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MELISSA VIEIRA / OBSERVADOR

MELISSA VIEIRA / OBSERVADOR

Francisco Guimarães: "No futebol ainda há o mito de que é preciso castigar"

Francisco Guimarães, 22 anos, é treinador de futebol desde os 15, o mais jovem comentador da "Sport TV" e embaixador para a Integridade no Desporto. Será o novo Mourinho? Entrevista a Laurinda Alves.

Aprendeu cedo a fazer perguntas, a querer saber porque é que as coisas são como são. O lema serviu para a paixão: o futebol. E lançou-o no sonho, aos 13 anos: ser treinador. Houve quem o levasse a sério, como Manuel Sérgio, e quem o mandasse ir ao Chelsea, sem dia nem hora marcada. José Mourinho, claro. E ele foi. Aos 15 já treinava uma equipa, antes dos 20 voou para Nova Deli, para dirigir um clube indiano. O irmão deu-lhe um conselho: integridade, acima de tudo. Agora, aos 22 anos é embaixador internacional da Aliança Global para a Integridade no Desporto e o mais jovem comentador desportivo de sempre da “Sport TV”. Pelo meio ainda faz voluntariado no Vale de Acór onde confirma uma sua certeza: o desporto resgata.

Francisco Guimarães acaba de entrar na galeria de “Imperdíveis”, o programa de Laurinda Alves na Rádio Observador, todos os domingos, às 11h. Entre outras histórias conta como, depois de uma pesada derrota, pôs a equipa que treinava a jogar Bubble Football em vez de castigar os jogadores, obrigando-os a subir escadas ou a correr. Estes gostaram, a direção do clube não.

[O melhor da entrevista a Francisco Guimarães:]

Francisco, ter uma conversa consigo é imperdível porque ainda só tem 22 anos mas já tem um currículo que começou aos 15. É treinador de futebol, hoje em dia isto tem um nome muito sofisticado, é o “man manager”, um homem que gere homens. Acho isso extraordinário, mas é também embaixador global para a integridade no desporto, é voluntário no Vale de Acór, faz muitas coisas e ainda só tens 22 anos. Já o apresentei pelo que faz. Posso perguntar, quem é?

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[risos] Essa é uma pergunta muito difícil. Agora estou-me a lembrar de uma crónica da Clarisse Lispector, escritora brasileira em que lhe fazem esta pergunta, “quem é que tu és”, e ela começa a divagar “quem é que eu sou”, começa a pensar em filosofia e na própria psicologia do ser humano, porque quem é que nós somos é uma ótima pergunta. Acho que somos seres tão diferentes todos os dias… Depois, claro que há a nossa essência, os nossos valores, a forma como nós olhamos para a vida, essa mantém-se durante algum tempo… Eu, como líder, também acredito muito nisso, que as pessoas têm a capacidade de mudar mesmo mas acho que a forma de olhar para a vida, os valores, o desejo do nosso coração que todos temos, acho que a função também de um treinador é mesmo essa porque… Agora estou a fugir um bocadinho à pergunta, mas…

Não, não está a fugir um bocadinho, está a fugir completamente, mas estava a ir por um caminho interessante…
Acho que cada vez mais nós precisamos uns dos outros, contrariando os gurus de auto-ajuda, ou alguns gurus de auto-ajuda da atualidade, que dizem que nós somos as pessoas mais importantes da nossa vida. Acho que só somos as pessoas mais importantes da nossa vida se estivermos com outros, outros que nos façam crescer; e a liderança e o trabalho de equipa é mesmo isto, porque cada um de nós nasce com um desejo grande no nosso coração (sejamos católicos, sejamos ateus, indiferentes), mas cada um nasce com um desejo de fazer qualquer coisa maior do que nós e a função de um treinador, a função de um líder, é mesmo esta, fazer com que esse desejo brote e que cresça, ajudando. E acho mesmo que nós somos mesmo…

Só somos quem somos na presença do outro. Ou sabendo…
Exatamente, é mesmo isso. Estava-me a faltar a palavra mas é mesmo isso.

… que não estamos sozinhos e que nenhum Homem é uma ilha, nenhum líder é uma ilha, ninguém é uma ilha.
Mesmo às vezes gostando de estar sozinhos. Muitas vezes gosto de ir dar um mergulho à praia de manhã sozinho…

Não precisa de ninguém.
Não preciso de ninguém mas chego à conclusão, depois de estar sozinho, que preciso de estar com alguém para falar ou mesmo para estar em silêncio. Por exemplo, vou brevemente fazer os caminhos de Santiago com o meu irmão, uma pessoa com quem me dou lindamente, não precisamos de falar muito, mas este silêncio chega-nos.

É um silêncio cheio, por definição, não é?
Sim, sim, é um silêncio cheio de palavras.

É uma conversa no silêncio, isso é muito interessante. Então antes de irmos aos caminhos de Santiago, antes de irmos ao seu papel de líder e de comentador, é comentador de televisão na “Sport TV”, é o comentador desportivo mais novo de sempre. Há um ano que é comentador e ainda só tem 22 anos acabados de fazer. A sua carreira como treinador de futebol começou algures aos 15 anos… também já vamos falar sobre isso, se calhar aproveitava o facto de estarmos a conversar exatamente após uma semana de uma grande derrota, o Sporting perdeu 5 a 0 no domingo passado, hoje é domingo outra vez. O jogo, as técnicas, as táticas foram todas dissecadas, mas gostava de falar com o Francisco sobre o que é realmente um man manager, um homem que gere homens e que está muito habituado a resgatá-los também dos seus falhanços, dos seus fracassos, das suas derrotas. O que é que é suposto fazer, como é que se levantam estes homens do chão?
Acho que não é suposto fazer nada, ou seja não há nenhuma regra, não está nada instituído [para o que vem ]a seguir a uma derrota, ainda por cima, uma derrota destas do Sporting frente ao maior rival, muito pesada, não há uma regra, não há uma coisa que vem nos livros. Parte da sensibilidade do treinador, parte da equipa técnica perceberem o grupo que têm à frente, perceber o que é que o grupo precisa naquele momento, olhando para cada um e tendo um olhar verdadeiro para cada um dos jogadores, mas depois olhar para o grupo como um todo. Porque as equipas funcionam mesmo assim, através de contágio, uns seguem os outros e por isso  [ha que] olhar para aquela equipa que está “desvastada” por ter perdido 5-0…

