Não chega. Às vezes a vida que se leva não chega. Há frustrações, há pedras no caminho, há inícios por viver, há batalhas por travar, há intoxicações por sarar, trabalho por encontrar e aventuras por tatuar na memória. Há tanta coisa e às vezes não chega. Hoje, dia 20 de março, assinala-se o Dia Internacional da Felicidade e o Observador ouviu três histórias de quem deixou tudo para trás para procurar a felicidade ou outras formas de felicidade. É feliz?…
Isso de ser feliz tem muito que se lhe diga. E não há certo ou errado, é diferente para todos. E ainda bem. Se a uns lhes chega ter saúde e trabalho, outros só estão bem com uma mochila às costas a conhecer os cantos e recantos por esse mundo fora. Há quem lhe chegue ver um sobrinho ou filho a correr de um lado para o outro. Outros viveriam bem se acordassem todos os dias numa praia com o mar a perder de vista, com livros e música a fazer de mobília.
“A gente faz o que quer daquilo que não é nada, mas falha se o não fizer, fica perdido na estrada”, escreveu Fernando Pessoa no poema “Felicidade”.
Há também quem vire o mundo do avesso por amor, ó o amor. Quantas pessoas mudaram de vida por amor? Há poucos dias uma portuguesa estava no aeroporto de Lisboa, com a alma a pesar 200 quilos, pronta para deixar tudo para trás — o trabalho, os amigos e uma família com as lágrimas a lavar-lhes a cara — para se juntar ao pai dos seus dois filhos no Brasil. É esse o preço da felicidade. Decidir, arriscar e mudar. Por vezes o desamor também faz reagir: obriga a decisões com um laçarote a gritar “loucura”, que buscam a fortuna, o extraordinário, para aprender a arte de relativizar. Não é assim tão raro tropeçar nestas histórias.
“A gente faz o que quer daquilo que não é nada, mas falha se o não fizer, fica perdido na estrada”, escreveu em tempos Fernando Pessoa no poema “Felicidade”. Há quem esteja bem com o que tem hoje, outros vivem assombrados pela ideia de chegarem a velhos sem histórias tresloucadas para contar e é para isso que o Poeta parece alertar. Outra vez: não há certo nem errado.
Hoje é o Dia Internacional da Felicidade, uma data escolhida pela Assembleia das Nações Unidas a 28 de junho de 2012. Para quê? Para lembrar os Estados membros que é necessário tomar medidas que permitam às pessoas perseguir a felicidade. “Conscientes que perseguir a felicidade é um objetivo humano fundamental”, pode ler-se na resolução. Para celebrar a data, o Observador descobriu três pessoas que deixaram tudo para trás em busca da felicidade. Ou da sorte e ventura, sinónimos que tornam a felicidade muito mais complexa e sedutora. Renato mudou-se para a Índia. Lucas, adepto do verbo “começar” [do zero], viveu nos Estados Unidos, Grécia e agora Espanha. Irene, uma espanhola de Cádis, mudou-se há quatro meses para o Uruguai para ser feliz a trabalhar, mas acabou por se encontrar. E mudou, porque os abraços não sobram…
RENATO SILVA — HYDERABAD, ÍNDIA
Renato deixou o trabalho em Lisboa para “questionar todos os paradigmas que tinha como adquiridos”. Com 24 anos, mudou-se há um mês para Hyderabad, na Índia, e assume que o primeiro impacto “foi terrível”. Demorou 15 dias para conseguir atravessar uma estrada, tal o frenesim de carros e motas em todas as direções, mas agora até brinca por ser abordado para dar autógrafos e tirar fotografias.
“Os estrangeiros (brancos) aqui são vistos como rockstars. Quase todos os dias pedem-me autógrafos, fotografias e coisas do género. O reverso da medalha é pedirem-me sempre o triplo do dinheiro.”
O choque cultural, esse, foi implacável: “Bem… o principal problema é que aqui existe uma total falta de higiene. Raramente encontras uma sanita, é impossível encontrar papel higiénico nas casas de banho públicas e até nos bons restaurantes. O cheiro é nauseabundo e tens que desinfetar as mãos de hora a hora.”
