O primeiro contacto terá acontecido há uns cinco anos. Depois de encontrar o artigo da equipa de investigadores portugueses, a mãe de John (nome fictício) escreveu uma carta entusiasmada: era a primeira vez que tinha oportunidade de saber mais sobre a mutação rara que afetava o seu filho.
John tem fibrose quística. Das mais de duas mil mutações que podem modificar o gene responsável pela doença, o jovem tem duas: uma, bastante comum, que herdou da mãe norte-americana; outra, rara, que herdou do pai de origem açoriana. Esta mutação rara era conhecida apenas nos Açores, John foi o primeiro doente com esta mutação que os investigadores portugueses conheceram fora das ilhas.
O artigo coordenado por Margarida Amaral, professora na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, tinha sido publicado em 2009. Um par de anos mais tarde a mãe encontrou-o e decidiu contactar a investigadora. “Os pais [dos doentes] dedicam-se a perceber estas coisas”, diz Margarida Amaral. “A mãe fez-me muitas perguntas.” Criou-se uma relação: a família norte-americana enviava postais de boas festas e t-shirts com frases de incentivo para o jovem.
Independentemente da mutação, uma coisa é garantida: todos os doentes têm a função respiratória comprometida. A grande maioria — cerca de 85% — têm também insuficiência pancreática. Esta é uma doença que se manifesta desde o nascimento e alguns bebés nascem com uma obstrução intestinal grave. É certo que a fibrose quística já não é uma doença letal na idade infantil mas, com os tratamentos convencionais, a esperança média de vida dos doentes ainda só está nos 35-40 anos.
A agressividade da doença depende do tipo de mutação no gene. Estudar parte desta “enorme variablidade” é o objetivo do projeto HIT-CF, agora financiado com 6,7 milhões de euros pelo programa Horizonte 2020 (Programa-Quadro Comunitário de Investigação e Inovação). A equipa de Margarida Amaral, que coordena o Instituto de Biossistemas e Ciências Integrativas (BioISI), faz parte de um consórcio internacional que junta investigadores, médicos, associações de doentes e empresas farmacêuticas.
Os investigadores esperam conseguir incluir 500 pessoas no projeto, tenham elas a mutação que tiverem, das muito graves às formas atenuadas, o requisito-chave é que sejam mutações raras. Só Portugal pensa contribuir com mais de 50 doentes que preenchem os requisitos. Para cada um destes doentes, serão testados uma série de fármacos que estão em desenvolvimento. Os testes não serão feitos diretamente no doente, mas em pequenos órgãos (organoides) criados a partir das células de cada pessoa que faça parte da experiência.
Atualmente, existem apenas dois medicamentos aprovados para tratarem diretamente a doença, mas não serve para todos os doentes. Um dos medicamentos só serve para 5% dos doentes em todo o mundo, mas é muito eficaz e apresenta melhorias muito claras, explica a investigadora. O outro serve muito mais doentes — 85% —, mas o benefício é muito menos nítido. Para os restantes doentes, ainda não existe alternativa senão os tratamentos para diminuir os sintomas, como enzimas para ajudar na digestão, mucolíticos (que dissolvem o muco) e anti-inflamatórios.
John também só tinha à sua disposição os tratamentos de alívio dos sintomas. Mas quando os medicamentos dirigidos à fibrose quística foram aprovados, a mãe de John quis saber se o filho também podia beneficiar do tratamento. Só testando, mas não no doente. O único problema: faltava verba à equipa portuguesa. Nada que a motivação de uma mãe e uma angariação de fundos não resolvesse.
Com as células que tinha usado no artigo de 2009, a equipa criou um modelo e testou o fármaco. Os resultados positivos foram enviados para a mãe e para o médico assistente, para que John pudesse começar a fazer os tratamentos. Agora, com cerca de 18 anos, o jovem ganhou peso, aumentou a função pulmonar e até faz parte da equipa de futebol americano da escola. “Uma mãe atenta pode fazer a diferença”, diz a investigadora.
As notícias que vai recebendo do jovem e da família agradam a Margarida Amaral. “Sentimos que o nosso trabalho está mais próximo de ajudar alguém.” Não são muitos os centros de investigação dedicados a esta área, portanto Margarida Amaral recebe muitos contactos, incluindo de pessoas fora do país. “Há muito doentes a escreverem. Faço questão de responder sempre.” Nem sempre as respostas são tão boas como para a mãe de John, mas os doentes e famílias vão enviando as últimas novidades científicas que encontram para ver se pode funcionar no seu caso ou não.
