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A sua tradução da Bíblia, iniciada em 2016, valeu-lhe o Prémio Pessoa e colocou à vista de todos a importância colossal do seu trabalho. Tradutor e ensaísta, poeta e ficcionista também, Frederico Lourenço é o grande classicista português do século XXI. A cultura helénica começou por ser o seu habitat natural muito cedo, por intermédio de seu pai, o grande poeta, professor de filosofia e ensaísta M.S. Lourenço, e, rapidamente, o interesse se estendeu ao mundo romano. Passou com distinção por todos os textos Antigos, Odisseia, Ilíada, Eneida, e pelos grandes autores, Homero, Vergílio, Sófocles, Horácio, Ésquilo, Eurípides, Hesíodo, Teócrito.
Parou, para ficar, nos escritos bíblicos e de teor religioso. O Novo Testamento, o Antigo Testamento, os Evangelhos Canónicos e agora os Apócrifos deram-lhe o prazer de uma viagem extraordinária ao início do cristianismo. Em conversa com o Observador, conta como se interessou pela palavra bíblica e explica como foram os primeiros séculos da religião cristã, quando a diversidade de pensamento permitia a convivência de textos que defendiam como palavras de Jesus a aceitação da mulher na liderança da Igreja, o acolhimento da homossexualidade, a existência do ato sexual não procriativo, a possibilidade do divórcio, a não existência de pecado… Questões que põem em destaque uma doutrina mais inclusiva em prol do amor, o verdadeiro mandamento de Jesus. Por descobrir, fica a religião certa e o caminho para Deus. A fé é quase uma garantia.
Como é que começou a interessar-se pela Grécia Antiga, pelos escritos Antigos e por todo esse mundo? Não é um caminho comum.
Fui muito manipulado, digamos assim, ou orientado pelos meus pais. Eles interessavam-se por esse tipo de coisa e quando era criança deram-me logo a Odisseia e outros livros sobre a Grécia Antiga. Recebia-os nos anos, quando era Natal. Ainda me lembro quando o meu pai, no Natal de 1973, tinha eu dez anos, me deu como presente a obra completa de Vergílio em latim! Portanto, eram pessoas especiais. O que é facto é que, muitas vezes, os filhos reagem contra os pais e querem ser diferentes e querem afirmar-se rejeitando as coisas que os pais oferecem, mas no meu caso não foi assim. Encontraram em mim alguém que se interessou imediatamente por toda essa questão da Antiguidade Clássica. Foi tudo muito natural.
O que é que o atraía nesses escritos? Começou pela Eneida?
Comecei por ler tudo em tradução. Como era criança não tinha acesso aos originais. Só comecei a ter latim aos dez anos, muito lentamente, muito, muito lentamente, e grego só comecei a aprender a sério pouco antes de ir para a Universidade. Mas, como havia gramáticas e dicionários de grego em casa, a coisa que primeiro me fascinou foi o alfabeto grego.
Porque era diferente do nosso?
Sim, porque era diferente do nosso. Quando tinha 11, 12 anos já sabia o alfabeto. O meu problema era ler e entender as coisas escritas em grego. Isso começou por ser uma vontade… Acho que, em criança, como via que os meus pais davam muito valor a pessoas que sabiam grego e latim, um pouco para obter a aprovação deles, também fui por esse caminho. O que acaba por ser milagroso é que esse caminho correspondeu àquilo que eu depois sentia mesmo. E hoje em dia, vou fazer 60 anos não tarda, não me arrependo disso, não me arrependo de ter sido empurrado por um caminho de que gosto. A questão dos textos religiosos também surgiu logo muito cedo, comecei logo a interessar-me por isso. Sempre fui uma criança muito religiosa.
Os seus pais eram católicos? Praticantes?
Eram católicos, sim. Os meus pais eram aqueles chamados católicos progressistas dos anos 50. Os meus pais eram os dois muito amigos do Frei Bento Domingues. Sendo, nessa altura, católicos totalmente convictos, praticantes e tudo isso, eram também totalmente contra o regime de Salazar. E, portanto, estavam nessa situação um bocadinho incómoda para muitas pessoas, a de serem católicos, por um lado, mas não concordarem com a forma como a Igreja pactuava com o fascismo. O meu pai acabou por não ter possibilidade de trabalhar em Portugal depois de terminar o curso e de ter acabado a tropa, e fomos para Inglaterra. Penso que lá, eles se afastaram um bocadinho desse catolicismo mais praticante. Antes de irmos para Inglaterra, os meus pais ainda iam à missa católica e levavam-me a mim e à minha irmã, mas, depois, não percebo o que é que aconteceu, houve um momento em que eles deixaram de ir e a minha irmã e eu também deixámos de ir porque não éramos levados pelos nossos pais.