E a história do trânsito? “Demorei 15 dias para conseguir atravessar uma estrada. É muito complicado. É completamente normal veres carros em contramão; em três faixas eles conseguem meter cinco carros, oito tuk tuk e 15 motas. Não estou a exagerar. Tentei apanhar uma vez um autocarro e esfolei os joelhos porque eles não param. As pessoas têm que saltar tanto para entrar como parar sair e eu como não estou habituado cai. Nunca mais andei e agora desloco-me sempre de tuk tuk”
Renato trabalha em marketing hospitalar e senta-se no departamento oncológico onde lida com a realidade do cancro todos os dias. “É muito complicado porque vejo crianças, mulheres e idosos a morrerem ao meu lado. O que mais me choca aqui é o desapego que as pessoas têm. Nunca vi nenhum familiar verter uma única lágrima. A ideia que eu tenho é que eles encaram a morte com muita tranquilidade”, reflete, atestando a teoria que o fez mudar de vida: questionar paradigmas adquiridos (check).
“Se eu pudesse colocava aqui todos os portugueses durante uma hora. Tenho a certeza que o amor por Portugal disparava…”
“A pobreza é atroz. É chocante veres os pedintes, veres favelas, veres crianças subnutridas. É ainda mais chocante observares a calma e a naturalidade com que as pessoas encaram isso.” É esta outra realidade e murros no estômago diários que lhe permitem encontrar-se e ter a certeza que tomou a decisão certa.
Mas, afinal, será esta uma forma de encontrar a felicidade? “Sem dúvida que vim à procura da minha felicidade. Para mim ser feliz é acumular experiências, sensações e amor. (…) Outro dos meus grandes objetivos é dar mais valor ao meu país. Se eu pudesse colocava aqui todos os portugueses durante uma hora. Tenho a certeza que o amor por Portugal disparava…”
LUCAS DIAS — BARCELONA, ESPANHA
Há quem procure pequenas derrotas diárias ou razões para não se considerar totalmente feliz. Há quem queira sentir-se pequeno outra vez, perdido algures, com a solidão a fazer de sombra. Há casos assim. Lucas Dias, um português que já viveu nos Estados Unidos, Grécia e que agora vive em Barcelona com a namorada catalã, gosta de começos e recomeços.
“Adoro não saber o que o futuro me reserva. Acho aborrecido passar anos no mesmo trabalho, no mesmo sitio, a fazer a mesma coisa. Se calhar nunca serei genial a fazer alguma coisa, porque nunca vou acabar por dedicar todo o meu tempo a algo, mas serei sempre melhor após cada mudança”
“Eu não decidi mudar de vida, a minha vida foi sempre esse sentimento de insegurança, imprevisibilidade, de não saber onde vou estar amanhã. Adoro mudanças. Adoro não saber o que o futuro me reserva. Acho aborrecido passar anos no mesmo trabalho, no mesmo sitio, a fazer a mesma coisa. Se calhar nunca serei genial a fazer alguma coisa, porque nunca vou acabar por dedicar todo o meu tempo a algo, mas serei sempre melhor após cada mudança”, explica.
A energia cativa, o discurso também. Lucas já pensou nesta lengalenga muitas vezes, vê-se a léguas. Este português, de 28 anos, é adepto de futebol, fotografia e apostas online. E aproveita este último hobby para explicar como vê as coisas: “Vejo a vida da mesma forma que olho para as odds de um complexo site de apostas. Palavra chave: decisões. Decidir igual a apostar. Decisões que têm de ser tomadas com maior ou menor pressão e tempo. Há muitas variáveis, fatores de risco associados e praticamente tudo (menos a emoção) pode ser quantificável.” O truque? Analisar e esquecer o retrovisor. Para a frente é que é caminho.
“Se sou mais feliz do que antes? Sou e sempre fui muito equilibrado emocionalmente, não tenho muitos altos e baixos. Desde que me conheço, sou feliz se viver desta forma. A maior mudança de hábito quando se é um nómada e se deixa tudo para trás, é que te adaptas a todo o tipo de situações, agigantas-te em momentos que sem a força e coragem que o risco oferece te fariam pequeno. Acabas por dar menos valor a tudo porque aprendes que tudo acaba por ter a importância relativa que lhe queiras atribuir. Daí que a minha vida seja sempre uma aposta constante no desconhecido.”
