Eram vários os avisos que circulavam nas embaixadas do Ocidente na Rússia desde o início de março, uma das quais Portugal. A nota da diplomacia portuguesa em Moscovo deixava um aviso claro, apelando aos cidadãos nacionais para que tivessem “cautela redobrada” e para que “evitassem locais com uma grande concentração de pessoas”. Duas semanas depois, entre dois a cinco combatentes do autoproclamado Estado Islâmico entraram no Crocus City Hall, uma das maiores salas de espetáculos na Rússia, dispararam armas automáticas, rebentaram engenhos explosivos e mataram mais de 100 pessoas.
Foi um ataque no coração da Rússia, país que já não via algo assim há cerca de duas décadas, na altura ainda sob o fantasma da segunda guerra na Chechénia. Focado no conflito na Ucrânia e a tentar controlar os opositores ao regime, tudo indica que o Kremlin tenha sido apanhado desprevenido. Após as primeiras horas do ataque, a porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros russo, Maria Zakharova, chegou a pedir aos tradicionais rivais Estados Unidos da América (EUA) que, caso tivessem informações confidenciais, as partilhassem com Moscovo.
No entanto, avisos não terão faltado ao Kremlin. Para além dos alertas públicos da diplomacia ocidental, os EUA terão avisado a Rússia, em novembro de 2023, dessa possibilidade, apurou a imprensa norte-americana. Moscovo terá ignorado. Aliás, o Chefe de Estado russo, Vladimir Putin, durante um encontro com um dos ramos dos serviços secretos russos (FSB, o Serviço Federal de Segurança da Rússia) que teve lugar na passada terça-feira, defendeu que não passavam de “declarações provocatórias de um número de estruturas do Ocidente”. “Tudo isto aparenta ser chantagem descarada com a intenção de intimidar e desestabilizar a nossa sociedade”, assegurou o líder da Rússia, citado pela agência de notícias TASS.
O tempo não veio dar razão a Vladimir Putin. Num regime cada vez mais fechado e autoritário, o Presidente russo terá feito um erro de cálculo, olhando com desconfiança para os avisos do Ocidente e julgando que se estariam a referir a um possível ataque ucraniano. Mas foi a fação sediada no Afeganistão — o Daesh-K — que reivindicou o atentado, atacando um “grande número de cristãos” e causando uma “grande destruição”.
“Putin tem sangue muçulmano nas mãos”: Daesh-K vê Presidente russo como inimigo
Em 2018, o Presidente russo comemorava o facto de o Daesh ter sido derrotado na guerra civil da Síria. Neste país, Vladimir Putin apoiou as fações lideradas pelo ainda Chefe de Estado sírio, Bashar Al-Assad, que acabaram por vencer o autoproclamado Estado Islâmico e uma task-force liderada pelos Estados Unidos. Ainda assim, o líder russo deixou um aviso: “O grupo terrorista mantém um potencial destrutivo significativo e a habilidade de mudar as suas táticas rapidamente e atacar países e regiões em todo o mundo”.
Há seis anos, o Daesh ainda era uma ameaça para a Europa. As memórias do ataque terrorista na sala de espetáculos do Bataclã (2015), em Paris, e dos atentados em Bruxelas (fez exactamente esta sexta-feira oito anos) ainda estavam bem vivas na memória dos líderes da comunidade internacional. No entanto, ao longo dos anos que se seguiram, o autoproclamado Estado Islâmico foi perdendo fulgor. A ambição de impor um califado islâmico parecia estar mais longe e o Daesh acabou a ceder territórios.
O cenário mudou e, este ano, o autoproclamado Estado Islâmico, de matriz xunita, parece estar empenhado em voltar a ganhar força e destaque. Em janeiro, lançou uma campanha a apelar à destruição dos inimigos: “Matem-nos onde os encontrarem”. O primeiro grande ataque de 2024 foi no Irão, um país muçulmano xiita e próximo da Rússia. Na cidade de Kerman, o Daesh, que mantém relações complicadas com Teerão, matou pelo menos 84 pessoas num atentado envolvendo bombistas suicidas.
Cerca de três meses mais tarde, o Daesk-K volta a concretizar um ataque de grandes dimensões na Europa. Na campanha que anunciou em janeiro de 2024, o autoproclamado Estado Islâmico tinha colocado na mira Israel, o Ocidente e o Irão. No entanto, surpreendeu o mundo esta quinta-feira ao perpetrar um atentado em Moscovo, com uma aparentemente célula de poucos homens — tal como, por exemplo, em Paris.
Há vários motivos pelos quais o autoproclamado Estado Islâmico não vê com bons olhos para Vladimir Putin. Em primeiro lugar, o Presidente russo é aliado assumido do regime iraniano — um dos seus principais inimigos. Depois, os conflitos recentes ajudam a explicar a animosidade. Como recorda Colin P. Clarke, analista de contraterrorismo do grupo Soufan ao New York Times, a fação afegã do Daesh acusa o Kremlin de “ter sangue muçulmano nas mãos”.
O derramar de “sangue muçulmano” refere-se aos conflitos no Afeganistão, na Chechénia e na Síria. No primeiro caso, a União Soviética começou um conflito sangrento que durou dez anos; no segundo, Vladimir Putin dizimou todas as iniciativas para formar um califado no Cáucaso, condicionando assim as ambições do Estado Islâmico; no terceiro caso, o Presidente russo lutou contra o Daesh em território sírio.