Devastada…
Devastada por ter perdido 5-0. Não se sabia se já estava planeado ou não mas a seguir a esta derrota foram dados dois dias de folga. Ainda há um mito no futebol que a seguir a uma derrota pesada os jogadores têm que ir correr, subir escadas…

"Muitas vezes, por exemplo, é impensável para um treinador e para um jogador de futebol, rir a seguir a uma derrota e nunca consegui entender porquê. Obviamente, não vamos estar contentes da vida por termos perdido, não faz sentido. Ficamos sempre tristes e devastados, como ficou o Sporting, mas ao mesmo tempo o sorrir ou o rir perante a derrota, o ter algum sentido de humor perante uma situação muito adversa faz-nos exorcizar e ultrapassar essa questão."

Têm que ser castigados. Que horror.
Têm que ser castigados, é mesmo essa a palavra. E às vezes tem que ser porque depende da derrota, depende do grupo. Mas muitas vezes o problema não é esse. A derrota é muito mais que um problema estratégico, muito mais do que um problema tático, acho que o ser humano vem sempre antes.

A derrota, neste caso do Sporting há uma semana, foi o próprio castigo porque eles estavam a jogar bem, na primeira parte jogaram bem.
Sim, na primeira parte jogaram bem, na segunda houve alguma dificuldade de adaptação a certas características do jogo. Também não interessa entrar muito por aí porque são questões muito técnicas.

E já passou e toda a gente já as discutiu.
Mas mais do que isso é perceber o que é que aconteceu a seguir, e muitas das vezes é preciso esquecer. Acho mesmo, acho que estes dois dias de folga parece-me [bem]… não conheço o grupo do Sporting, não estou por dentro do trabalho diário…

Mas pareceu-lhe bem, pareceu-lhe justo?
Mas parece-me bem porque obriga a desligar um bocadinho e  a um recomeçar, um fazer do princípio que é uma coisa de que gosto muito, o recomeçar é uma coisa muito boa e que nós temos de fazer todos os dias e encarar as coisas com alegria e muitas vezes, por exemplo, é impensável para um treinador e para um jogador de futebol, rir a seguir a uma derrota e eu nunca consegui entender porquê. Obviamente, não vamos estar contentes da vida por termos perdido, não faz sentido. Ficamos sempre tristes e devastados, como ficou o Sporting, mas ao mesmo tempo o sorrir ou rir perante a derrota, o ter algum sentido de humor perante uma situação muito adversa faz-nos exorcizar e ultrapassar essa questão.

Mas já tem isso testado, já fez isso com as suas equipas? Desde que é treinador?
Sim, lembro-me quando era treinador dos sub-19 do [Sociedade União] 1º de Dezembro em que nós estávamos perto do primeiro lugar, estávamos a cinco pontos. O nosso objetivo era subir de divisão, por isso ficar em primeiro. Só subia de divisão quem ficasse em primeiro e tínhamos um jogo muito importante, se perdêssemos ficávamos a oito pontos, se ganhássemos ficávamos muito mais próximos, e foi uma semana em que colocámos muita pressão a falar da importância do jogo. Aos quinze minutos estávamos a perder por 3-0,  as coisas não estavam mesmo a correr bem. E estar a perder por 3-0… ainda por cima nunca conseguimos dar a volta, foi mesmo um jogo terrível para todos, no momento…

Também acabaram com 5-0?
Não, acabámos com três, mas o impacto é o mesmo. Claro que no Sporting tem outra visibilidade mas aqui no nosso núcleo, no nosso nicho foi uma derrota muito dura, presidentes, diretores, tudo zangadíssimo, tudo muito triste, até mais do que triste, muita gente zangada. A achar que não tínhamos dado tudo e muitas vezes não faz sentido pensar assim, por isso é que falava na importância de conhecer cada um dos jogadores que nós temos à nossa frente e conhecer muito bem o grupo. A seguir a essa derrota o primeiro passo tem de ser individual, do líder, de quem vai à frente.

Qual foi o seu primeiro passo?
Foi fechar-me dentro do balneário e refletir, pensar o que é que tinha acontecido, sem grandes dramatismos. Claro que a tendência é essa…

Ver como num filme, tentar ver como num filme, ser quase espectador, sem julgar e sem culpar.
Sim pormo-nos um bocadinho de fora a olhar para o que é que aconteceu, o que é que foi aquela semana. Fui- me embora…

Zangado…
Ia para casa zangadíssimo, fui para a Fnac descomprimir. Às vezes faz-me bem estar ali num ambiente…começar a ler qualquer coisa porque podem surgir ideias, liguei para os meus adjuntos, falámos um bocadinho, reunimo-nos e pensámos no treino de segunda-feira, ou seja, ‘o primeiro treino a seguir ao jogo vai ser um treino muito duro. A ninguém vai apetecer treinar, ninguém vai estar disposto a isso, é muito melhor trabalhar as coisas com alegria e ninguém vai estar disposto, não vamos trabalhar questões táticas porque não vão servir para nada, não vamos trabalhar questões do jogo que correu mal porque o jogo correu tão mal que não faz sentido estarmos a pensar assim tanto nele e por isso vamos fazer uma coisa diferente, vamos obrigar-nos a esquecer o que é que se passou’ e lembrámo-nos de fazer um jogo de “bubble football” que é um…

“Bubble football”?
“Bubble football” é um jogo de…

Daquelas bolhas gigantes?
Sim cada põe-se dentro de uma bolha…

De uma bola, de uma bola insuflável.
Há uma bola de futebol mas ela não interessa muito porque o que interessa ali é andar à…

Que ela está fora da bolha…
 Sim [risos]. Andar à pancadaria entre aspas, porque é uma coisa muito divertida. Nós próprios treinadores entrámos e foi um treino [que foi] uma surpresa…

Uma risota…
Nós próprios treinadores pagámos do nosso próprio bolso, [foi] uma risota e perceber que a seguir a uma derrota podemos rir, podemos encarar a coisa de forma positiva e com isto os jogadores no treino a seguir já estavam muito mais preparados para serem “massacrados” com questões para melhorar o nosso jogo e para melhorar a nossa estratégia.

