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Fogos. A história de Vitória, a bebé que afinal não morreu

Vitória nasceu há um mês e meio. No drama dos incêndios de domingo, uma confusão com o nome dos avós deu-a como desaparecida - e depois como oficialmente morta. Encontrámo-la tranquila ao colo da mãe.

Vitória está enrolada numa manta polar, ao colo da mãe. Tem um ar tranquilo, um contraste com o pesadelo que a família viveu no domingo. Nos últimos dias, uma boa parte do país chorou pela bebé de um mês e meio, incluída na lista oficial de vítimas mortais do incêndio de Tábua. Vitória perdeu a casa e quase perdeu o pai, o avô e o tio para as chamas. Estão todos bem. “Foi uma dupla vitória”, diz ao Observador a mãe, Raquel Silva. Mas esta não é uma história de final feliz.

A notícia da morte de um bebé de um mês na Quinta da Barroca, Tábua, nasce de uma confusão entre dois nomes: José e Hermínia. É o nome dos avós. É, ao mesmo tempo, o nome dos dois idosos que perderam a vida na Quinta da Barroca, a poucos metros da casa de Vitória. Dois nomes numa extensa lista (mais uma lista) de 41 vítimas mortais dos incêndios de 15 de outubro. Durante dois dias, Vitória constou da lista negra da Autoridade Nacional de Proteção Civil — primeiro como estando desaparecida, depois como um dos mortos. Nenhum dos casos era verdade.

Fogos. Número de mortos sobe para 41: “A bebé encontra-se bem e na companhia da família”

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Para perceber como a bebé de 45 dias “renasce” do meio da tragédia é preciso recuar até ao final da tarde do último domingo, o pior dia de incêndios florestais que o país viveu este ano.

Raquel Silva, a mãe, saiu de casa para ver por onde andava o fogo. Estava em Poço de Gato, a uns dois quilómetros da sua localidade, Percelada, quando lhe pareceu que as chamas galgavam quilómetros por segundo. Decidiu voltar para casa dos pais para regar a terra e as paredes brancas da habitação. O cenário que vira ainda ao longe forçava-a a antever o pior.

Passaram dois dias do incêndio. Os últimos raios de luz da tarde de terça-feira iluminam a sala de Raquel, numa luz ténue que chega por entre as nuvens sobre o céu de Tábua, promessa de algumas gotas para a noite. A eletricidade ainda não voltou. O telefone apanha sinal quando é possível.

Nesse momento, Raquel já tinha perdido a noção exata do tempo, mas deviam ser umas 20 horas quando o fogo entrou pelas traseiras da casa. “Aquilo chegou aqui numa questão de 20, 30 minutos”, recorda Raquel, com Vitória ao colo, na sala da mãe, Hermínia. Passaram dois dias sobre o incêndio e as pequenas bolsas abertas na terra ainda libertam um fumo constante – são os troncos dos pinheiros, numa queima lenta e permanente que não deixa adormecer a memória. Os últimos raios de luz da tarde de terça-feira iluminam a divisão, numa luz ténue que chega por entre as nuvens sobre o céu de Tábua, promessa de que algumas gotas vão cair esta noite. A eletricidade ainda não voltou. O telefone apanha sinal quando é possível.

No domingo, José António, o marido de Raquel, saiu disparado rua abaixo com o sogro e o cunhado para tentarem proteger a casa da família, à entrada de Percelada. Raquel ficou com Hermínia e, durante longas horas, não souberam dos homens da família. Não imaginaram, sequer, que ao final dessa noite a casa foi tomada pelas chamas e que os homens tiveram de atirar-se para um tanque ao fundo da rua para se salvarem. “Eles vinham todos com o corpo a arder”, diz Raquel, que só percebeu o que se passava quando o grupo regressou à casa dos avós com a pele dos braços em ferida viva. “Tentaram salvar a minha casa, mas não conseguiram.” Chora.

