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Francisco Sousa Lobo: "Fazer banda desenhada é a arte da persistência quixotesca"

É um dos mais reconhecidos autores da banda desenhada nacional. A propósito do novo “Cartas Inglesas”, conversámos com Francisco Sousa Lobo sobre emigração, criatividade e sonhos de infância.

Há na banda desenhada de Francisco Sousa Lobo uma interrogação permanente sobre o lugar ocupado pelo indivíduo no mundo. As suas histórias são “uma espécie de mapa possível para certas declinações do mundo” – como já se escreveu – e onde cabem muitos conceitos que já fazem parte do nosso léxico quotidiano. Falam de individualismo e egoísmo, de violência e poder, de memória histórica, mas também de muitos problemas de foro psicológico que hoje assolam a nossa contemporaneidade. Muitos destes elementos advêm de experiências vividas pelo próprio autor, que os traduz em banda desenhada e de forma ficcionada, como um profundo exercício de auto-observação e análise, da qual têm surgido diversas obras icónicas.

Recentemente, o autor português radicado, em Inglaterra desde 2005, publicou Cartas Inglesas (edição Chili com Carne), um conjunto de 14 ensaios visuais criados a partir de uma residência literária do autor na Fundação Eça de Queiroz, em Tormes. Na casa onde viveu o romancista português, Francisco Sousa Lobo estabeleceu uma ligação inusitada com a obra Cartas de Inglaterra, que retratam o período em que Eça viveu no Reino Unido como cônsul. O resultado é um livro em que se interroga sobre a sua condição de emigrante, mas onde vai mais longe nas reflexões que produz. Variam entre a observação social, a digressão poética e a autobiografia e são a prova de uma vida dividida entre Portugal e Inglaterra — e do que acontece nesse espaço.

Em entrevista ao Observador, a partir de Londres, Francisco Sousa Lobo explica o que deu origem a este livro, que marca um período de transição como autor e criador de banda desenhada, depois de um período marcado por um episódio psicótico, um “ponto de rotura”, que serviu para recomeçar caminho. Fala também do seu percurso, desde os tempos de estudante, das principais referências no universo da BD e da literatura, bem como da sua infância e das primeiras ilustrações a que juntaram histórias para contar. A banda desenhada é a sua casa, onde sempre foi feliz, na qual projeta a sua forma de olhar o mundo. Como forma de superação, é na BD que deixa perguntas para os leitores, mais do que respostas – sem nunca perder a lucidez. Naquilo que publica, explica, não deixa de existir uma certa aura quixotesca que contrasta como uma forma de ideal: “Na minha perspetiva é uma loucura pensar que o mundo está bem como está – e isso é o fundamental do D. Quixote, daí os temas que trago para as minhas obras”.

A capa de "Cartas Inglesas", de Francisco Sousa Lobo (Chili com Carne)

Em Cartas Inglesas há uma ligação inusitada entre Portugal e Inglaterra, dois países que marcam o seu percurso como autor. Em que medida é que lhe serviu como mote de reflexão sobre a ligação a estes dois lugares?
De alguma forma serviu para fazer contas à vida, pensar um bocadinho sobre o que é emigrar e estender isso numa reflexão mais humanística. Há aspetos sobre o porquê de ter aparecido a palavra migrante ou sobre quais são os grandes contrastes que se sentem ao chegar a outro país, tal qual os que experienciei quando vim para Inglaterra.

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Essa condição de migrante também mudou a sua perspetiva como autor?
Pós-Brexit talvez não me surpreenda tanto, mas diria que quando vim, em 2005, tínhamos a ilusão de que a Inglaterra era muito diferente dos Estados Unidos, mas talvez seja mais parecida do que pensamos. No sentido de se isolar um pouco do resto da Europa, de ter uma autonomia cultural muito aguerrida e visceral e de ser um pouco tacanha e pouco curiosa face ao que se passa no resto da Europa ou para lá da Commonwealth. Cheguei com a bagagem da cultura e da arte portuguesa, mas também de outras culturas e não havia interesse nenhum da parte deles nisso. Importava era eu saber de artistas ingleses ou que tivessem estado na vanguarda, mas no universo anglo-saxónico.