Adicionalmente, nos últimos tempos, o Presidente russo tem tentado manter boas relações com os talibã. Ora, a fação sediada do Daesh no Afeganistão é um inimigo declarado do movimento islâmico que controla o Afeganistão, o que também pode ajudar a explicar o atentado em Moscovo.
Focado na guerra da Ucrânia, Putin poderá ter baixado a guarda
“O Daesh-K tem-se fixado na Rússia nos últimos dois anos”, diz Colin P. Clarke ao New York Times, acrescentando que aquele movimento tem criticado publicamente a propaganda do Presidente russo. Daí que não seja de estranhar que a embaixada norte-americana, a 8 de março, tenha alertado os seus cidadãos que vivem na Rússia que “extremistas tinham planos iminentes” para atacar “grandes multidões em Moscovo”. À luz do que aconteceu esta sexta-feira, há um pormenor desconcertante: Washington avisava que podia haver atentados em “concertos”.
As palavras conhecidas do Chefe de Estado russo indicam que todos estes avisos terão sido ignorados por Vladimir Putin. Nos últimos tempos, o líder do Kremlin tem centrado todas as atenções no conflito na Ucrânia e sua gestão. No discurso da vitória esmagadora das eleições presidenciais russas, o líder da Rússia deu a entender que a prioridade do mandato que dura até 2030 é terminar o conflito. Não admira, portanto, que, na manhã desta sexta-feira, Moscovo tenha levado a cabo o maior ataque em semana com recurso a mísseis contra Kiev.
Ainda esta sexta-feira, o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov anunciava que o Kremlin ia deixar cair a expressão “operação militar especial”, substituindo-a por “guerra”. O responsável da presidência russa justificou a decisão, alegando a “aliança” do Ocidente firmou para se colocar ao lado da Ucrânia. A Rússia entrou assim em “estado de guerra”.
Nos últimos tempos, também se tem especulado que a Rússia avançará com uma ofensiva na Ucrânia. Aliás, esta sexta-feira, as autoridades de Kiev denunciaram que Moscovo estará a convocar cem mil homens que poderão ser mobilizados para atacar novos territórios ucranianos, numa fase em as forças leiais ao Kremlin estão a ganhar ascendente.
Todos estas razões mostram que a prioridade número um de Moscovo é a guerra na Ucrânia. Como escreve o jornal britânico Telegraph, este atentado na sala de espetáculo Crocus é um lembrete que o autoproclamado Estado Islâmico continua a ser uma “ameaça”. Ora, os “serviços de segurança russos” — “preocupados com a guerra na Ucrânia” —, podem tê-la “negligenciado, apesar de o Kremlin estar ainda a lutar na Síria”.
Assim sendo, tudo indica que o autoproclamado Estado Islâmico aproveitou o foco excessivo da Rússia na Ucrânia, especialmente por parte dos serviços secretos russos (nomeadamente o Serviço Federal de Segurança Russo), para realizar o atentado desta sexta-feira.
Por agora, nem os serviços de segurança, nem o Kremlin fizeram um mea culpa. Aliás, Vladimir Putin não reagiu publicamente aos atentados esta sexta-feira, ainda que Dmitry Peskov tenha garantido que o Presidente está a ser constantemente informado sobre o atentado. Para controlar potenciais riscos que a população pudesse vir a correr nos próximos dias (a imprensa russa assegura que os terroristas fugiram do local do atentado num carro branco), o Ministério da Cultura e os governadores regionais cancelaram todos os eventos públicos, tais como concertos ou missas.
Rússia não confirma para já reivindicação do Daesh. E Medvedev não esquece Ucrânia
Para já, o Kremlin não responsabilizou o autoproclamado Estado Islâmico. A Rússia mantém-se em silêncio no que concerne à informação de quem levou a cabo o ataque, sendo que os meios de comunicação sociais controlados pelo regime nem sequer noticiam a existência do comunicado do Daesh. Os Estados Unidos, por seu turno, já garantiram que foi o grupo terrorista islâmico a perpetrar o atentado.
Inicialmente, caíram suspeitas sob a Ucrânia. Devido ao conflito que dura há mais de dois anos, vários dirigentes russos sugeriram que poderia ter sido Kiev a levar a cabo o atentado. Um deles é o ex-Presidente da Rússia e atual vice-presidente do Conselho de Segurança, Dmitry Medvedev. Na sua conta pessoal do Telegram, garantiu que, se fosse confirmado que ataque tinha sido levado a cabo por “terroristas do regime de Kiev”, tornar-se-ia “impossível de lidar com eles”.
“Todos devem ser encontrados e destruídos impiedosamente como terroristas. Incluindo funcionários do Estado que cometeram tal atrocidade”, defendeu Dmitry Medvedev, deixando uma ameaça clara: “Morte por morte”.
Porém, a Ucrânia veio deixar claro que “nada teve a ver” com o atentado no centro de espetáculos. O principal conselheiro da presidência ucraniana, Mykhailo Podolyak, argumentou que “ataques terroristas nunca resolviam nenhum dos problemas”. “A Ucrânia nunca usou métodos terroristas, pois são inúteis”, explicou ainda o braço direito de Volodymyr Zelensky na sua conta pessoal do X (antigo Twitter).
Descartando a participação no ataque, Mykhailo Podolyak antecipa, não obstante, que este atentado pode “aumentar a propaganda militar, acelerar a militarização, expandir a mobilização e, em última instância, aumentar a intensidade da guerra”. Todos os objetivos que a Ucrânia não deseja neste momento, porque, diz o conselheiro, podia dar uma justificação às “tendências genocidas” de Moscovo contra a “população civil da Ucrânia”.