O momento não durou muito mais que três minutos. Quase sem desviar os olhos, Boris Johnson ouviu o apelo emocionado de uma mulher ucraniana para que a NATO intervenha de forma vigorosa na guerra que a Ucrânia está a travar contra a Russa dentro do seu próprio território. “Tem estado a falar do estoicismo do povo ucraniano, mas as mulheres e crianças ucranianas sentem um profundo medo por causa das bombas e dos mísseis que estão a cair do céu”, disse a mulher que interpelou o primeiro-ministro britânico durante uma conferência de imprensa na Polónia. As palavras de Daria Kaleniuk estão a dar a volta ao mundo.

Daria Kaleniuk é diretora executiva do AntAC, um organismo ucraniano que se dedica a investigar, denunciar e combater a corrupção na Ucrânia. Esta terça-feira, na Polónia, Daria pegou no microfone e falou sobre uma mulher, elemento da sua equipa, que está com os dois filhos em Bila Tserkva, 86km a sul de Kiev, rodeada de militares russos e “com tanto, tanto medo de vir a ser atingida a tiro”; também falou da cidade em que estudou e que esta terça-feira foi “completamente bombardeada” — “a zona da baixa está destruída”. E depois questionou Boris sobre a resistência do Ocidente para avançar com o regime de no-fly zone (proibição de sobrevoar) na Ucrânia.

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Na prática, isso significaria que o espaço aéreo do país ficaria interdito à aviação. Maior risco? O de que a zona de exclusão fosse violada, por exemplo, pela aviação russa, obrigando a uma intervenção militar dos países que tivessem decretado a proibição de voos sobre a Ucrânia, o que, por seu lado, obrigaria a um escalar do conflito para proporções mundiais.

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Na sua intervenção — ou apelo à ação —, Daria Kaleniuk reconheceu isso mesmo. Mas insistiu: “Temos ouvido a resposta de que isso desencadearia a Terceira Guerra Mundial. Mas qual é a alternativa, senhor primeiro-ministro?”

Kaleniuk continua: “[A alternativa] é vermos como as nossas crianças, em vez de aviões, protegem a NATO dos mísseis e das bombas? Qual é a alternativa à no-fly zone?”, questiona-se. “Nós temos aviões aqui. Temos um sistema de defesa aéreo na Polónia, na Roménia. A NATO tem este sistema de defesa aéreo. Pelo menos este sistema podia proteger a zona ocidental da Ucrânia, para que estas crianças, estas mulheres, pudessem chegar à fronteira. É impossível, agora, atravessar a fronteira. Há 30km de minas. Imagina-se a atravessar a fronteira com um bebé? Ou com duas crianças?”

“Os filhos de Putin e Abramovich estão a salvo na Europa”

Boris Johnson, que seguiu a intervenção atentamente, ainda ouviu a responsável do AntAC acusar o líder britânico de não ir a Kiev ou a Lviv por ter “medo” do conflito em curso — a deslocação desta terça-feira ao flanco oriental da NATO incluiu deslocações à Polónia e à Estónia, países-fronteira com a Ucrânia e com a Rússia, respetivamente. E também ouviu Kaleniuk defender que o receio da NATO de um conflito mundial já não faz sentido. “Ele já começou, e são as crianças ucranianas que estão a receber o golpe.”

Os membros da Aliança Atlântica têm-se recusado a avançar com uma intervenção militar na Ucrânia e a um confronto direto com as tropas de Moscovo, alegando que a Ucrânia não é um país NATO e que a presença de tropas dos aliados no país levaria a um considerável escalar da dimensão do conflito — Boris voltou, de resto, a frisar essa ideia na resposta que deu a Daria Kaleniuk.

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Sanções. Essa tem sido a solução apresentada pelas potências e blocos políticos do ocidente — nomeadamente, a União Europeia e os Estados Unidos, numa posição a que veio juntar-se mais recentemente, e de forma inesperada, a própria Suíça, historicamente neutra neste tipo de conflitos.

“Fala de mais sanções, mas Roman Abramovich não foi alvo de sanções. E os filhos dele não estão a ser bombardeados. Os filhos dele estão em Londres. Os filhos de Vladimir Putin estão nos Países Baixos, na Alemanha, em mansões. Porque é que estas mansões não são confiscadas? Não vejo isso acontecer. Vejo os meus familiares, os elementos da minha equipa dizer, em lágrimas, que não têm para onde fugir. É isto que está a acontecer, senhor primeiro-ministro”, conclui Kaleniuk, já visivelmente emocionada e com a voz embargada.

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Boris Johnson ouviu e, depois, respondeu de imediato de forma transparente: “Quero dizer-lhe que estou absolutamente consciente que não há nada que possamos fazer enquanto governo do Reino Unido que seja suficiente para ajudar-vos na forma que desejam. E tenho de ser franco em relação a isso.”

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O primeiro-ministro britânico foi diretamente ao ponto central da intervenção da responsável da AntAC: porque não acionar a no-fly zone na Ucrânia? A resposta era previsível. “Como disse a Volodymyr Zelensky [presidente ucraniano], infelizmente, as implicações dessa medida levariam a que o Reino Unido abatesse aviões russos. E isso não é algo que possamos fazer ou consideremos plausível.” Porque, concluiu Boris Johnson, “as consequências seriam, verdadeiramente, muito, muito difíceis de controlar”.