O facto de estar em Inglaterra terá favorecido a atenção que dava aos textos Antigos, uma vez que não falava a língua das outras crianças, ou já falava o inglês como língua “materna”?
Fui para Inglaterra com dois anos, já falava o português, mas ao fim de um ano ou dois já era bilingue, e depois comecei a ser monolingue em inglês, quase não falava português. Quando viemos para Portugal, tinha dez anos, tinha muita dificuldade em falar português, que é assim um bocadinho uma língua estrangeira ainda. Não é a língua em que penso para mim próprio, em que escrevo…
Essa continua a ser o inglês?
Sim, e com a minha irmã ainda falo em inglês.
O alemão veio logo a seguir?
O meu pai falava muito bem alemão, porque tinha crescido perto de uma família que tinha fugido da Alemanha por causa da Guerra e também incentivou isso. Depois, quando comecei a ver, sobretudo quando fui para a Universidade, que para se ser um classicista com acesso à bibliografia mais importante era preciso saber bem alemão, e comecei a interessar-me pela Bíblia, pelos textos teológicos, aí fiquei muito agradecido por ter tanta facilidade em ler em alemão. Há tanta coisa fundamental em alemão sobre o Novo Testamento, sobre o Antigo Testamento, que, se não se sabe alemão, fica-se excluído de toda uma extensa bibliografia.
Não foi também um trampolim para o latim e para o grego? Dizem que o alemão se assemelha gramaticalmente às línguas mais antigas.
As três línguas ajudam-se. Há uma entreajuda entre elas. O latim, o grego e o alemão têm a mesma estrutura gramatical. Acho que ajudou muito. De resto, a minha paixão é a das línguas. Cinco línguas: grego, latim, alemão, português, inglês.
Apaixonou-se, creio, primeiro por Eurípides, pelo menos foi o objeto da sua tese de doutoramento.
A minha primeira paixão acho que foi Homero, mesmo antes de ser capaz de ler em grego.
A Ilíada e a Odisseia?
A Odisseia. Mas quando tive que escolher um tema para a tese de doutoramento acabei por escolher Eurípides porque era o mais interessante para mim e também porque era aquele de que nos chegaram mais peças completas. De Ésquilo só temos sete, de Eurípides são 18.
Os livros ajudam a entender a vida?
Para mim, sim. Mas há pessoas que não sabem ler nem escrever e entendem a vida melhor do que eu. Para mim, os livros ajudam-me a entender a vida porque é a partir deles que tenho as inspirações que me permitem olhar para e organizar o mundo à minha volta. São para mim, também, um refúgio da vida, no sentido em que a leitura é o momento em que estou refugiado dos problemas do mundo e das coisas à nossa volta que temos que enfrentar. Os livros são uma coisa inteiramente positiva, são melhores que os telemóveis, não perdem a bateria, não precisam de passwords…
Estes escritos Antigos também nos ajudam a construir um sentido para a vida ou a perceber o que é a existência humana…
Sim, sobretudo estes textos com um intuito mais religioso. Ajudam-nos a perceber qual é o nosso lugar na terra, se depois da morte podemos contar com alguma coisa ou não. Podem não nos convencer disso, mas levantam a questão de se morrermos e formos enterrados ou cremados acaba tudo, ou se existe, depois, qualquer coisa. Já Homero se preocupou com essa pergunta e a mim interessa-me muito tudo o que tenha a ver com essa dimensão metafísica, com o Além, com Deus…
“Não sei qual é o caminho certo para Deus”
Sentiu-se mais perto de chegar às respostas com estes textos, ou nem por isso?
Acho que me sinto mais longe. Mas é um mais longe mais fundamentado. Antes de conhecer bem a Bíblia, o Novo Testamento e o Antigo Testamento, tinha mais facilidade em dar esse salto da fé, e tinha perguntas e respostas mais calmas e mais organizadas. Agora, que conheço cada vez melhor os textos, tenho menos respostas. Mas não vejo isso como uma coisa má, ou como algo negativo. Sobretudo em relação ao Novo Testamento — que é o livro mais importante da minha vida e continuará sempre a ser. Por mais que o leia, continuo sem resposta sobre se existe Deus, se esta religião cristã é a certa, ou se não há outra que seja mais certa.