Este estilo de vida foi-lhe transmitido pelos pais, com quem atravessou o Velho Continente algumas vezes. “Fazíamos 15 a 20 mil quilómetros durante 20, 30 dias”, recorda, admitindo que na altura se sentia esquisito, diferente, porque todos os amigos e colegas de escola passavam as férias sempre numa casa no Algarve, sem grande surpresa a cada ano que passava.
“Cada dia deparava-me com um sitio diferente, um país novo e uma ambição desmedida por ver cada vez mais e ir mais longe. (…) Nessa altura já sabia de cor todas as capitais da Europa e quase todas do mundo, passava horas a desenhar mapas e criava mapas de países que só existiam na minha cabeça. Acho que tudo isto acabou por ter enorme influencia em como viria a viver a minha vida”, conta.
Qual é o preço desta forma de viver? “Acabas por sentir-te estranho a toda a hora, como se não fosses de parte nenhuma, como se a tua vida fosse uma roda-viva de pessoas, momentos, sítios e situações marcantes.”
Desafiado sobre como explicaria o significado da palavra “felicidade” a um garoto, Lucas dir-lhe-ia “pé na estrada miúdo”, colando uma frase de Pessoa: “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”. E a um velho? “Não diria nada. A vida e as viagens ensinaram-me que se aprende tanto a escutar…”
IRENE ORTEGA — PUNTA DEL ESTE, URUGUAI
Esta espanhola de 33 anos decidiu deixar tudo para trás por questões laborais. É que encontrar trabalho, seja do lado oposto da estrada ou do outro lado do oceano, também é um caminho para a felicidade. Pelo menos para Irene Ortega, natural de Cádis, que viveu umas temporadas em Sevilha e Budapeste, na Hungria. À corrida desenfreada por um emprego, algo que a sua querida Espanha não lhe ofereceu, juntou-se uma viagem espiritual.
“A felicidade, e cada vez estou mais convencida, é um estado interno”, assim começa a narrativa desta andaluza, com piercing no lábio e gargalhada fácil. Irene aterrou em Punta del Este, no Uruguai, há quatro meses para ensinar castelhano num instituto de línguas.
Acredito que dentro de mim também mudou algo: fazes-te mais forte, mais autossuficiente e, no meu caso, creio que me tornei mais carinhosa. Suponho que é isso que se passa quando não sobram os abraços…”
“Fico contente que tenha sido o Uruguai, por ter esta oportunidade de conhecer esta parte do mundo, embora também pese a distância para a Europa… Sim, esperava uma situação especial. Foi desde o início, o trabalho parecia feito para mim”, diz, sobre a decisão de enviar um singelo currículo como quem atira uma pedra para o mar para fazê-la chegar longe, fintando a gravidade e o atrito. O desconhecido, o não haver garantias, a incerteza da resposta do outro lado torna a coisa quase poética. Afinal, está-se disposto a mudar tudo, de um dia para o outro, por um bem maior. Hoje, por ser o dia que é, chamamos-lhe felicidade para romantizar.
E que tal a decisão? A felicidade piscou o olho? “Sim, a minha vida agora é muito mais tranquila, não é tão agitada socialmente e, por isso, mais sã. Acredito que dentro de mim também mudou algo: fazes-te mais forte, mais autossuficiente e, no meu caso, creio que me tornei mais carinhosa. Suponho que é isso que se passa quando não sobram os abraços.” Esta frase merece ser transcrita em castelhano, tal a melodia e melancolia, com cheirinho a Pablo Neruda: “Supongo que es lo que pasa cuando no sobran los abrazos…”
A solidão pode ser boa companheira? “Sim e penso que é necessária”, diz, adicionando que é aí que se conhece. Mas também recusa a ideia da solidão em demasia — “pode ser dura”. O Observador lançou o mesmo desafio a Irene que havia feito com Lucas: de que forma explicaria o que é isto da felicidade a um garoto? “Isso é complicado… Mas acredito que as crianças sabem-no: sabem viver no presente, desfrutar do momento sem ir ao passado e ao futuro. Diria para nunca se esquecerem disso porque depois é muito mais difícil reaprendê-lo.”
E voltar a casa? “Era bom. Eu gostava de ter esta oportunidade no meu país, para não estar tão longe dos meus. Mas de momento não é possível e estou bem como estou a viver aqui, por isso não sei quando voltarei…”