O pedido já foi disparado por vários lados e pelas mãos do próprio presidente ucraniano, numa publicação na rede social Twitter, que tem sido a sua melhor arma para comunicar. Além de pedir que o processo de entrada na União Europeia fosse acelerado, Volodymyr Zelensky pediu também que fosse ativado o mecanismo de no-fly zone, ou seja, que o espaço aéreo do país fosse encerrado, dando assim legitimidade aos países da NATO para abater qualquer aeronave (ainda que o foco esteja na aviação militar russa) que sobrevoasse a Ucrânia. A resposta por parte dos países ocidentais, que tantas sanções têm aplicado ao Kremlin, não foi porém aquela que Zelensky queria ouvir. Especialistas atestam que aplicar uma “no-fly zone”, como se denomina, seria uma declaração de guerra que podia facilmente escalar para uma Terceira Guerra Mundial.
O regime de no-fly zone, ou exclusão do espaço aéreo, pode ser aplicado localmente para proteger espaços sensíveis, como residências oficiais, ou mesmo durante alguns eventos desportivos ou grandes reuniões, como explica a BBC. Mas, num cenário militar, o controlo do espaço aéreo para evitar ataques ou mesmo voos de vigilância é feito por militares e de uma única forma: abatendo todas as aeronaves que violem esta exclusão.
Had a phone conversation with Chancellor @OlafScholz. Spoke about Russia's shelling of residential neighborhoods in Ukrainian cities during peace talks. Emphasized the need to close the sky over ????????. The work on Ukraine's accession to the #EU needs to be accelerated.
— Volodymyr Zelenskyy / Володимир Зеленський (@ZelenskyyUa) March 1, 2022
Significa isto que, a ser declarada uma no-fly zone na Ucrânia, com a chancela da NATO, todos os seus Estados-membros poderiam intervir e responder às forças russas, abatendo as suas aeronaves. Uma possibilidade que, para os especialistas, poderia significar uma escalada do conflito. “Não se declara apenas uma no-fly zone. Ela tem que ser imposta”, explicou Philip Breedlove, um ex-general da Força Aérea norte-americana, que trabalhou para a NATO entre 2013 e 2016, à revista Foreign Policy, mostrando como uma decisão destas não pode ser tomada de ânimo leve. E que uma medida destas só pode ser levada a sério se tiver apoio de uma organização como a NATO, ou mesmo das Nações Unidas, com a assinatura do Conselho de Segurança, onde a Rússia ocupa um dos cinco lugares reservados aos membros permanentes.
“É o mesmo que a guerra. Se vamos declarar uma no-fly zone, temos que derrubar a capacidade do inimigo de atirar e afetar a nossa no-fly zone”, acrescentou o especialista.
O próprio secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg, descartou segunda-feira que a aliança atlântica militar se envolva no conflito: “Não temos intenção de nos mudar para a Ucrânia, seja por terra ou pelo ar”. “Temos a responsabilidade de garantir que isto não sai do controlo, que aumente ainda mais a preocupação com uma guerra de pleno direito na Europa envolvendo aliados da NATO”, explicou, preferindo ajudar a Ucrânia com o fornecimento de armas para que ela consiga derrubar o inimigo. “Eu não vou desencadear uma guerra europeia, mas o que vou fazer é ajudar a Ucrânia a lutar nas ruas com todos os equipamentos que pudermos”, disse Stoltenberg.
O receio de uma Terceira Guerra Mundial e de um confronto nuclear
Fechar o céu da Ucrânia, obrigando a uma eventual resposta militar à Rússia por parte dos aliados da NATO, podia mesmo não ser o ponto final da guerra que se trava há uma semana no país — e podia conduzir a uma Terceira Guerra Mundial e a um confronto nuclear. Olga Oliker, diretora do Grupo Internacional de Crise para a Europa e Ásia Central, afirma mesmo que a exclusão do espaço aéreo não é uma solução mágica para o conflito. “Uma zona de exclusão aérea não é um guarda-chuva mágico que impede os aviões de voarem numa determinada área. É uma decisão de atirar sobre aeronaves que voam numa determinada área, incluindo com os próprios meios aéreos. Colocar a Ucrânia numa zona de exclusão aérea é ir para a guerra”, cita o New Statesman.