São, no entanto, mais de duas décadas a viver no Reino Unido. Já é uma casa?
Vim primeiro com uma bolsa da Gulbenkian para fazer mestrado e acabei por ficar também por questões de trabalho e familiares. Mas não deixa de ser estranho. Não sei bem se levo uma vida de emigrante ou se é uma sensação específica de viver em Londres, que é sempre uma cidade de passagem, mesmo para os ingleses. É uma cidade cara e exigente, onde é difícil sentirmo-nos em casa. Acho que ando sempre com uma casa às costas e a viver com essa ideia de futuro e de regresso a Portugal.

Este livro trouxe-o de facto a Portugal, numa residência literária que fez em Tormes, na Fundação Eça de Queiroz, autor com quem acaba por estabelecer um paralelismo singular, uma vez que ele tinha vivido em Inglaterra e escrito também sobre isso. Como é tudo isso ganhou forma?
Eu tinha lido as Cartas de Inglaterra do Eça quando vim para o Reino Unido e sempre gostei muito da sua curiosidade, dos choques que ele testemunhou e viveu na altura, alguns deles bastante atuais ainda hoje. Dou como exemplo uma crónica em que ele fala do Afeganistão e de eles estarem a invadir aquele país no fim do século XIX… quase como se dissesse que mesmo passado 20 anos os ingleses não aprenderam nada e estavam a fazer tudo mal novamente. Isto deixa-nos a pensar que, mesmo hoje, há estes lugares do mundo muito propícios à parvoíce e à barbárie.

"A ideia inicial era desenhar muito e escrever pouco. A verdade é que fiquei demasiado tempo com o rabo sentado na mesa de desenho. O Eça escrevia três horas em pé, eu desenhava uma aberração de horas até ficar meio cocho. Foi um exercício ascético – com acesso à cozinha, o que ajudava."

Essas cartas mantiveram-se na sua cabeça?
Sim, voltava muitas vezes a elas, até que vi este anúncio da residência literária na fundação. Achei que era um bom mote para um projeto que fosse realizável num mês. Desenhava e escrevia então as minhas cartas inglesas, algumas já escritas antes de ir para a residência e às quais acrescentei os desenhos inspirados naquele lugar. O Eça também não se dirigia ao leitor com “caro leitor” ou algo assim, e estes seus escritos não deixam de ser ensaios que assumem um carácter epistolar.

Daí o facto do livro ser composto de 14 ensaios visuais, como lhes chama.
Sim, estava a escrever para casa, de forma livre e espontânea. A minha casa ainda é Portugal. E há coisas que são muito universais, outras bastante inglesas, e outras que advém do facto de ser português.

O que há de mais inglês nestes ensaios?
Não sei se em Portugal uma pessoa teria a lata de dizer algo como ‘grande egoísta que se atirou para a linha do comboio’, que é algo que já ouvi aqui. Há coisas que são sagradas para o meu filho – que nasceu aqui – mas que não são para mim. A fada dos dentes é sagrada, bem como o pai natal. Em Portugal nada disso é verdade e não há esse lado sagrado e de símbolos que vêm da infância. Aqui acha-se honroso que um irmão mais velho continue a colocar a moedinha para o irmão mais novo por causa da fada dos dentes… tem qualquer coisa de sagrado.

A banda desenhada consegue jogar com esse lado mais simbólico, ao mesmo tempo que se pode debruçar sobre temas importantes, como os obstáculos que os migrantes enfrentam ao chegar à Europa – e que não deixou escapar neste livro.
Sim, o Eça já o fazia também. Observava muito e isso provocava uma reflexão maior sobre a burguesia, mas observava também a vida do povo, de todos os dias, de uma forma que lhe permitia ver o que estava a acontecer de novo. Um bocado como fez o Marx, que foi em busca dos lugares onde as classes trabalhadoras estavam a surgir mais fortes – ambos procuraram esse admirável mundo revolucionário da industrialização, curiosamente no Reino Unido. No meu caso, todas as minhas vivências determinaram os temas que fui buscar para este livro.