Criar mini-intestinos para testar medicamentos
Uma das características da doença é que os doentes acumulam muco espesso. Isto acontece nos pulmões, comprometendo a função respiratória, mas também pode acontecer nos órgãos reprodutores (diminuindo a fertilidade) ou nos intestinos (causando a sua obstrução). E tudo isto é responsabilidade do mesmo gene. O gene mutado dá instruções erradas para a formação da proteína CFTR e o resultado é que a proteína formada funciona mal.
Sendo os intestinos um dos órgãos afetados pela doença, são o alvo escolhido pelo consórcio internacional, como explica Margarida Amaral. Primeiro, porque a proteína CFTR existe em maior quantidade nos intestinos. Como a proteína é o alvo dos medicamentos em teste, este órgão torna-se mais sensível (porque tem mais proteína presente). Segundo, porque a biopsia realizada para recolher uma amostra de células do reto (parte final do intestino) é indolor e muito mais confortável para o doente do que uma broncoscopia (para retirar uma amostra do interior dos pulmões). Por fim, porque as células intestinais são mais fáceis de trabalhar em laboratório.
“As células do epitélio intestinal [camada de revestimento interno] são mais robustas do que as do tecido respiratório. E mais fáceis de propagar [multiplicar]”, explica a investigadora. Além disso, da amostra recolhida só serão utilizadas as células estaminais e, no caso do epitélio intestinal, existem muitas, porque a camada exterior está constantemente em renovação — à semelhança do que acontece com a nossa pele.
Mas não basta o processo em laboratório estar simplificado com a utilização das células do intestino, é preciso que os efeitos nestas células sejam equivalentes aos do pulmão, o principal alvo do tratamento. “Já foi demonstrado que há uma boa correlação entre as característica da proteína no intestino e a sua função nos pulmões”, diz a coordenadora do BioISI.
Recolher a amostra do doente, isolar as células estaminais em laboratório, multiplicá-las e depois criar um mini-intestino (organoide). Um não, vários. E cada um destes organoides de cada doente será testado para vários fármacos em desenvolvimento para perceber se algum é eficaz no tratamento da mutação específica. Caso a resposta seja afirmativa, qual deles apresenta o melhor resultado para cada caso específico.
Selecionado o melhor medicamento com o uso dos organoides, cada um dos doentes será convidado a participar num ensaio clínico com o fármaco que melhores resultados apresentou para o seu caso. E aí, em vivo, e com o organismo completo será demonstrado se o fármaco é tão eficaz como em laboratório e se é seguro para o doente. Por enquanto, o projeto analisará apenas fármacos em desenvolvimento, mas está aberta a possibilidade de serem incluídos outros fármacos, incluindo aqueles que já foram aprovados para as mutações mais comuns.
Atenta ao trabalho da equipa portuguesa, uma doente turca prepara-se para vir a Portugal para poder ser incluídas no estudo. Mas não é a primeira vez que a equipa recebe doentes de fora: duas irmãs de 25 e 28 anos vieram dos Estados Unidos para fazer a biópsia, mas os medicamentos existentes não eram eficazes na mutação que tinham. A vantagem é que, como estão a ser usadas células estaminais, estas podem ser congeladas. Mais tarde, quando aparecerem novos fármacos, as células podem ser descongeladas e testadas para os fármacos que entretanto surgiram.
“Um dos principais impactos do projeto será o desenvolvimento de uma metodologia inovadora para obter aprovação (e reembolso) de medicamentos atuais, mas sem indicação para estas mutações raras (“off-label”) que, por esse motivo, nunca seriam prescritos aos doentes”, refere o comunicado de imprensa. Além disso, o que os investigadores esperam é que esta metodologia, com o uso de organoides, possa ser aplicada na investigação de fármacos para outras doenças.
A parte do reembolso é uma das que preocupa Margarida Amaral. “Pode passar nos ensaios clínicos, mas ficar retido na aprovação das comparticipações.” E é um custo que os doentes não podem suportar. Os dois medicamentos aprovados têm um custo de 240 mil e 300 mil euros por ano e é um tratamento que tem de ser feito o resto da vida.
Como é que uma proteína estragada causa tantos danos?
Como já foi referido, todos os doentes com fibrose quística têm a função respiratória comprometida e 85% têm insuficiência pancreática. Tudo por causa de um único gene que dá instruções erradas para o fabrico de uma proteína. O mau funcionamento desta proteína faz com que se acumule muco nos pulmões e nos intestinos e com que o pH do pâncreas fique alterado. Mas que implicações é que isto tem?
Os pulmões saudáveis produzem muco que agarra os poluentes e agentes patogénicos (capazes de causar doenças) para que possam ser eliminados do organismo. Às vezes sob a forma de expetoração libertada com a tosse, outras vezes com uma libertação do muco que nem nos apercebermos. O problema, nos doentes com fibrose quística, é que “o muco fica extremamente espesso”, explica Margarida Amaral. Este muco continua a cumprir a função de agarrar os poluentes e patogénios mas, como é muito espesso, os doentes têm dificuldade em libertar-se dele.