Ao Defense News, jornal especializado em temas militares, uma ex-piloto de F-16 e membro do Instituto Mitchell de Estudos Aeroespaciais também lembrou que apesar de esta parecer a solução mais simples, as suas consequências podem ditar precisamente o contrário: “Por mais que gostássemos de dizer que as zonas de exclusão aérea são super fáceis e é uma maneira limpa de negociar, isso simplesmente não é o caso”, disse Heather Penney.
Recorde-se que, no domingo, quando se discutiam as negociações entre a Ucrânia e a Rússia, Vladimir Putin anunciou que, perante as “declarações agressivas” da comunidade internacional, iria colocar em alerta máximo as forças nucleares de dissuasão. O que também aumenta o receio de uma escalada da violência, caso haja uma intervenção de outros países no conflito.
Já na segunda-feira, numa conferência de imprensa, o porta-voz da Casa Branca considerou que este bloqueio “não seria uma boa ideia”. Segundo Jen Psaki, o presidente norte americano, Joe Biden, não quer mesmo arriscar colocar os seus militares num conflito contra a Rússia. “Isso significaria, essencialmente, que os EUA estariam a derrubar os aviões russos. Isso é definitivamente uma escalada”, afirmou.
The U.S. is not setting up a no-fly zone in Ukraine. pic.twitter.com/aRlylXJboF
— Maj. Gen. Patrick Ryder (@PentagonPresSec) March 1, 2022
Perante a invasão da Ucrânia pela Rússia e as vítimas que já começam a contabilizar-se, o deputado britânico Tobias Ellwood, que preside ao Comité de Defesa do Parlamento inglês, ainda teve um discurso diferente do norte-americano, apoiando a ideia da zona de exclusão aérea parcial ou total, a acrescentar às sanções económicas já assinadas por vários países. “Há um dever de cuidado para intervir previsto na convenção das Nações Unidas. O mínimo que podemos fazer é oferecer uma no-fly zone“, disse. O deputado referia-se ao artigo 42º da Carta das Nações Unidas, que prevê a aplicação de medidas coercivas que permitam “manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais” com recurso a forças aéreas, navais ou terrestres, quando o Conselho de Segurança considerar que outras medidas — como as sanções económicas — não são suficientes ou não estão a funcionar.
No entanto, o governo britânico rapidamente veio rejeitar esta proposta, porque isso significaria colocar os meios aéreos britânicos num conflito com os russos. “Claro que essa decisão nos colocaria numa situação de confronto com a Rússia. Mas, se não o fizermos, estamos só a adiar as batalhas, que se tornarão maiores”, temendo Ellwood que se estendam aos Balcãs e lembrando que o Reino Unido dispõe de “meios aéreos superiores”.
O secretário de Defesa do Reino Unido, Ben Wallace, porém, deixou claro que a Grã-Bretanha não alinharia na ideia de impor uma zona de exclusão aérea sobre a Ucrânia porque uma ação contra aviões de combate russos desencadearia uma “guerra em toda a Europa”.
Aliás, numa visita à Polónia, esta terça-feira, a questão da imposição de uma no-fly zone foi mesmo levantada por uma ativista ucraniana, numa conferência de imprensa do primeiro-ministro britânico, Boris Johnson. “Tem estado a falar do estoicismo do povo ucraniano, mas as mulheres e crianças ucranianas sentem um profundo medo por causa das bombas e dos mísseis que estão a cair do céu”, disse Daria Kaleniuk, diretora executiva do AntAC, um organismo ucraniano que se dedica a investigar, denunciar e combater a corrupção na Ucrânia.
“Os ucranianos estão desesperadamente à procura de direitos para proteger o espaço aéreo, pedem uma no-fly zone. Qual é a alternativa a isto?”, interrogou. Também a resposta que recebeu não era aquela que queria ouvir. O primeiro-ministro, Boris Johnson, lamentou mesmo não poder responder e reproduziu o que já tinha dito ao presidente ucraniano. “Como disse a Volodymyr Zelensky, infelizmente, as implicações dessa medida levariam a que o Reino Unido abatesse aviões russos. E isso não é algo que possamos fazer ou consideremos plausível.” Porque, concluiu Boris Johnson, “as consequências seriam, verdadeiramente, muito, muito difíceis de controlar”, disse.
