O fenómeno não é novo, mas o avanço galopante dos preços nos últimos meses fez com que ganhasse fulgor. Nas casas dos portugueses já não é preciso chegar o Natal para que seja uma noite branca. A inflação tornou os produtos de marca própria, conhecidos vulgarmente, ainda que a contragosto da distribuição, como ‘marca branca’, em verdadeiros campeões de vendas.
Em 2022, à boleia da inflação, terá havido um desvio do consumo das marcas de fabricante para as marcas próprias na ordem dos quatro pontos percentuais. Num mercado que vale, no seu todo, 16 mil milhões de euros, equivale a cerca de 800 milhões de euros que “saltaram das mãos dos fabricantes para as mãos dos distribuidores”. As contas são adiantadas ao Observador por Pedro Pimentel, diretor geral da Centromarca, a associação portuguesa de empresas de produtos de marca.
Segundo o responsável, esta transferência de consumo é uma reação natural das pessoas “às dificuldades crescentes”, ou seja, à perda de poder de compra, e é previsível que se acentue em 2023. Para as empresas fabricantes, as dores de cabeça são certas. “Muitas vezes estes produtos são mais baratos devido à lógica das margens comerciais aplicadas a uns e a outros”, explica. E estes produtos, sendo mais baratos, tornam-se aceitáveis “quando há menos dinheiro no bolso, mesmo não sendo a opção preferida das pessoas”.
Esta tendência também é visível quando se olha para o top 3 de marcas de retalho que mais cresceram em 2022, segundo a Centromarca: Lidl, Aldi e Mercadona. Três operadores que “têm uma relação de força entre as marcas próprias e as de fabricante diferente” de outros supermercados. Em superfícies como o Continente ou o Pingo Doce, mais de 65% dos produtos à venda são de fabricante, exemplifica Pedro Pimentel, enquanto Lidl, Aldi e Mercadona têm uma proporção inversa, com mais de 70% de produtos de marca própria. “Quem frequenta estas superfícies consome mais marca branca porque não há outra”, sintetiza.
O que a escalada dos preços está a trazer, repara o especialista, é uma maior consciencialização das grandes cadeias para a importância da marca própria, e isso “nota-se na comunicação” que estão a fazer destes produtos. E isto acaba, também, por aumentar as respetivas vendas.
Mas não é só. Há outra dinâmica que está a mudar no consumo, também ela a favorecer a marca branca em detrimento de uma velha conhecida dos portugueses: a promoção. “Há uns anos, as promoções eram uma forma de os fabricantes responderem às marcas próprias. Fazendo promoções maiores, aproximavam os seus preços dos das marcas próprias. Mas hoje a promoção está esgotada”, defende Pedro Pimentel.
Inflação fica nos 9,9% em novembro. Alimentos estão cada vez mais caros
Isto não significa que os portugueses tenham deixado de comprar em promoção. Pelo contrário, aponta o responsável. Portugal continua a ser o país da Europa ocidental que mais compra em promoção. O fenómeno em curso, causado pelo encolher da carteira, dita, porém, que “hoje já não se vende mais uma unidade só por estar com desconto”. Ao contrário do que acontecia antes, e a anterior crise financeira é disso exemplo, “hoje já ninguém leva 10 coisas porque estão em promoção porque sabem que daqui a 10 dias vão estar outra vez”.
Segundo as contas da Centromarca, uma promoção de 50% chegava a significar um aumento de dez vezes nas vendas. Hoje não passa de uma subida de 1,5%. “Em alguns casos, se os produtos não estiverem em promoção, não se vendem”. Os detergentes são disso exemplo. Em suma, hoje “é a venda normal que é afetada por estar ou não em promoção, já não é a venda adicional”.
Mais visitas às lojas, menos compras
Nem só de marcas brancas se faz o carrinho de compras dos portugueses, no final de um ano marcado pela guerra, pela inflação e pela crise energética. E pelo pós-pandemia. Segundo o estudo mais recente da consultora Kantar, que acompanha as tendências de consumo dos lares portugueses e os efeitos da inflação, atualizado ao terceiro trimestre, o típico consumidor português está a ir mais vezes à loja (mais 4% de frequência de compra), mas compra menos de cada vez (menos 7% de volume por ato de compra).
Segundo Marta Santos, clients & analytics director para Portugal, a comparação com o mesmo período do ano passado mostra que “os compradores tentaram gerir o seu orçamento da melhor forma, numa difícil missão de obter um menor out-of-pocket (o que sai do bolso, em tradução livre), quase impossível com o nível de inflação que se verifica, já que por menos quantidade comprada em 2022 os portugueses gastam mais 5% em comparação” com o mesmo período de 2019.
A análise, enviada ao Observador, revela ainda que em 2022, as classes sociais com menor nível de rendimento, (média baixa e baixa) são as que mais estão a aumentar as visitas aos supermercados (mais 5,9% de frequência de compra), sendo que estão também a reduzir os gastos em cada ida às lojas, “para reduzirem assim o out-of-pocket e viverem um dia de cada vez, sem grande possibilidade de planeamento, dada a constante alteração do preços dos produtos”.