Resultado: o muco tapa as vias respiratórias, dificultando a respiração e formando o ambiente perfeito para o desenvolvimento de infeções. Os doentes com fibrose quística desenvolvem pneumonias graves com frequência e gradualmente vão perdendo a função respiratória. Pelo mesmo motivo, o muco do intestino do recém-nascido pode tornar-se demasiado espesso, de tal forma que o bebé não seja capaz de o expelir. A única solução é operar. Mas não é uma solução definitiva, os doentes podem sofrer de outras obstruções intestinais ao longo da vida.
Como é que isto acontece? A proteína CFTR, numa situação normal, funciona como um túnel que atravessa a membrana das células e permite (ou não) a entrada e saída dos iões cloreto e bicarbonato. A passagem dos iões para dentro e para fora da célula permite que se mantenha o equilíbrio entre os dois ambientes. De cada vez que o ião cloreto é transportado para fora da célula há um mecanismo paralelo que transporta sódio. Cloreto de sódio é um sal — o nosso sal de cozinha — e, como bem sabemos, o sal pede água. A presença desta molécula atrai a água e o equilíbrio é reposto. Na fibrose quística, o túnel não funciona, o cloreto não sai das células, a água não viaja até ao local e o resultado é que o muco (que está no exterior das células) fica com pouca água, logo muito espesso.
Para resolver o problema de excesso de muco e muco muito espesso nos pulmões, os doentes tomam mucolíticos, para tornar o muco mais fluído e mais fácil de expelir, e fazem uma fisioterapia específica para soltá-lo. Os novos medicamentos pretendem atuar diretamente na proteína, tornando-a funcional, ou seja, permitindo que o túnel funcione normalmente.
No caso da insuficiência pancreática o problema é equivalente. A proteína CFTR que deve fazer um túnel na membrana das células não está a funcionar bem e não deixa passar os iões bicarbonato. Neste caso, estes iões são fundamentais para manter o pH ideal dos órgãos e canais. No caso do pâncreas, o pH deve ser alcalino, mas se não houver transporte de iões bicarbonato para o exterior das células o pH vai tornar-se demasiado ácido e é aí que começam os problemas.
O pâncreas tem duas funções fundamentais no organismo: a produção de enzimas digestivas que são enviadas para o estômago para ajudar na digestão; e produção de insulina, uma hormona que regula os níveis de glicose no sangue. A primeira função é a primeira a ficar comprometida — ainda durante o desenvolvimento embrionário —, mas, na idade adulta, os doentes com fibrose quística também podem desenvolver diabetes.
Numa pessoa saudável, o pâncreas produz as enzimas num ambiente alcalino (com pH alto), o que faz com que se mantenham inativas. Só quando estas enzimas chegam ao estômago, onde o ambiente é ácido (pH baixo), é que se tornam ativas para desempenhar a sua função. Se não houver transporte de bicarbonato, o pH do pâncreas torna-se ácido e as enzimas são ativadas cedo demais. Assim, estas enzimas destroem os ductos que as levariam até ao estômago e acabam por destruir o próprio pâncreas.
Sem enzimas no estômago para facilitar a digestão, os alimentos atravessam o trato digestivo quase sem sofrerem alterações. Os doentes são, por isso, obrigados a tomar enzimas pancreáticas antes das refeições para substituir a função do pâncreas — o que numa criança implica cerca de 20 cápsulas por dia. Por ser um problema que se manifesta tão cedo e com tantos compromissos para a saúde — os bebés não ganham peso nem estatura — o diagnóstico da fibrose quística faz parte do Programa Nacional de Diagnóstico Precoce, o chamado “teste do pézinho”.
“Todos os anos são identificados 40 novos casos no rastreio neo-natal”, refere Margarida Amaral. “Estes bebés devem ser acompanhados e estudados.” Até porque existe uma maior prevalência de mutações raras no sul da Europa do que no norte. Mas a investigadora lamenta que não esteja a ser feito mais por esta doença. “Já foi aprovada a criação de centros de referência de fibrose quística em Portugal — porque não pode existir uma clínica em cada hospital. Foram aprovados, mas não aconteceu nada [as equipas de referência ainda não estão reunidas e a trabalhar]”, condena a professora da FCUL. “É preciso ativar e financiar. Porque as análises são feitas no âmbito de projetos de investigação, mas seria desejável que fosse um serviço permanente.”
Corrigido: 85% dos doentes sofre de insuficiência pancreática e tem de tomar enzimas digestivas para substituir a função do pâncreas.