mas tens de ter consciência quando olhas para a agenda. Se me perguntares, já estás aí? Aí já. Hoje tinha uma manhã onde para cumprir os horários não me ia sobrar tempo para almoçar. Tenho tido dias muito cheios. Peguei no telefone, desmarquei a última coisa antes da conversa contigo e disse: isto pode passar para a semana que vem, não tem problema nenhum, não é uma coisa com prazo. Passou para a outra semana. Almocei tranquilamente com a minha mãe em casa, enquanto dei dois dedos de conversa com ela, tranquila. Maquilhei-me tranquilamente e vim para aqui. São estas pequenas coisas.

Não é agradável sentir o que senti. Não é bom. Sentes que se continuares assim vais despistar-te em alta velocidade. E pior: pode ser um despiste do qual não haja retorno. E há casos de pessoas que tiveram burnouts muito complicados e nunca mais foram as mesmas. Não recuperaram nunca efetivamente.

Essas pequenas coisas estão sempre presentes nas decisões do dia a dia. Mesmo hoje?
Têm de estar. Para mim e para toda a gente. Isto é permanente. Ou então decides que queres sempre viver em stress absoluto. Há pessoas que se viciaram no stress. Se o teu cérebro só conhece essa linguagem, quando não tiveres trabalho a stressar-te vais arranjar coisas pessoais que te stressem. Que é para estares no padrão que conheces. Aquilo é o teu modus operandi. Sempre a 4 mil. Se estou sempre a 4 mil, não me ponham a 2 mil que vou ficar: e agora, e agora? O que é que eu faço? Há pessoas que não sabem não fazer nada, porque nunca o fizeram, nunca experimentaram. Porque é que se diz que quando entramos de férias, a primeira semana é para desligar, na segunda é que é para desfrutar? Porque nós, seres humanos, estamos tão habituados a um determinado ritmo que quando de repente dizem off nem sabes como aquilo se faz. Off? Então mas o mail, o telefone… Ficamos sem jeito. Precisamos de perceber que aquilo é seguro, desligar, para depois então desligarmos.

Mas consegues desligar? Tens o botão de off?
Quando vou de férias consigo desligar.

Logo no primeiro dia?
Não, não. Se dissesse isso estava a mentir. Levo pelo menos uns três dias. Três dias para perceber que posso não fazer nada. Posso simplesmente existir. Ao fim de três dias, finalmente digo, ok, isto veio para ficar, posso mesmo desligar, posso mesmo não fazer nada e agora sim vou desfrutar. Mas devem ser muito poucas as pessoas que conseguem este desligar automático, se é que é possível fazer um desligar automático. Talvez seja possível se o tipo de vida profissional que tens é uma coisa por si muito tranquila, muito serena e uma coisa com baixíssimo stress. Então aí a passagem para umas férias deve ser uma espécie de prolongamento. Agora nestas vidas profissionais que nós escolhemos, não é assim. Nós andamos sempre em rimo muito acelerado. E a passagem não é simples, automática e fácil. Precisamos de dar uns dias a nós próprios, negociarmos com o nosso espírito e chegar a uma base de acordo e depois, então, entram as férias.

A vida passou a ter outro sabor depois desta experiência?
Completamente. Não é agradável sentir o que senti. Não é bom. Sentes que se continuares assim vais despistar-te em alta velocidade. E pior: pode ser um despiste do qual não haja retorno. E há casos de pessoas que tiveram burnouts muito complicados e nunca mais foram as mesmas. Não recuperaram nunca efetivamente. Nunca mais tiveram a mesma memória, nunca mais tiveram a mesma capacidade de concentração, nunca mais tiveram a mesma capacidade de trabalho. E se nós sabemos destes exemplos, então convém não chegar lá.

Agradecimentos: Pestana Hotel Group

Labirinto – Conversas sobre Saúde Mental” é uma série de entrevistas do Observador em parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento. Em cada conversa, os convidados — figuras públicas de várias áreas, da política ao entretenimento — fazem um relato pessoal e detalhado da forma como lidaram ou lidam ainda com problemas de saúde mental — os sintomas, os tratamentos, as recaídas e a recuperação — num esforço para combater o estigma associado a este tipo de doenças.

Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.

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