"Desenhava à vista. A primeira BD que fiz retratava um sonho meu que transpus para o papel. Era algo muito simples, tinha a ver com um extraterrestre… uma espécie de viagem de aventura cósmica"

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

O que se propôs a fazer em Tormes?
A ideia inicial era desenhar muito e escrever pouco. A verdade é que fiquei demasiado tempo com o rabo sentado na mesa de desenho. O Eça escrevia três horas em pé, eu desenhava uma aberração de horas até ficar meio cocho. Foi um exercício ascético – com acesso à cozinha, o que ajudava [risos].

Ao contrário de outros livros seus, este de facto foi desenhado em Portugal.
É verdade. Fez-me lembrar um período feliz quando escrevi a minha tese de mestrado numa quinta do Alentejo e que aparece no meu livro Deserto/Nuvem. Foi um paraíso total, um pouco como sucedeu aqui. Tenho uma relação de infância com a região de Tormes e a linha de comboio que ali passa. Ia muitas vezes, quando era miúdo, para uma terra perto de Vila Real, para visitar umas tias-avós e é incrível rever aquela paisagem com a qual já tinha essa ligação visual e familiar.

Em Cartas Inglesas, escreve: “Os meus outros livros são como setas enviadas desse lugar convalescente”. Não deixa de ser um autor que está em Inglaterra numa forma de exílio. Concorda?
Talvez sejam mesmo cartas para Portugal e não só. Espero que sejam mais universais, mas não deixa de estar presente esse exercício como se estivesse a escrever para casa e de pensar se vale a pena estar aqui, mas também sobre essa lucidez que se ganha às vezes por se ter esses dois pontos de referência. São livros que publico no meio que me é mais conhecido e natural, conheço os autores e é aí [em Portugal] que publico. Depois também porque vivi um período de crise, convalescente, e tudo o resto acaba por ser a reconstrução que acontece quando uma pessoa tem uma psicose que quebrou certas coisas, mas que me permitiu entrar na banda desenhada e ganhar uma voz própria.

Esse momento de viragem não deixa de estar presente como temática, sobretudo os problemas de foro psicológico. Está num lugar mais confortável hoje para explorar isso?
Sim, estou completamente reconciliado, mas é recente. Diria que este novo livro marca uma transição no sentido de ter encontrado uma serenidade aparente. Sinto-me mais inteiro. É um princípio de caminho face à psicose que divide e fragmenta. É um processo químico, não é uma coisa muito explicável, mas foi um ponto de rotura.

Voltemos ao passado. Já na infância havia esse interesse no desenho e na história.
Sim, já desde os meus seis anos e foi logo pela banda desenhada. Desenhava à vista. A primeira BD que fiz retratava um sonho meu que transpus para o papel. Era algo muito simples, tinha a ver com um extraterrestre… uma espécie de viagem de aventura cósmica no espaço em que voltava e contava ao meu melhor amigo porque ele não acreditava em mim. Era um amigo de infância que aparecia na história.

"Na altura de escolher um curso, queria muito ir para artes plásticas, mas tive um "não" parental duro. Nunca tinha ouvido aquela voz de autoridade e fiquei um bocado assustado. Fui para arquitetura um pouco a contragosto e desliguei-me um bocado dessas tendências para me dedicar à área."

Era uma criança com grande poder de imaginação, portanto.
Não sei, mas lia muita BD porque tinha acesso a uma boa biblioteca e também lia muito Júlio Verne. Portanto, os meus primeiros passos foram a adaptar as suas histórias. Fazia uma por verão.

Nasceu em Lourenço Marques, em 1973 e vem para Portugal logo após o 25 de Abril. Há memórias desse período inicial?
Os meus pais perceberam que era preciso voltar rápido. Conseguiram vender a casa e o carro, o que era raro, e vieram pouco depois.

