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Nuno Garoupa, presidente da Fundação Francisco Manuel dos Santos, foi o convidado especial da cerimónia comemorativa do 34º aniversário da Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho, aí tendo proferido a palestra “O Fracasso das Instituições Portuguesas como Problema de Muito Longo Prazo” que aqui reproduzimos no dia em que o Governo português apresenta o seu Plano Nacional de Reformas.
Os quatro sentimentos da sociedade portuguesa
A sociedade vive ciclicamente entre quatro sentimentos distintos, a saber, a euforia, a nostalgia, os vencidos da vida e o sebastianismo.
A euforia corresponde a um período de otimismo normalmente resultante de um recomeço. Por exemplo, com a nossa entrada, primeiro, na União Europeia e, depois, na zona euro, tornámo-nos um país novo, rico, pujante, com novos horizontes. Tudo confirmado pelas muitas autoestradas, pelos novos padrões de consumo, pela aquisição de casa própria, pela proliferação das piscinas e do parque automóvel. Portugal cumpria, assim, o seu destino de país europeu próspero.
Esta euforia não é um produto menor do cavaquismo ou do socialismo de Guterres. Tem paralelos com o quinto império sonhado pelo Estado Novo (e glosado por Fernando Pessoa), ou com o sonho republicano de 1911 ou com o Portugal liberal e constitucional do século XIX. Há sempre um momento em que Portugal se vai finalmente realizar.
Como quase sempre aconteceu nos últimos duzentos anos, a euforia acaba sempre na ressaca. O país percebe, sempre tardiamente, que o novo Portugal não tem correspondência com a realidade dos fundamentos medíocres da sua economia. Não admira, pois, que a fase eufórica esteja associada a endividamento excessivo e à consequente (quase) bancarrota.
Segue-se a nostalgia. Fomos a grande potência disto e daquilo, o maior império, a primeira globalização, temos uma cultura importantíssima, o país com as fronteiras mais antigas da Europa. Com ela, vivemos uma certa bipolaridade de um passado glorioso (que não o foi mais do que o de qualquer outro país europeu) e um sentimento de culpa, por termos perdido essa maravilhosa glória. Não temos ainda uma relação saudável com o passado. Por exemplo, muitas vezes avaliamo-lo com os nossos olhos, procurando culpa nos nossos avós, que evidentemente julgaram pelos seus olhos e não pelos nossos (pensemos nas nossas aventuras coloniais). Mas, por outro lado, ignoramos a prevalência de corrupção e do enriquecimento ilícito em muitos dos nossos heróis, naquilo que já era uma conduta contemporaneamente criticada (veja-se o caso sintomático do Marquês de Pombal).
Com a nostalgia, instala-se o pessimismo: “isto não tem solução”, “mais vale emigrar”, “são sempre os mesmos”. Chegam os vencidos da vida. Infelizmente, sabemos que na história predomina este sentimento, principalmente nas suas fases mais democráticas (final do século XIX, Primeira República, agora) porque estamos constantemente confrontados com a insuficiência da nossa sociedade e da nossa economia, com o fracasso das expectativas criadas.
Diz-se que o país vive hoje a sensação de não ter um projeto comum. Mas isso evidentemente é apenas um sintoma de pobreza. Um país rico não questiona a existência de um projeto comum. O país pobre sim. Porque a sua pobreza seria o sacrifício a suportar por um grande projeto. Sem projeto, o país não consegue perceber a razão metafísica da sua pobreza.
A nostalgia e os vencidos da vida desembocam no sempre presente sebastianismo. Sabemos que aparecerá um redentor que, fora das instituições e mesmo contra as instituições, salvará o país. Temos fundamentalmente uma cultura política e intelectual de personalidades (os “ismos” abundam na nossa política em detrimento de ideologias ou filosofias), e não de instituições ou correntes de opinião. Como sabemos que as instituições são sempre parte do problema, procuramos a resposta num salvador que nos resolverá tudo, queremos um caudilho que nos liberte do peso das instituições. E sempre que o anunciado caudilho começa a falhar, a culpa não é dele, mas dos que o rodeiam: cultivamos a irresponsabilidade do salvador. É por isso, aliás, que as nossas fases democráticas se assemelham muito mais a consulados bonapartistas que a uma democracia anglo-saxónica.