"Após esse treino que foi uma surpresa para todos, fui chamado à direção: 'O que é que estás aqui a fazer, porque no meu tempo o objetivo era subir escadas a seguir a uma derrota, nem sequer tocavam na bola?'. Por isso é que é importante conhecer a origem da derrota. Se foi uma questão de atitude, temos de ser um bocadinho mais duros mas se não foi, o problema não foi esse, por isso temos que encarar as coisas com muito mais naturalidade. Até porque perder, ganhar ou empatar é a vida..."

Então se bem percebo é assim como no Sporting haver dois dias de intervalo, dois dias de folga em que dá para reorganizar, dá para uma pessoa descomprimir e dá para recomeçar, usando a sua terminologia, um “Bubble football”  dá para fazer exatamente o mesmo, mas criar também alguma leveza e alguma distância crítica e recomeçar a partir de outro patamar.
Sim, sim, se bem que isso é um bocadinho ainda impensável no futebol. Infelizmente, o futebol tem coisas fantásticas mas também ainda tem mitos…

É muito castigador o “mindset”?
É muito castigador nesse aspeto, aquilo que se devia fazer a seguir a uma derrota era castigar os jogadores, puni-los, pô-los a fazer um trabalho muito físico.

Mas isso não resulta, não é? Não muda ninguém.
A maioria das vezes não resulta, não muda e o nosso objetivo é mesmo esse: criar um impacto nos outros provocando uma mudança para melhor e no futebol ainda há o mito de que é preciso castigar. Após esse treino que foi uma surpresa para todos, fui chamado à direção: “O que é que estás aqui a fazer, porque no meu tempo o objetivo era subir escadas a seguir a uma derrota, nem sequer tocavam na bola?”. Por isso é que é importante conhecer a origem da derrota. Se foi uma questão de atitude, temos de ser um bocadinho mais duros mas se não foi, o problema não foi esse, por isso temos que encarar as coisas com muito mais naturalidade. Até porque perder, ganhar ou empatar é a vida…

Como dizia o Fernando Santos há pouco tempo aqui “o futebol é um jogo de erros”…
Sim, acontece perder, acontece ganhar e por isso cada vez mais acho que os jogadores, treinadores, dirigentes têm que estar preparados para a derrota e encarar as coisas com a maior das naturalidades. Obviamente que tentando superar e tentando ganhar a maioria das vezes, porque é esse sempre o nosso objetivo, mas acima de tudo não dar demasiado valor aos resultados, porque eles muitas vezes não significam nada, não mostram aquilo que somos.

É muito interessante falar com uma pessoa que tem 22 anos acabados de fazer, e ao mesmo tempo pudesse escrever ainda hoje um manual de liderança. Já vi o Francisco conferir técnicas e táticas de liderança fora de jogo com “CEOs” de grandes empresas e de multinacionais. E é extraordinário um homem de 60 anos, muito preparado e muito afinado do ponto de vista da gestão das suas equipas e da sua empresa vir-lhe perguntar a si se acha que está certo e se acha que aquilo foi bem pensado. Como é que de repente o Francisco se fez um líder e como é que isso acontece? Podemos voltar outra vez aos 14 anos, se calhar, e tentar perceber onde é que começou a traçar o seu rumo profissional?
Até podemos começar mais cedo. É giro falar nesta dualidade de pessoas mais velhas e pessoas mais novas porque sempre gostei de estar com pessoas mais velhas. Lembro-me de a minha mãe abrir a casa para jantares e para almoços e haver sempre muitas atividades e eu gostar de estar ali, com gente mais velha, a ouvi-los e a perceber o que é que se passava, sem sequer falar muito. Não sou uma pessoa de falar muito, apesar de não parecer aqui na entrevista [risos].

Aqui é suposto…
Aqui é suposto.

MELISSA VIEIRA / OBSERVADOR

Gostava de ouvir e observar?
Sim, era muito assim. Fazer uma posição de espectador.

Ouvir e observar são duas ferramentas poderosíssimas.
Poderosíssimas…

Potentes.
É pegar um bocadinho naquilo que o Miguel Araújo [diz] num livro de crónicas fantástico em que o subtítulo é “Ver a vida a passar da varanda”. Era mesmo isso que eu fazia, estar na varanda e olhar um bocadinho de fora sem sequer participar na conversa. Isso ajudou-me e ainda gosto muito de fazer, gosto sempre de ter muito contacto e tenho grandes amizades com pessoas mais velhas, até sou um bocadinho uma alma velha [risos].

Uma alma velhinha.
Uma alma velhinha, mas isso ajudou-me muito, desde os livros para ler, às músicas que a minha mãe me massacrava para ouvir e que agora são as músicas que eu oiço. Foi importantíssimo para mim, para crescer, olhar para as pessoas mais velhas como um exemplo, como guias. Mais uma vez a importância de ter outras pessoas que nos ajudem no nosso próprio caminho…

Mas cresceu sem queimar etapas ou não?
Espero que sim.