Foi de madrugada, já as chamas iam a caminho de outro caminho seco, que ligou para o INEM. Vitória chorava, Raquel temia o pior.

Ali, na casa da mãe, foi ela quem se bateu ombro a ombro com o fogo. Confiou Vitória aos braços da avó, reuniu todos os panos que havia em casa, molhou o tecido e cobriu o chão junto às portas e janelas. Depois, saiu à rua. Quando fecha os olhos, Raquel continua a ver as chamas.

Foi de madrugada, já o fogo perseguia novo terreno seco, que a mulher ligou para o INEM. Vitória chorava, Raquel temia o pior – a memória de um outro filho, perdido há um ano para uma doença súbita, assaltava-lhe o espírito.

Foi um amigo bombeiro quem bateu à porta, por volta das duas da manhã. Vitória estava bem. O marido, o pai e o irmão voltaram pouco depois e seguiram de imediato para o hospital. A confusão com a sorte da bebé começou nesse momento, numa sequência de atos que cruzam a história da recém-nascida com o destino negro que apanhou um casal de septuagenários, a poucas centenas de metros de distância.

A um passo da salvação

Deixando para trás Percelada, subindo por uma estrada ziguezagueante em direção a Tábua, umas centenas de metros à frente há uma placa que indica ser ali a Quinta da Barroca. Em frente à placa, do outro lado da estrada, as chamas fizeram desaparecer o caixote do lixo de plástico. Ficaram no chão alguns pedaços de vidro transparente.

Dali em diante, o cenário é desolador. Centenas e centenas de hectares de um negro pesado, apenas cortado por um caminho de terra que a passagem dos primeiros carros já começou a revelar. O inferno passou por ali horas antes e, ainda que os meses de chuva tragam de volta o verde dos pinheiros, a memória não apagará certas imagens.

Rodeado de fumo denso, com as chamas a poucos metros, José ter-se-á atrapalhado na manobra. Ele e a mulher, naturais de Lisboa, decidiram então abandonar o carro e seguir a pé. Os passos seguintes terão sido dados na mais absoluta aflição.

Deviam ser quase 22 horas de domingo. Luís Marques, dono da casa que fica nas traseiras da vivenda de José e Hermínia, já tinha vindo chamar os septuagenários para que se pusessem todos a caminho de um porto seguro – mas não recebeu resposta. As chamas estavam por todo o lado naquela zona de casas dispersas, pequenos recortes por entre aquilo que até há dias era um denso pinhal. O casal sairia pouco depois, seguindo de carro atrás do filho. Mas, subitamente, ainda antes de chegarem à estrada principal, decidiram voltar atrás.

A tese que corre é a de que terão regressado a casa para apanhar mais algumas peças de roupa. O filho não voltaria a vê-los. Dois dias depois do grande incêndio, o carro do casal continua imobilizado na berma da estrada de terra, uns 10 metros em frente ao portão da vivenda. Já não passa de um bocado de metal sem cor, totalmente destruído. Quando tentava voltar à estrada que liga a Quinta da Barroca a Tábua, José embateu com a traseira do seu Peugeot 107 num pinheiro – no lugar da árvore está agora um buraco fumegante, mais um entre as dezenas ali à volta.

Rodeado de fumo denso, com as chamas a poucos metros, ter-se-á atrapalhado na manobra. Ele e a mulher, naturais de Lisboa, decidiram então abandonar o carro e seguir a pé. Os passos seguintes terão sido dados na mais absoluta aflição. Não terão andado mais de 50 metros. Viraram à esquerda ao fundo da rua que sai da sua casa e estavam quase a chegar à vivenda do vizinho, Vítor, que permaneceria intocada pelas chamas. Não foram capazes.