Estes quatro sentimentos (euforia, nostalgia, vencidos da vida, sebastianismo) repetem-se ciclicamente, em fusão com as instituições que regem a sociedade portuguesa em diferentes épocas da sua vida.
O que são as nossas instituições?
As instituições nascem, consolidam-se e morrem. A primeira nota importante é que até hoje as nossas instituições nasceram em revoluções e em revoluções morreram. Ao contrário de outras culturas, fomos incapazes de ter uma regeneração negociada até hoje. Por exemplo, desde o século XVIII que os anglo-saxónicos regeneram as suas instituições de forma pactuada, isto é, os diferentes atores assumem perdas de curto prazo com vista a ganhos de longo prazo. Os norte-americanos desde a guerra civil. Na Europa foi mais tarde, apenas desde a Segunda Guerra Mundial: a transição da IV para a V República em França deu-se em 1958, a mudança em Itália em 1992, a transição espanhola em 1975, as transições na Europa de Leste nos anos 90. Em Portugal, ainda não temos essa experiência de evolução pactuada das nossas instituições. Este é o grande desafio que temos pela frente na geração presente.
Mas, para além da ausência de evolução pactuada, a consolidação das instituições em Portugal faz-se pela substituição progressiva de instituições inclusivas por instituições extrativas ao longo de um determinado intervalo de tempo. Ou seja, de instituições que favorecem consensos, negociações e equilíbrios e são, por isso, amigas do crescimento económico sustentado e de uma sociedade mais igualitária por outras dominadas pelos interesses privados ou corporativos com o objetivo de beneficiar certos grupos, desfavorecendo, assim, o crescimento económico e induzindo mais desigualdade.
Precisamente porque as nossas instituições nascem de uma revolução, elas são naturalmente inclusivas (prevalece a euforia). Mas com o tempo, tendo em conta os benefícios concentrados e os custos disseminados, transformam-se em extrativas ou são apropriadas por corporações até ao culminar de outra revolução (este processo de apropriação é acompanhado pelos vencidos da vida e pelo sebastianismo). Até hoje os grupos instalados que dominam as instituições foram incapazes de aceitar ceder ou perder no curto prazo para favorecer uma regeneração tranquila. Temos, pois, um exemplo de “dry politics” constante, que inevitavelmente leva ao corte radical entre regimes políticos.
Já Fernão Lopes dizia cinicamente que uma nova geração de homens se levantou para descrever que, depois da revolução, ficavam os mesmos de sempre, o que documenta a incapacidade das corporações se regenerarem pacificamente e por via de pactos, mas a habilidade de se reorganizarem num novo regime político, transformando as instituições inclusivas em extrativas de forma eficaz.
Exemplos históricos
Portugal enquanto tal nunca inventou instituições suas. Elas são sempre copiadas de outros modelos (francês, alemão, italiano) ou completamente impostas (por exemplo, recentemente, as autoridades reguladoras impostas pela União Europeia). Portanto, a nossa criatividade institucional é absolutamente mínima. Desde os romanos e dos árabes que somos uma sociedade de transplantes e não de origens institucionais.
Somos um país que chegou historicamente tarde a quase tudo: ao feudalismo, à centralização do poder real, ao renascimento, à contra-reforma, às luzes e ao iluminismo despótico, à revolução liberal, à monarquia constitucional, ao autoritarismo corporativo e à democracia. Fingir que a nossa periferia geográfica, politica e económica não nos condiciona muitíssimo é ignorar a lição da história. Somos assumidamente periféricos às grandes mudanças políticas do globo.
A isso se junta a sempre alegada especificidade portuguesa. O combate ao estrangeirado como forma de limitar as instituições transplantadas e fechar as elites, cartelizar os grupos dirigentes, é também uma constante das instituições. O próprio conceito de estrangeirado confirma a perceção da nossa periferia geográfica e cultural.
Bem sei que, mais recentemente, há uma tendência para culpar a cultura católica. Pressinto, contudo, que esta apenas acicata elementos antropológicos e inerentes à nossa organização social. Temos uma sociedade hierárquica e hierarquizada, com uma enorme cultura centralista e de poder majestático que evidentemente não se desfaz numa geração, com ou sem catolicismo à mistura. A cultura católica prevalece noutros quadrantes culturais e antropológicos sem induzir exatamente o mesmo desenho institucional que temos na sociedade portuguesa (pensemos na Irlanda, na Bélgica, na Áustria ou na Polónia).