Ou seja, continua a ser um rapaz de 22 anos com amigos da sua idade e amigas da sua idade e fazer a vida de quem tem a sua idade.
Sim…

Mas com um cúmulo de amizades que também não têm idades, não é? Pessoas mais velhas e mais novas.
Sim, sim. Exatamente, mas depois, graças a Deus, tenho amigos da minha idade que me puxam para a Terra e que me obrigam a fazer coisas que é suposto com a minha idade. Isso também me faz lindamente…

Mas então quando é que começou a questão do…
Isto começa com um enorme interesse pelo ser humano e por tudo o que ele faz, por tudo o que ele diz. Começa nestas conversas, nestas tertúlias que sempre tive e que agora sou eu que abro a minha casa para receber amigos pelo enorme gosto de estarmos juntos. É isto que tento também passar para a minha equipa e para as minhas equipas: é que muitas vezes estamos fartos uns dos outros, porque acontece vermo-nos todos os dias em momentos de muita tensão e às vezes só apetece sair daquela bolha e às vezes é importante [fazê-lo] mas tem que haver um prazer em estarmos juntos.

"Há vida a correr ao lado do jogo e por isso é importante [contacto com outras áreas] até porque o futebol é uma ótima metáfora para a vida e se nós conseguirmos aprender com outras áreas, com outras profissões, com outras formas de olhar para as coisas, mesmo olhando para pessoas que supostamente não têm nada a ver com a área... E nós fizemos um projeto muito giro no 1º de Dezembro porque obrigava exatamente os nossos jogadores a saírem da bolha futebolística porque, aparentemente o Ricardo Araújo Pereira não tem nada a ver com futebol, nem o Salvador Martinha, nem a Laurinda Alves."

Fazendo aqui um parêntesis, se calhar era por isso ou nessa lógica e com esse sentido que quando era treinador do 1º Dezembro levava lá pessoas como o Ricardo Araújo Pereira, o Zé Pedro Cobra Ferreira, o Salvador Mendes de Almeida, ou seja pessoas de outras áreas e pessoas com experiências de vida muito ricas para que os seus jogadores não ficassem reduzidos à expressão mínima, porque isso seria muito redutor, mas para sair dessa bolha futebolística, era isso?
Sim, sim.

Ou seja, provocava umas tertúlias ali no jogo, no relvado, para que eles ouvissem outras coisas e tivessem outro mundo.
Sim, porque há vida a correr ao lado do jogo e por isso é importante [contacto com outras áreas] até porque o futebol é uma ótima metáfora para a vida e se nós conseguirmos aprender com outras áreas, com outras profissões, com outras formas de olhar para as coisas, mesmo olhando para pessoas que supostamente não têm nada a ver com a área… E nós fizemos um projeto muito giro no 1º de Dezembro porque obrigava exatamente os nossos jogadores a saírem da bolha futebolística porque, aparentemente o Ricardo Araújo Pereira não tem nada a ver com futebol, nem o Salvador Martinha, nem a Laurinda Alves, que também lá foi…

Que também lá fui, exatamente.
O Salvador Mendes de Almeida e o Tomás Morais. O Tomás Morais é o único que tem a ver com desporto, mas…

Mas disse o futebol é uma boa metáfora para a vida, em que sentido?
O Papa Bento XVI tem umas frases fantásticas sobre futebol, em que ele diz que “o futebol simboliza a própria vida porque obriga a subordinar o próprio ao todo, obriga a reagir à adversidade”. No fundo era…

Fazer equipa.
Sim, fazer equipa, mas acho isto mesmo, que é subordinar o próprio ao todo, saber que há coisas muito mais importantes.

O individual é importante, mas o coletivo ainda mais.
Sim e [quando] o coletivo é bom, o individual também sobressai.

Queria voltar ali aos catorze, quinze anos.
Começa na educação e numa enorme paixão pelo jogo, pelo futebol: na altura queria ser jogador como qualquer miúdo daquela idade. O Euro 2004 fez despertar em mim uma paixão enorme pelo jogo e depois à medida que fui encontrando pessoas que me foram marcando imenso no meu caminho, principalmente dois treinadores, um muito bom nas questões mais técnicas do jogo (até fomos campeões distritais nesse ano quando jogava ainda futebol no “CIF”, era federado no “CIF”) e outro treinador que era muito forte nas questões humanas, na questão da liderança. E acima de tudo começar a ter alguma curiosidade — nisto a minha escola também foi importantíssima para ter curiosidade sobre as coisas, para fazer perguntas.

Qual era a sua escola?
Colégio de São Tomás. Foi muito importante para mim nesse aspeto: mais do que termos opiniões, o [importante é] perguntar, perceber porque é que as coisas funcionam de determinada forma.

Evoluir através de boas perguntas.
Exatamente, e comecei a fazer isso com os meus treinadores, a perguntar sobre porque é que estávamos a jogar desta forma, porque é que foi feito este exercício, porque é que ele falou comigo [daquela maneira]…porque é que ele me disse isto ou porque é que ele me disse outra coisa qualquer.  E esta curiosidade, ter pessoas que se cruzaram comigo, que me obrigaram a olhar para outras coisas além do próprio jogo, além de querer ser jogador… Comecei a pensar, além da falta de talento que era um bocadinho óbvia [risos].

Também pode ser humildade sua mas está bem, fica-lhe bem [risos].
Ah não, não, é mesmo falta de talento. Dois pés esquerdos como nós costumamos dizer no futebol. Mas…

Mas tudo isso levou-o a focar…
Tudo isso levou-me a pensar um bocadinho nos bastidores, e por que não experimentar ser treinador e por isso é que fui dizendo sempre aos meus treinadores que queria ser um deles.

Mas aí tinha catorze anos?
Aqui tinha treze, catorze.

Treze, catorze e eles acreditaram em si?
Eles levaram-me a sério.

Isso é importante, alguém que nos leve a sério.
É importantíssimo. No Colégio de São Tomás nunca tive ninguém, mesmo quando a pergunta aparentemente era estúpida ou parva, que me dissesse isso, “que estupidez de pergunta”. Levavam a sério a pergunta e respondiam-me.