O mecanismo da zona de exclusão aérea já foi usado três vezes nos últimos anos. Após a primeira Guerra do Golfo, em 1991, quando os EUA e os seus aliados estabeleceram duas zonas de exclusão aérea no Iraque para evitar ataques contra alguns grupos étnicos e religiosos. E isso foi feito sem o apoio das Nações Unidas. A no-fly zone voltou a ser instituída na Bósnia, nos anos 90, e na Líbia, em 2011.
Países deixam de voar para a Rússia e recuperam rotas da Guerra Fria
Se o regime de no-fly zone é uma declaração de guerra, a limitação ou mesmo a suspensão dos voos russos acabou por tornar-se numa sanção contra o país — uma medida que foi sendo aplicada ao longo deste fim de semana por vários países e acabou, depois, por ser assumida pela própria União Europeia. A decisão de encerrar o espaço aéreo a “aviões detidos pela Rússia, registados na Rússia ou controlados pela Rússia” não implica uma intervenção militar e deixa Moscovo ainda mais isolada no conflito, se somarmos também outras medidas, como o bloqueio do SWIFT ou as transações com determinadas empresas russas.
A decisão foi subscrita pela presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, durante a tarde de domingo. “Não vão poder aterrar, descolar ou sobrevoar o território da União Europeia. Incluindo jatos privados de oligarcas”, avançou a presidente da Comissão Europeia, em conferência de imprensa e no Twitter.
First, we are shutting down the EU airspace for Russian-owned, Russian registered or Russian-controlled aircraft.
They won’t be able to land in, take off or overfly the territory of the EU.
Including the private jets of oligarchs. pic.twitter.com/o551M9zekQ— Ursula von der Leyen (@vonderleyen) February 27, 2022
A Rússia apressou-se a responder que faria o mesmo em relação a 36 países — a maior parte dos países europeus (e, entre eles, Portugal) —, mas também ao Canadá.
Esta decisão obriga a que as companhias aéreas readaptem as suas rotas, o que pode trazer custos acrescidos às viagens. Segundo o ex-diretor da Agência Nacional de Aviação Civil brasileira, Ricardo Fenelom Junior, “companhias europeias que, eventualmente, precisavam de utilizar o espaço aéreo da Rússia para realizar voos à Ásia, por exemplo, terão mais despesas, pois mudanças de trajetos tornam os voos mais longos e traduzem-se num aumento de custo, com mais gasto e combustível”, disse ao Veja.
Mas, assim que o conflito militar começou, houve imediatamente companhias aéreas a adaptarem rotas, devido ao consequente encerramento do espaço aéreo ucraniano. Tal como então noticiou a Aljazeera, com a Ucrânia a bloquear o seu espaço aéreo e os preços dos combustíveis a dispararem, houve companhias a implementar mudanças. A Moldávia também interrompeu os voos, enquanto a Bielorrússia limitou os voos civis. Já a Administração Federal de Aviação dos EUA, por exemplo, traçou uma área mais vasta que a Ucrânia, impedindo as suas companhias de ali operarem por motivos de segurança.
Também no sábado, quando pelo menos o Reino Unido, a Polónia e a República Checa já tinham anunciado deixar de voar para a Rússia, a CNN dava conta dos ajustes que as companhias aéreas tiveram que fazer por causa do conflito entre a Rússia e a Ucrânia, o que teve implicações, sobretudo, para os voos de longo curso para países asiáticos que por ali passavam.
Segundo Mikael Robertson, fundador do serviço Flightradar24 (de onde o Observador retirou a imagem que mostra o espaço aéreo ucraniano e russo vazios), muitos dos voos mundiais passam pela Rússia. Por exemplo, do Reino Unido chegam a ser 12 os voos diários que por ali passam com destino a Hong Kong ou à Índia. Do espaço europeu, são centenas de voos; e, dos Estados Unidos, a maior parte do tráfego para a Ásia passa numa pequena área russa.
A única opção para contornar a Rússia agora é pelo sul, através do Mar Negro e do Cáucaso, ou pelo norte, passando pela Gronelândia para o Alasca, depois pelo estreito de Bering, para depois chegar ao Japão, por exemplo. Eram estas, aliás, as rotas usadas durante a Guerra Fria quando se queria contornar o bloco soviético — e que poderão agora ser recuperadas.