Onde é que se fixaram?
Viemos para Oeiras. Alugaram uma casa e desenrascaram trabalho rapidamente. A minha mãe era professora de liceu em Lourenço Marques e veio dar aulas para a Parede e o meu pai foi trabalhar para a Universidade Nova que estava a começar. Portanto, foi uma transição que acabou por correr bem.

Viveu a década de 80, que foi rica em termos musicais, mas também uma época importante para as zines, o cartoon e as editoras de banda desenhada. Como é que foi esse período?
A música foi muito importante. O pai de um amigo meu ia muito a Londres e tinha uma verdadeira muralha de discos. Conheci tudo o que era punk e não punk, mas sobretudo coisas que não eram mainstream. Era underground e acho que tomei o gosto ao ler a NME e o jornal Melody Maker, com aquele gosto muito londrino, altamente subversivo, mas muito informado. As zines eram uma tendência que me passou um pouco ao lado. Foram uma realidade com a qual só comecei a ter mais contacto quando cheguei à faculdade. A única coisa relacionada é que fazia um jornal artesanal em Oeiras, que distribuía eu mesmo, mas não lhe chamava zine. Tinha artigos também de amigo meu… juntávamos saberes. No tempo dos meus irmãos mais velhos havia um outro que se chamava Santa Marotos, feita em Santo Amaro de Oeiras, mas nessa época ainda não me chamavam para desenhar.

É uma década importante para a BD, com muitos autores a destacarem-se. Já havia referências importantes para si?
Durante algum tempo foi sempre a Maus do Art Spiegelman. A partir daí é que comecei a abrir um pouco o espectro e a frequentar a BdMania e outros sítios, em Lisboa. Mas foi o Daniel Clowes que foi uma verdadeira bomba que explodiu em mim e que foi muito marcante. Já a Eightball estava na berra, digamos assim, mas mudou completamente a minha perceção.

"Cartas Inglesas" é um conjunto de 14 ensaios visuais criados a partir de uma residência literária na Fundação Eça de Queiroz, em Tormes. O resultado é uma reflexão sobre a condição de emigrante

Quando chegou à universidade colocou, no entanto, a BD de lado.
Na altura de escolher um curso, queria muito ir para artes plásticas, mas tive um “não” parental duro. Nunca tinha ouvido aquela voz de autoridade e fiquei um bocado assustado. Fui para arquitetura um pouco a contragosto e desliguei-me um bocado dessas tendências para me dedicar à área. Ao mesmo tempo, comecei a gostar imenso do trabalho do Nuno Saraiva e do Júlio Pinto, com a Filosofia de Ponta, porque tinha esse lado de comédia que sempre admirei, mas que ao mesmo tempo não domino. Portanto, acabou por ser um período mais desligado, mas nunca deixei de ser leitor.

Gostava de também abordar o tempo que passou no Ar.Co. O que o levou ao encontro da escola e como é que esse período foi importante para a sua afirmação como autor?
Surgiu numa altura em que estava num atelier de arquitetura e com um emprego das 9h às 17h. Estava bem em termos financeiros e sabia que podia dispensar umas horas da semana. Foi assim que fui parar ao Ar.Co para estudar pintura e gravura, mas também com o bichinho da teoria critica e da história da arte. Foi quando comecei a trabalhar no meu portfólio de banda desenhada e acabou por ser uma parte importante na raiz do meu trabalho. Ainda hoje me dou mais com pessoas da arte do que com pessoas do BD por causa desse período, que me levou ao encontro de muitos autores novos também.

Atualmente o seu foco está na BD e não tanto na arquitetura.
Sim, e no ensino de desenho, que é a minha ocupação profissional. Dei ilustração, mas com a bagagem mais crítica e da história da arte que veio também do período que passei no Royal College of Art, quando comecei a acompanhar teses e a ser supervisor.