Isso é muito interessante porque a Júlia Vieira Branco, com dezoito anos, a “imperdível” da semana passada, dizia exatamente isso. Ela também aos catorze anos chegou a casa e disse que queria ir num veleiro durante seis meses, que custava cerca de vinte um mil euros e os pais não disseram que estupidez, os pais disseram não temos esse dinheiro mas… e ela disse mas eu vou arranjar e eles disseram e nós ajudamos-te e é de facto… faz toda a diferença no percurso de uma vida, não é? Alguém que não nos diz que estupidez, que não nos corta as vazas, como se costuma dizer, e que aceita. Portanto as pessoas à sua volta aceitaram que podia vir a ser treinador de futebol?
Sim, aceitaram, obrigaram-me também a provar que este era um caminho sério, e os meus pais nisso foram importantíssimos e, ao mesmo tempo puseram-se lado a lado comigo. Puseram-se no meu caminho também, ajudaram-me, qualquer coisa que eu precisasse, eu sabia que eles estavam lá para amparar, para dar ali uma base sólida nunca esquecendo, lá está, a educação, a importância de me formar, a importância de fazer perguntas, porque era isso que depois iria sustentar a minha vida. E o mesmo aconteceu a partir do momento em que que experimentei e que tive um treinador que me convidou para…

Quem é que foi esse treinador?
Foi o Tiago António que me convidou para ser adjunto dele, na altura não fui… não cheguei a ser adjunto dele, fui do Ricardo Prendi, e foi a pessoa com quem trabalhei que me deu imensa liberdade ou ajudou-me, no fundo permitia-me errar.

Com quantos anos?
Com 15.

Com 15 anos…
Com 15 já era adjunto de uma equipa sub-15 por isso tinha mais ou menos a mesma idade que eles, um bocadinho mais velho. E era-me permitido errar, era-me permitido fazer as coisas, era-me dada responsabilidade, muita liberdade mas ao mesmo tempo muita responsabilidade e juntando todas estas questões que são tão importantes para o crescimento de uma pessoa, comecei a ganhar cada vez mais uma paixão por liderar. O professor Agostinho da Silva dizia uma coisa muito gira que era “ a função de um líder é tornar alguém melhor” e é mesmo isto que tento fazer na minha vida.

Como é que se fez um líder, como é que se fez um treinador, quem é que acreditou em si, quem é que foram as pessoas importantes para si?
É uma ótima pergunta, além das referências no treino e no jogo, Guardiola, José Mourinho, Ferguson são sempre referências da nossa própria área. Depois os meus pais, os meus irmãos também importantíssimos no núcleo familiar, também os amigos e depois lá está o abrirmo-nos um bocadinho ao mundo. Luto para que não me torne também uma pessoa demasiado obsessiva por futebol porque também não é isso que me faz crescer, o futebol cada vez mais tem que se abrir ao mundo…

Não é só isso.
Sim, não é só isso. Cada vez mais o futebol tem que se abrir ao mundo, abrir-se a outras áreas e por isso é que comecei a procurar através de músicas, de livros, entrevistas, sou viciado por exemplo a ver entrevistas e coisas que aparentemente não têm nada a ver e depois têm…

E também é viciado em anotar os jogos. Ver jogos e anotar jogos, tem pilhas e pilhas de caderninhos com anotações dos jogos, é verdade?
Sim, comecei muito cedo a fazer, no fundo, relatórios das equipas. A curiosidade que tinha para perceber como é que as coisas se passavam…

Voltamos outra vez aos treze, catorze anos?
Sim, lembro-me de, numa aula de português, espero que a minha professora não esteja a ouvir isto, estar a fazer de cor um relatório do Barcelona, de cor porque não estava a ver o jogo na altura, mas já tinha visto tantos jogos que comecei a escrever a forma da equipa jogar. Agora olho para o relatório e é uma coisa muito básica mas começou aí um enorme interesse pelo jogo e depois acho que é fundamental e nós temos que ter essa consciência que o aprender todos os dias a seguir a cada treino, a seguir a cada dia, anotar qualquer coisa que nos aconteceu…

Ou seja, o jogo não acaba quando termina, não é? O jogo acaba quando já pensou, já refletiu, já viu, já analisou e já criou uma distância crítica e viu o que é que aconteceu e porque é que aconteceu, é isso?
Sim, seja jogo ou mesmo que seja um dia de folga onde não haja jogo, não haja treino, a seguir a cada dia ter uma pequena reflexão, escrever qualquer coisa num caderno, nem que seja uma frase ou alguma coisa que me aconteceu .

E depois o que é que faz a esses cadernos? Compara-os, lê-os, volta a re-lê-los?
Muitas vezes volto a eles porque nos ajuda mesmo a crescer, alguma coisa que nos aconteceu, algum pensamento que tenhamos ou a seguir a um treino porque é que falei daquela forma com aquele jogador, o que é que fiz de bem, o que é que fiz de mal. Só temos um conhecimento verdadeiro se o produzirmos, não é só o que lemos, não é só o que vemos, não é só o que ouvimos mas depois se fizermos uma reflexão, juntarmos com aquilo que vivemos, por isso é que cada vez mais é importante vivermos as coisas numa entrega completa.

Ou seja é conjugar a experiência com a interpretação da experiência e conjugar o conhecimento então aí sim produzimos uma marca própria e um conhecimento testado.
Sim, o Mourinho dizia isso várias vezes, produzir o nosso próprio conhecimento e depois ter uma entrega verdadeira às coisas, o jogarmos por completo, não jogarmos literalmente, na minha vida é assim.

Espero que o Mourinho não me leve a mal, mas há muitas pessoas que acreditam e que garantem e que apostam que vai muito para lá do Mourinho no dia em que estiver na idade do Mourinho. Ou seja, o Mourinho aos catorze ou aos quinze anos não era treinador como o Francisco era…mas a sua história com o Mourinho tem alguma graça, não se importa de contar?
Não, não me importo nada.