Juntam-se às instituições extrativas a presença forte do Estado em Portugal. Nos descobrimentos, na atividade económica do iluminismo, ao longo do século XIX, no Estado Novo, nas aventuras ultramarinas e, claro, na democracia. Mas não é a presença forte do Estado que explica a cultura antiliberal portuguesa que nos é confirmada reiteradamente por todos os estudos de opinião recentes. É antes a cultura antiliberal portuguesa de muitos séculos, apoiada e suportada pelas instituições extrativas, que explica a presença forte do Estado.
Ao mesmo tempo, porque o Estado é ele mesmo extrativo e corporativo, a sociedade genericamente desconfia dele. Por isso, não há um respeito intrínseco pela lei (por exemplo, nem existe a palavra “enforcement” em português), porque é sabido que a lei foi feita para beneficiar os grupos que dominam o Estado e não o bem comum. Existe, assim, um jogo de soma nula entre os diferentes grupos para capturar o Estado que justifica uma inveja antropológica e um permanente “nós vs. eles”, numa distinção em que a sociedade se desresponsabiliza de quem governa, algo tanto mais chocante em épocas democráticas porque o “eles” foi eleito por “nós”.
Como somos um país relativamente homogéneo e pequeno, não temos movimentos regionais ou locais que limitem o Estado central, o que explica porque muitas das características que observamos, sendo comuns a Espanha, França ou Itália, parecem ter em Portugal mais força e mais dinamismo.
Problema do muito longo prazo
A questão que decorre é clara – porquê a prevalência das instituições extrativas? Não sendo evidentemente uma especificidade portuguesa, é um problema nosso.
Comecemos por aceitar que preenchemos os requisitos teóricos para ser dominados por instituições extrativas: periferia geográfica e cultural, país pobre (relativamente ao espaço em que estamos inseridos), homogeneidade das classes dirigentes (que a massificação do ensino universitário não alterou), hierarquização e estratificação das relações sociais e laborais (que apesar de tudo se mantém), concentração de riqueza (que a democracia não resolveu), dimensão reduzida do país, com ausência de centros de decisão concorrentes (apesar das autarquias e dos governos regionais nas ilhas, a centralização persistiu). Todas estas características facilitam uma fraca expressão da sociedade civil e uma cultura contrária à avaliação, ao mérito e à “accountability” (mais uma palavra sem tradução em português). Tudo isto explica a persistência e resistência das instituições extrativas.
A questão seguinte – temos capacidade de superar este problema? Não tivemos nos últimos duzentos anos, apesar de cada revolução (1820, 1834, 1910, 1926, 1974) impulsionar um recomeço que tinha esse mesmo objetivo. Por outro lado, depende da nossa sociedade atual superar a nostalgia, sebastianismo ou vencidos da vida e reorganizar as suas instituições inclusivas de uma forma sustentável.
Neste momento, conseguiremos fazer a regeneração pactuada que nunca foi possível antes? E como se faz ela? Com novos partidos (temos o sistema mais estável do Sul da Europa)? Teremos uma evolução à húngara ou à polaca (com um caudilhismo estilo século XXI)? A União Europeia vai continuar a impor instituições que nos são estrangeiras e portanto falham na sua missão (volto ao exemplo das entidades reguladoras que são notória e globalmente irrelevantes em Portugal)?
Talvez a nota mais preocupante seja que vivemos um tempo de crise das instituições extrativas, mas a sociedade portuguesa não tem tempo para discutir as suas próprias instituições. O primeiro passo seria reconhecer que temos um problema sério, de muito longo prazo, com a nossa forma de nos organizarmos. Diz-se e repete-se à exaustão que os diagnósticos estão todos feitos. Estarão provavelmente; todos sabemos que as instituições extrativas são um cancro que nos ocupa há mais de 200 anos. Mas raramente o debate público consegue sair das preocupações do dia-a-dia. A reforma das nossas instituições não é tema ou proposta de qualquer ator político atual. Isso é sintomático do nosso estado de coisas.
Diz-se que D. Pedro IV, ao desembarcar no Mindelo, terá dito qualquer coisa do estilo “vamos libertar estes malfadados, quer eles queiram, quer não”. Claramente as nossas instituições ainda aguardam o histórico desembarque…
Nuno Garoupa é presidente da Fundação Francisco Manuel dos Santos