Passou também pela Goldsmiths College.
É uma escola muito aberta, onde a BD acaba por estar presente mesmo quando foge aos cânones clássicos da arte. Na Royal comecei a ter menos medo de me assumir como sou, em termos de voz artística, na Goldsmiths perdi o medo de ser radical. Perdi o medo de dizer, por exemplo, que toda a arte pública é lixo, no sentido em que já passou o seu tempo e já não temos esses sinais coletivos da sua verdadeira necessidade… mas enfim, há coisas que na Goldsmiths nós ouvíamos os professores dizer, o que era raro vermos noutros locais de ensino, em não víamos alguém expressar-se assim em frente aos alunos.

"A Banda Desenhada é vista como lixo, no sentido cultural hierárquico e passa despercebida… há muita gente que se digladia com isso, mas por outro lado há uma certa liberdade que se adquire."

No seu caso, há um aspeto radical em fazer BD?
Talvez, mas também pelos autores que sigo, que não são apenas radicais. São inovadores. Mesmo em termos de teoria pura, nunca tive receio de ir aos autores mais antigos. Estou a ler os ensaios do Montaigne, que é bom de ler agora, numa fase pós-psicose e porque a sua leitura é ideal para o tempo que consigo concentrar-me na leitura.

Há mais literatura do que BD nas suas referências?
Sim, mas os comic creators inspiraram-me muito também. O Daniel Clowes, o Chester Brown – talvez nunca tivesse tido a coragem de fazer algo mais autobiográfico sem os ter lido. Foram autores que me deram perspetiva e levar a perceber aquilo se podia fazer que fugia aos cânones típicos.

Há temas que tem percorrido o seu trabalho: o individualismo, os problemas de foro psicológico, o complexo ofício de um artista, a sociedade pós-moderna, mas também a memória histórica. Há um lugar de encontro destas temáticas que definem o seu trabalho como autor?
Não surgem em contraste com o passado ou olhando para temas dos dias atuais. É uma confluência de temas em contraste com o ideal, isto é, com o que seria ideal nas nossas sociedades. Gosto de regressar ao D. Quixote, que contrasta sempre com o ideal porque o mundo dele não está certo. Tem um lado cómico, mas profundamente filosófico. Na minha perspetiva, é uma loucura pensar que o mundo está bem como está – e isso é o fundamental do D. Quixote, daí os temas que trago para as minhas obras.

A BD é a sua aventura quixotesca?
É um pouco isso, sim. É um achar que posso criar algo de novo num meio que ainda tem terreno virgem ao contrário de outras áreas como as artes plásticas – muitas delas cuja morte já foi declarada – que têm vícios e muitos becos sem saída. Não tenho críticas negativas no sentido de achar que estamos perante uma arte que já não tem saída, acredito é que há vícios com os quais não me revejo; há certos tiques que excluem as pessoas daquele meio. Por seu lado, a BD é vista como lixo, no sentido cultural hierárquico e passa despercebida… há muita gente que se digladia com isso, mas por outro lado há uma certa liberdade que se adquire.

"Começo no papel e só recorro à tecnologia na parte das cores. Manualmente, é sempre a preto com tinta-da-china. Já tive a minha dose de programas de edição em arquitetura"

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Não diria que é esse lado da pouca importância dada à BD que lhe confere um espaço muito aberto a diferentes possibilidades? Já há 20 anos abordava o bullying e fazia uma crítica inerente ao individualismo e ao egoísmo, pensando por exemplo em Câmara Escura, uma das suas primeiras obras.
Sim, tem de facto essa possibilidade de explorar conceitos emergentes e temáticas que ainda não são discutidos, mas há sempre esse desinteresse face à importância que se atribuiu às outras artes. As pessoas por vezes não entendem é que para fazer um livro de BD há todo um processo de trabalho. No caso do Gente Remota, por exemplo, houve todo um trabalho exaustivo de pesquisa e de entrevistas a quatro ex-combatentes. Claro que nem todos os livros tem essa exigência de trabalho, mas todos eles vêm de ideias passadas que estiveram a borbulhar até nascerem.