Ele era certamente um dos seus ídolos, já o disse.
Sim, sempre foi uma das minhas referências na forma de olhar para o jogo, na forma de liderar principalmente. Comecei a abordar muitas pessoas do mundo do futebol, do topo. Tentei começar a perceber como é que os melhores trabalhavam…no fundo se queres ser como os grandes faz como eles. Então conheci o professor Manuel Sérgio, comecei a ganhar uma amizade muito grande [com ele]. A primeira vez que eu o conheci entreguei-lhe um trabalho sobre o José Mourinho, dei-lhe o meu número, trocámos contactos, achei que ele não ia ligar nenhuma e à noite recebo uma chamada de um número que não conhecia e era o professor Manuel Sérgio a dar-me uma desanda sobre o trabalho do Mourinho (risos). Mas, mais uma vez, levou-me a sério.

Uma desanda porquê, porquê?
Porque tinha coisas que estavam mal feitas e estavam porque…

"O Mourinho na mesma altura respondeu: 'Ele que venha'. O Mourinho estava a treinar o Chelsea, só que não disse dia, não disse data, não disse rigorosamente nada, e passado uma semana estava em Londres à frente do centro de estágio do Chelsea a tentar convencer os seguranças que eu era o tal miúdo que o Mourinho tinha falado. Bem, chamaram-me de impostor, disseram que eu já lá tinha estado, mas ao fim de uma hora de persistência, de muito chatear os seguranças, lá me deixaram entrar e consegui ver dois treinos do Chelsea e ter algum contacto com o Mourinho, que foi incrível e fantástico para um miúdo de 17 anos."

Acima de tudo levou-o a sério, não é?
Levou-me a sério, ajudou-me a crescer também porque a crítica foi dita com muita caridade. Quando a crítica é feita com caridade e com um olhar verdadeiro para a pessoa, nós crescemos imenso, por isso é que é importante nós, como jovens, querermos ser, como dizia o Papa Francisco, “ protagonistas da mudança”, mas ao mesmo tempo não descurar aquilo que foi o caminho feito pelos outros, pelas pessoas com mais experiência, porque muitas vezes temos essa arrogância juvenil, acho que faz parte de achar que o que está para trás não foi bem feito mas temos tanto a aprender. Mas em relação ao Mourinho, o professor Manuel Sérgio ligou-me e a partir daí começou uma amizade muito grande, e tem sido uma pessoa que me tem também ajudado muito. Um dia disse-lhe: “Professor, quero conhecer o Mourinho”. O professor Manuel Sérgio foi professor dele na faculdade…

Tinha quantos anos?
Tinha 17. E o professor, à minha frente, mandou uma mensagem ao Mourinho a dizer-lhe: “Tenho aqui um jovem que o quer conhecer, ele é treinador, não sei quê, vai gostar dele”. E o Mourinho na mesma altura respondeu: “Ele que venha”. O Mourinho estava a treinar o Chelsea, só que não disse dia, não disse data, não disse rigorosamente nada, e passado uma semana estava em Londres à frente do centro de estágio do Chelsea a tentar convencer os seguranças que eu era o tal miúdo que o Mourinho tinha falado. Bem, chamaram-me de impostor, disseram que eu já lá tinha estado (deve haver milhares de pessoas a tentar entrar ali), mas ao fim de uma hora de persistência, de muito chatear os seguranças, lá me deixaram entrar e consegui ver dois treinos do Chelsea e ter algum contacto com o Mourinho, que foi incrível e fantástico para um miúdo de 17 anos.

E que foi radicalmente transformador também, no fundo foi um boost de confiança.
Completamente, é a prova de que a insistência, quando não é em demasia, funciona.

Uma pessoa persistir e não desistir.
Uma pessoa não desistir, claro.

E foi sozinho para Londres?
Não, fui com o meu pai. O meu pai quis logo vir comigo.

Mas porque queria conhecer o Mourinho também? Ou porque…
Não, ele ficou à porta e eu entrei sozinho (risos).

Porque queria dar-lhe apoio a si é isso?
Porque me queria dar apoio, liguei logo ao meu pai e à minha mãe, mais racional apesar de sempre me apoiar muito, disse para eu ter cuidado porque o Mourinho não disse dia, não disse nada, se calhar foi só para ser simpático. ”Veja lá se vale a pena” não sei quê, não sei que mais e o meu pai disse “’bora” e fomos mas foi importante as duas coisas… Fui cauteloso de um lado, mas ao mesmo tempo arrisquei, e esta dualidade na educação e na minha vida tem sido importantíssima para mim.

Francisco, dando um salto para a Índia, como é que foi a experiência internacional como treinador de futebol numa latitude completamente diferente, com equipas com um pensamento completamente diferente, uma expectativa certamente distinta?
É outro mundo em tudo, na comida, na cultura, na língua, na forma de reagir à derrota, na forma de olhar para o jogo… E foi muito importante para mim apesar de o mercado futebolístico não ver isso com bons olhos porque saímos do centro do futebol que é a Europa. Mas foi importantíssimo para mim, para o meu crescimento enquanto homem, enquanto treinador por variadíssimas razões: primeiro porque me obrigou a adaptar-me e nós às vezes temos a tendência, como líderes, de querer controlar tudo e queremos ser intransigentes em tudo e obviamente que há coisas que não podemos deixar passar porque são os nossos valores que estão em jogo mas ao mesmo tempo temos que nos adaptar.

O que é que foi assim o choque mais… o choque cultural ou o choque emocional ou gastronómico, não sei?
Mais do que a comida, mais do que essas questões foi… foi o olhar para um ser humano que não tinha nada a ver com o ser humano que eu conhecia. Mesmo, principalmente na forma de olhar para a derrota nós fizemos por exemplo uma pré-época fantástica e no primeiro jogo perdemos 4-1 foi um jogo terrível, mais uma vez devastados, a seguir a isso e no treino a seguir ao jogo os jogadores pareciam, depois de uma pré-época incrível,  que não sabiam jogar futebol, e há talento na Índia. Não há muita cultura de jogo porque o desporto principal é o críquete, mas há talento e passado.