É também essa a perceção de Pedro Pimentel. “Começou a notar-se a reação das pessoas” à conjuntura atual a partir de setembro, afirma. “Pesou muito o aumento das taxas de juro nas famílias que têm crédito à habitação, fez uma mossa grande no orçamento e deu origem a uma perda do poder de compra. Neste momento temos uma inflação na ordem dos 10%, e na alimentação é bastante superior, quase 20%”, repara.
O que acontece é que “nas famílias com rendimentos mais baixos, a fatia do orçamento que se gasta em alimentação é claramente superior à que gasta uma família com rendimentos médios, médios altos”. O que faz com que a taxa de inflação suportada pelas famílias de rendimentos mais baixos acabe por ser mais elevada, na prática.
Além disso, acrescenta, “quem tem um rendimento superior tem a possibilidade de descer um bocadinho nos degraus dos produtos que compra”. Quem já comprava os produtos mais baratos, vai absorver esses aumentos. “Se algumas pessoas ganharam alguma lufada de ar fresco durante a pandemia, com as moratórias e menos gastos, essas reservas estão a ir-se”, constata o diretor da Centromarca.
O estudo da Kantar denota, precisamente, que “a fragilidade do orçamento familiar impacta sobretudo nos bens de primeira necessidade, produtos mais básicos, como os frescos, desde a carne, peixe, legumes e frutas, assim como a alimentação embalada (mercearia doce e salgada)“.
Um dos exemplos “mais flagrantes”, aponta Marta Santos, são os legumes frescos, “que estão a sofrer aumentos de preço constantes, em que se verifica que estão a ser cada vez mais trocados por opções mais duradouras como os congelados ou conservas, e que permitem também um menor desperdício associado”.
Na proteína animal, o peixe, marisco e bacalhau, mais caros do que a carne, também estão a ser substituídos. “E mesmo quando analisamos o ‘universo’ da carne, o frango e a carne picada, opções mais acessíveis e mais versáteis, também roubam às restantes, com os compradores a verem-se obrigados a deixar de comprar outras proteínas e a dedicarem-se cada vez mais a estas soluções mais em conta”, conclui a responsável da Kantar. São “escapatórias” que se alastram a outras famílias de produtos, diz Pedro Pimentel, como o vinho, do qual as pessoas não abdicam, mas compram com preços e qualidade inferiores.
Um Natal “inflacionado”
Os dados da Kantar mostram que todas as categorias de produtos sofreram quebras na comparação de 2022 com 2021. Olhando mais para trás, para 2019, é notório um aumento dos volumes de congelados, comida pronta, bebidas e alimentação para animais. “Nos últimos quatro ou cinco anos este tem sido um dos setores com crescimentos mais elevados, já antes da pandemia”, com crescimentos de dois dígitos em valor e em volume de vendas. A justificação? “As pessoas têm hoje um cuidado crescente com a alimentação dos animais. Está proporcionalmente ligado à quebra da natalidade”, defende Pedro Pimentel.
Para a quadra natalícia, há produtos típicos que estão notoriamente mais caros do que no início do ano. Segundo a monitorização de preços que o Observador tem vindo a fazer desde abril, produtos como o bacalhau, o leite, os ovos, a farinha, o açúcar e o óleo sofreram aumentos significativos, que em alguns casos ultrapassam os 50%.
“O Natal de 2022 será sem dúvida um Natal inflacionado”, sentencia Marta Santos. “Historicamente já é uma época em que o gasto médio aumenta”. Em média, nos últimos anos, os gastos aumentaram 11% nesta altura, calcula a Kantar. “Mas este ano não vemos uma antecipação de compras. Poderíamos esperar que, para evitar aumentos de preço consecutivos, os compradores optassem por realizar as compras o quanto antes, mas a verdade é que o ritmo de compras, e o planeamento, do Natal parece estar em linha com o pré-pandemia”, explica.
Já para Pedro Pimentel, Natal inflacionado não significa Natal depauperado. “Claro que as pessoas se queixam dos aumentos, mas esses são produtos básicos da alimentação dos quais não abdicam”, e ainda menos nesta quadra.
As perspetivas menos animadoras estão guardadas para 2023. “Se o final de 2022 já está a apresentar dificuldades, a sensação que temos é que pelo menos os primeiros meses de 2023 serão piores do que aquilo que estamos a viver agora”. Com uma agravante. “Em crises anteriores, nomeadamente na década passada, tivemos nas exportações e no turismo ferramentas muito fortes na recuperação”. Agora, tanto os mercados de destino dos nossos produtos como de emissão de turistas “irão viver uma crise no mínimo tão grave como a nossa”, sublinha Pedro Pimentel. “Nós temos muito treino em viver em crise. Há países que não, e encaram isto de forma mais receosa”.
Também o turismo interno, “importante para os números”, vai sofrer um golpe, constata. E isso já se vê nas ruas. “Começamos a ver que as pessoas voltaram todas a levar marmita para o trabalho, e isso significa não ir ao café ou ao restaurante. Genericamente, é bom para os supermercados. Mas para o conjunto da economia o impacto não é positivo”.