Muitas vezes pensamos em autores e ilustradores de BD num processo conjunto de criação. O seu primeiro motivo é imagético ou textual?
Não tenho bem um padrão. Há obras que começam mais pelo texto, como é o caso das “Cartas Inglesas”, mas há outros que são mais pela relação com a imagem. Há livros em que pelo excesso de diálogo têm de ser desenhado logo à partida, porque tenho de perceber se aquilo consegue comunicar ou se tem que ser reformulado. Há sempre desafios nessa montagem e não é com o tempo que se torna mais fácil fazer uma BD. Tem de haver um contexto e esquema próprio para cada história. É preciso ter forma de encontrar o tom certo e ter tempo para desenhar.

Ainda desenha em papel ou tem tido uma aproximação aos formatos digitais?
Começo no papel e só recorro à tecnologia na parte das cores. Manualmente, é sempre a preto com tinta-da-china. Já tive a minha dose de programas de edição em arquitetura e agora gosto de me distanciar do computador durante o processo. Só regresso mesmo para juntar cores e de apuramento dessas várias camadas. O desenhar em computador é um salto que não quero dar. Não gosto de sentir que dependo da máquina.

Como é que olha para o atual panorama da BD portuguesa?
Admiro imensa gente, só tenho pena que a caixa de ressonância dessas vozes tão boas seja pequena. Que o mercado seja pequeno, que haja pouco espaço para as pessoas crescerem, que seja difícil serem levadas em conta como vozes. Mas há muitos autores que admiro imenso. A Ana Matilde Sousa, que assina como Hetamoé, o Mao e o André Pereira, só para dar exemplos. Há um panorama rico com pessoas que persistem na banda desenhada e na comunicação visual de uma forma muito rica.

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A arte de fazer BD em Portugal é de persistência?
É, sem dúvida. É uma persistência quixotesca e acho que é preciso não estar muito importado com a forma como as coisas aterram. Claro que é importante ter feedback dos leitores, mas também não é algo com a qual se vá ganhar um prémio nobel.

Que lugar ocupa verdadeiramente a BD na sua vida?
Ocupa tudo, diria. Neste momento, a BD e coisas paralelas são a minha principal fonte de criação. Continuou a preferir o livro e as páginas em que coloco os meus desenhos e textos. O livro é mais bombástico e é o local onde posso deixar tudo aquilo que quero dizer.

No prefácio do livro Pequenos Problemas, assinado pela Sara Figueiredo Costa lê-se: “As histórias curtas de Francisco Sousa Lobo não falam de física quântica, cultivando as perguntas com muito mais dedicação do que qualquer resposta, mas talvez por isso mesmo sejam uma espécie de mapa possível para certas declinações do mundo, não as que descrevem o cosmos, mas as que envolvem o indivíduo, esse lugar estranho e inóspito onde o espaço-tempo tantas vezes ameaça desintegrar-se”. Prefere deixar perguntas a dar respostas?
Sim, mas perguntas como um espelho que no próprio leitor despertam qualquer coisa. Percebo que as pessoas andem em busca de respostas, mas não é para isso que crio estes livros. Não quero criar uma religião – para mim a BD está sempre próxima da perspetiva da Simone Weil que se colocava em situações difíceis, mas que lhe permitiam conhecer novas realidades. Tento fazer isso, mas sem perder a lucidez. O G.K. Chesterton dizia isso, que quando entrava na igreja tirava o chapéu, não tirava a cabeça toda.

A BD foi uma forma de superação?
Voltar à BD foi como regressar a uma casa onde sempre fui feliz, porque foi sempre a minha primeira voz, desde a infância. A escrita demorou a vir, mas a forma imagética de olhar para o mundo está presente desde que me recordo e por isso a BD é a minha linguagem.

O que é que tem planeado para os próximos tempos?
Tenho vários projetos já desenhados de que gosto, um sobre história da arte e um professor e outra sobre a internet e a consciência, portanto no campo da ficção científica. Estes dois projetos, gostava de os deixar prontos e quiçá publicar este ano.

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