Isto era em Nova Deli, não era?
Sim, arredores de Deli, nós estávamos a duas horas sem trânsito, três horas com trânsito normal. Temos que nos adaptar mas isto para dizer  que normalmente os jogadores indianos, principalmente quanto mais novos forem, menos confiança têm, porque são obrigados desde cedo a fazer tudo, não decidem nada por eles, têm pouca liberdade e têm muito pouca responsabilidade, e por isso num jogo em que é preciso tomar decisões de forma constante, ainda por cima decisões sob pressão e sob tensão, é preciso que os jogadores saiam um bocadinho do armário e que consigam exercer a sua forma de pensar…

Autonomia…
A sua autonomia. E isto demorou tempo a acontecer, e construindo as coisas com maus resultados é muito mais difícil…

Com os seus valores humanos e com o seu olhar resgatador como é que fez?
É sempre com olhar humano, mesmo perdendo (depois deixou de acontecer mais para a frente), o grupo estava bem, estava contente e acho que isso é muito saudável, porque tivemos vários feedbacks e ainda hoje tenho mensagens de jogadores indianos a dizer que nós os marcámos imenso, que têm saudades dos nossos treinos porque acho que era mesmo na forma de nós treinadores olharmos para cada um deles como pessoas. Eles não estavam habituados a serem tratados dessa forma e isso provocou uma mudança e teve um impacto muito grande neles.

O que aprendeu com os seus jogadores indianos aplica aqui e resulta.
Espero que resulte, mas porque nós às vezes, como líderes, temos a tentação de querer controlar tudo e no Vale de Acór também tenho tido essa experiência, de querer controlar as coisas todas…

Ou seja, no Vale de Acór, onde faz voluntariado com pessoas que estão em processo de recuperação de adição, não é? Ex-toxicodependentes, talvez ex-alcoólicos?
Sim, sim. Também, também e no fundo isto era a propósito de…

O que é que aprendeu com os jogadores indianos e que aplica aqui num contexto que não tem nada a ver ou…
Às vezes é a nossa tentação como líderes e como guias de um grupo querer controlar tudo e fazer tudo à nossa maneira e nós muitas vezes temos que nos adaptar. Não acredito nada naquele tipo de liderança ou naquele tipo de pessoa que diz eu como líder sou assim e sou assado, que se caracteriza no abstrato, não olhando para as pessoas que tem à frente. Porque nós, tendo posições de liderança, temos que estar em constante processo de adaptação ao outro, não perdendo a nossa essência de valores na forma de olhar para a vida..

E isso implica que conheça bem as pessoas com quem trabalha?
Sim.

Que conheça as suas circunstâncias e contexto e que seja capaz de adaptar a sua liderança a cada um e não ser um líder pronto a servir, não é?
Sim, vou ser assim, assim e assim…

E eles que se adaptem…
E eles que se adaptem e não é assim. É exatamente o contrário.

O verdadeiro líder tem que se adaptar às pessoas com quem trabalha, sem perder a sua…
Sempre…essa questão faz lembrar uma carta que o meu irmão me escreveu quando fui para a Índia, uma carta muito muito bonita, que ainda hoje tenho guardada…

Tem um irmão e uma irmã?
Exatamente, os dois mais velhos do que eu e que me ajudam muito a crescer também, têm um sentido muito paternal o que é bom. Mas o meu irmão escreveu-me uma carta incrível para a Índia em que dizia não tentes impor tudo aquilo que és porque vais ver que adaptando a tua forma de ser e de estar a tua integridade vai sobressair. E foi uma grande lição de aprendizagem porque achava que era ao contrário.

Isso parece quase uma premonição quando ele fala na sua integridade e passado um par de anos o Francisco é convidado internacionalmente para ser embaixador para a integridade do desporto. O que é que é isso? De onde é que isto vem, onde é que isto nasce, o que é que pode transformar e mudar?
O Emanuel Medeiros, que foi a pessoa que me convidou e a quem estou profundamente grato, enganou-se porque me pôs ao lado de pessoas como o Miguel Oliveira ou a Rosa Mota e não tenho ainda o valor deles, espero vir a ter…

Não sabemos…
Espero vir a ter e trabalho mesmo para isso mas não tenho ainda a dimensão que eles têm, mas ao mesmo tempo obrigam-me a olhar para cima e perceber o quanto tenho que trabalhar para chegar ao patamar deles. Acho que acima de tudo fui convidado porque, não digo que tenho uma nova forma de olhar para o desporto, acho que felizmente o desporto e o futebol em particular têm ganho pessoas que olham com naturalidade para a derrota, [como eu] que não estão agarrados aos clichês típicos do mundo do futebol. É por isso que acho que fui convidado…

"Um treinador passado três jogos é despedido. Isto tem acontecido cada vez mais, mas também cada vez mais vão aparecendo pessoas que contrariam essa ideia, pegando no que o futebol tem de bom e no que o desporto tem de bom, que são os seus valores, que são o aprender a reagir à derrota, o aprender a lidar com outras pessoas, o aprender a conviver..."

Ou seja, os grandes humanistas também chegaram ao futebol, ao desporto?
Sem dúvida nenhuma.

Não são só os visionários políticos, não são só as pessoas das ONGs as que andam a salvar o mundo, também chegam a um mundo onde há muita coisa muito boa e onde há muita podridão também.
Sim, onde há muita podridão e acho que exatamente fui convidado por causa disso, para combater [isso] através da minha forma de olhar para o desporto. [Uma forma] saudável, com os valores [com que o] futebol foi criado.