O carro do casal continua imobilizado na berma da estrada de terra, uns 10 metros em frente ao portão da vivenda

Quando voltou a casa, por volta das três da manhã, Luís Marques, o vizinho que lançara o primeiro alerta ao casal, foi o primeiro a encontrar o corpo de Hermínia. Mais dez metros e a idosa teria chegado a casa de Vítor. Foram os bombeiros, quase ao nascer do sol, a encontrar José Batista. Estava deitado mesmo ao lado de um poste de madeira que ainda ardia e que Luís Marques passou longos minutos a apagar, assim que regressou à localidade.

A casa de Vítor resistiu às chamas. Ali ao lado, a de José e Hermínia parece um bunker, quando comparada com a de qualquer dos seus vizinhos. Nem sequer a espreguiçadeira de plástico, que ficou esquecida à porta de casa, chegou a arder. É claramente a habitação mais segura da Quinta da Barroca, um oásis ao lado de outros edifícios totalmente destruídos pelo incêndio.

A meio daquela noite infernal, as mil e uma histórias de vítimas que passaram de boca em boca acabaram por cruzar os relatos de Vitória com os da morte do casal de idosos. E, rapidamente, a notícia que correu foi a de que um casal tinha sido encontrado morto e que o bebé de um mês estava desaparecido. Nessa versão, José e Hermínia, o casal de septuagenários apanhado pelas chamas na Quinta da Barroca, seriam confundidos com os pais de Raquel, avós de Vitória, com o mesmo nome, numa coincidência trágica. Na verdade, todos estiveram rodeados de chamas naquela noite de domingo para segunda-feira, mas Vitória nunca saiu de Percelada e José e Hermínia, as vítimas mortais, nunca chegaram a alcançar a população. Ainda assim, as duas histórias acabaram por cruzar-se num “complexo” fluxo de informação apenas desmentido esta terça-feira pela porta-voz nacional da Proteção Civil.

Vitória, disse Patrícia Gaspar, estava “bem e na companhia da família”. Confirmava-se. Raquel só percebeu que o país se comovia com a notícia da morte da sua filha quando recebeu uma chamada do Luxemburgo. Uma amiga ouviu a história ser contada na televisão e ligou-lhe, mesmo que não se soubesse o nome do bebé: mas, recém-nascido com um mês de idade perto da Quinta da Barroca, havia apenas um. A seguir, choveram mensagens no Facebook. “Agradeço a toda a gente mas estou viva, vitória”, diz a mulher. “Agora é lutar pela vida.”

“Isto foi o diabo por aqui”

A casa de Ricardo Mendes fica uns duzentos metros mais abaixo, depois da vivenda de José e Hermínia. No domingo, foi a segunda vez em 20 anos que viu a sua casa ser destruída pelas chamas. O calor foi tanto que a placa de betão armado que sustenta o primeiro andar abaulou. “Tinha ali oito jantes de alumínio que desapareceram, não ficou um sinal delas”, diz o carpinteiro, ao apontar para o entulho que se amontoa na cave.

José Mendes, o pai, não diz uma palavra. Passam-se longos minutos e o olhar do homem de 67 anos parece vaguear longe dali. De tempos a tempos, José passa pelo rosto a mão negra de carvão. As mãos de Teresa, a mãe de Ricardo, 68 anos, também estão negras. E tremem. Tremem muito. É ela quem diz a uma equipa de técnicas da câmara de Tábua que as suas galinhas desapareceram. Devem estar algures debaixo das telhas espalhadas pelo quintal.

Deolinda de pé junto a um muro de pedra, com a neta ao seu lado

Há quem avalie os danos depois da tragédia. E há quem ainda não consiga assimilar o que por ali passou. A poucos metros de onde Teresa fala com as assistentes sociais da autarquia, Deolinda está de pé junto a um muro de pedra, com a neta ao seu lado. Estão ambas viradas para um quadro de hectares e hectares em tons de negro. Por breves instantes, a mulher de 75 anos recorda as muitas tardes que passou a revolver a horta que ali tinha. Depois, a mente volta à noite de domingo. “Isto aqui foi o diabo, Deus nos livre.”

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