Regras…
E com determinadas crenças que se foram perdendo nos últimos anos porque está cheio de corrupção, as apostas ilegais, quando se perde e se põe tudo em causa…

E as pessoas ficam descartáveis automaticamente, se não ganham são descartáveis, já não queremos…
Sim, um treinador passado três jogos é despedido. Isto tem acontecido cada vez mais mas também cada vez mais vão aparecendo pessoas que contrariam essa ideia, pegando no que o futebol tem de bom e no que o desporto tem de bom que são os seus valores, que são o aprender a reagir à derrota, o aprender a lidar com outras pessoas, o aprender a conviver…

A tal metáfora da vida…
A tal metáfora da vida. Continuo a achar que fui convidado por causa disso…

Então o que é que é suposto o Francisco Guimarães, vinte e dois anos embaixador para a integridade no desporto fazer? Qual é a entidade que regula esta…
É a Sport Integrity Global Aliance que é uma associação internacional com o apoio de vários membros…

Da FIFA…
Da FIFA, da UEFA. No fundo, tenta fazer com que os valores originais do desporto voltem um bocado ao de cima combatendo depois em questões práticas as apostas ilegais, as declarações que alguns dirigentes têm que são às vezes demasiado incendiárias, digamos assim, e no fundo através de fóruns, através de conferências, através de reuniões com governos, com a FIFA. A SIGA [Sport Integrity Global Aliance] feito um trabalho notável mas ainda há um caminho grande a percorrer…

MELISSA VIEIRA / OBSERVADOR

E o que é que o Francisco também já fez e já aprendeu enquanto embaixador para a integridade no desporto?
Já conheci imensa gente com um trajeto incrível. Nós às vezes ficamos um bocadinho cansados do mundo do desporto e etc. e depois vamos conhecendo pessoas incríveis e percebemos que o desporto e o futebol está também cheio de pessoas espetaculares e com quem nós podemos aprender e olhar de outra forma.  Tenho feito várias conferências em fóruns principalmente em Portugal. Já fiz vários vídeos também para fóruns no estrangeiro…

Internacionais…
Internacionais, mas não tenho ido presencialmente até porque não me é nada fácil até porque há outros embaixadores internacionais que são chamados de “SIGA champions”. Cada vez mais acho que o exemplo tem que ser dado a partir de cima e por isso vão aparecendo pessoas, dirigentes da FIFA, o presidente da Liga espanhola, o presidente da Liga europeia, presidentes de clubes [que mostram] que realmente temos que voltar a ter um desporto muito mais clean, muito mais limpo. Os jogadores são proibidos de falar em público porque tem-se medo que digam determinada coisa que não devem, isso tudo tem que acabar, temos que voltar aos tempos em que, em que o futebol, o desporto…

Em que a confiança gera confiança…
Exatamente.

E produz confiança. Isso é um pro bono.
Isso é um “pro bono”, sim.

"Acho que é mesmo isto, ter uma curiosidade perante a vida. Lembro-me de uma frase que tinha no meu colégio que dizia 'do espanto à compreensão', tudo começa aí, começa sempre no espanto que nos faz e que nos obriga a percorrer caminhos e que nos obriga a crescer."

E entre os “pro bonos”, ou seja, entre o seu voluntariado, há um outro voluntariado também com muita expressão que faz no Vale de Acór. Há pouco já falou um bocadinho mas gostava que contasse um bocadinho mais, se não se importar e sem devassar o que é que é o seu papel enquanto voluntário junto de pessoas que estão em tratamento, em fase de recuperação de toxicodependentes, alcoólicos…
Sim, sempre que posso, porque não há dias definidos, vou lá dar um treino de futebol a quem quiser, ninguém é obrigado a isso, aliás essa é a política do Vale de Acór ninguém é obrigado a estar lá. As pessoas que estão no programa estão lá porque querem e é-lhes dada muita responsabilidade também…Graças a Deus temos tido cerca de dezasseis pessoas por treino quando vou lá.

E sente que há uma abertura, uma evolução…
Enorme, é impressionante…

Uma pré-disposição para a cura digamos assim?
Sim, nós achamos que somos muito diferentes de pessoas que infelizmente tomaram aqueles caminhos e não somos, somos pessoas que temos os mesmos desejos, temos as mesmas preocupações, as mesmas inquietações…

E sobretudo não estamos imunes, ninguém pode estar…
Ninguém… Estamos muito mais próximos…ali somos iguais todos e tem sido muito giro perceber que o desporto resgata. Por exemplo noutro dia aconteceu-me um miúdo que tinha acabado de entrar com vinte e três anos, estava chateadíssimo e estava a refilar com tudo e não queria estar ali, a dizer vou-me embora, vou desistir disto, não me apetece, estou farto e depois sai do jogo feliz da vida, feliz por ter marcado golos, feliz por ter feito assistências…(lá está a dependência que uns têm uns dos outros, o querer passar uma bola para um colega… ele saiu de lá radiante da vida). Nós muitas vezes com a nossa prepotência achamos que “bom vou fazer voluntariado, vou dar imenso aos outros” e saímos de lá tão mais preenchidos do que eles. Tem sido uma aprendizagem incrível e espero poder fazer isto durante muito mais tempo.

Espero que sim, infelizmente temos trinta segundos para acabar, queria só perguntar-lhe se tiver uma frase, um conselho, um moto, um mantra, o que é que é aquilo que… já percebi que acredita em Deus, que reza, mas qual é o seu lema de vida?
Ui, uma ótima pergunta e não estava preparado para ela. Se calhar vou pegar outra vez nas palavras do professor Agostinho da Silva, que numa entrevista lhe perguntavam o que é que o preocupava mais nos portugueses e ele disse “que não deixem de perguntar”. É mesmo isto, ter uma curiosidade perante a vida. Lembro-me de uma frase que tinha no meu colégio que dizia “do espanto à compreensão” eu acho que tudo começa aí, começa sempre no espanto que nos faz e que nos obriga a percorrer caminhos e que nos obriga a crescer.

[Veja a entrevista a Francisco Guimarães na íntegra:]

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