Está a dizer-me que já foi mais fácil acreditar em Deus e que agora é mais difícil?
Acreditar em Deus propriamente não. Nunca me considerei ateu, acreditar em Deus para mim não é difícil, é até uma coisa mais natural do que ser ateu. A questão é qual é o caminho para Deus. É o cristianismo, é o budismo, é o islão? Não sei, não sei qual é o caminho certo para Deus. Não sei se nós cristãos entendemos Deus de uma forma mais certa do que budistas ou hindus ou outros.
Não é o problema da fé, é o problema da religião?
Mas a fé implica um bocadinho a religião. Acreditar em Deus, isso não me custa. Acredito, de facto. O que é Deus? Isso não lhe sei dizer. E qual é o caminho certo para Deus também não sei qual é. Mas se há um mensageiro de Deus, ou não sei de quem, que veio mudar a história do mundo, esse foi Jesus Cristo, não tenho dúvida nenhuma. As palavras dele, a mensagem dele são a coisa mais importante da história da humanidade e dão-nos a possibilidade, se as puséssemos em prática, de resolvermos os problemas da própria humanidade. Teríamos todos de as pôr em prática, não serve só a Alexandra ou eu, tem de ser a humanidade toda a pôr aquelas palavras em prática.
Perceber o que disse Jesus é o caminho que tem vindo a traçar, é o seu objetivo?
Sim. As palavras de Jesus, que estão num dos evangelhos apócrifos, o de Tomé, são: “desejastes ouvir palavras como as minhas, mas nunca houve ninguém que as dissesse a não ser eu”, ou seja, é como se a humanidade tivesse ficado à espera de alguém que viesse dizer que o que interessa é o amor, que o que interessa é a compreensão, que o que interessa é perdoar às pessoas, que o que interessa é que, se alguém nos der uma bofetada, dêmos a outra face, que o que interessa é amar o inimigo. São de facto palavras que não encontramos nos gregos, nos romanos, nunca ninguém disse essas coisas. São extraordinárias.
Quem é esse Jesus? Já o conhece melhor do que nós por estar mais perto das suas palavras?
Conheço a maneira como os primeiros cristãos o viram. Conheço melhor do que a maior parte das pessoas, porque conheço bem os textos. Conheço a maneira como os quatro evangelistas o descreveram, de forma um bocadinho diferenciada entre si, e, depois, os evangelistas que escreveram outros evangelhos como Filipe, Tomé, Maria Madalena, Tiago. Embora haja diferenças e divergências nessa visão de Jesus, há um denominador comum, todos eles dizem que Jesus foi alguém que veio pregar o evangelho do amor. Isso é comum e transversal a todos os textos Antigos. O que me leva a pensar que, se todos estão de acordo nessa questão, ela foi a questão fundamental. Aquilo que ele veio dizer foi o amor.
É essa pregação do amor que o atrai?
Sim. Do amor, da paz, da não violência, da lei como antagonismo em relação ao modo como resolvemos os problemas, essa tentativa de compreender os outros, de não os julgar. Como está no Novo Testamento: “Não julgueis, não serás julgado”. Não fazer juízos de valor em relação às outras pessoas, aceitá-las como elas são…
“Tirar uma palavra muda tudo”
Quando é que percebeu que tinha que traduzir a Bíblia? Imagino que percebeu que tinha mesmo que o fazer.
Sim. Levei algum tempo até ter a ideia de traduzir a Bíblia toda. Fiquei com vontade de traduzir os Evangelhos do Novo Testamento quando comecei a interessar-me bastante mais por essa parte da literatura grega e achei que seria importante haver em Portugal uma tradução que não estivesse vinculada nem ao catolicismo, nem ao protestantismo. Uma tradução que admite que Jesus é uma personagem fantástica, mas feita de um ponto de vista mais académico, mais neutro, mais histórico.
Mais científico?
Sim, mais científico. Depois, foi uma oportunidade enorme de conhecer melhor os textos. A seguir pensei: se já traduzi estes textos, também vou continuar a viagem fazendo o Novo Testamento. E houve depois ainda o Frei Bento Domingues. Uma vez o jornal Público organizou uma entrevista conjunta entre nós os dois, no final de 2015, e ele perguntou-me porque é que não traduzia a Septuaginta, ou seja, o Velho Testamento grego. Foi um repto que aceitei. E é um trabalho para lá de difícil e de enorme e de esgotante, mas que é tão compensador… É uma viagem extraordinária. Houve poucas pessoas que a fizeram individualmente, como é o meu caso. Não sou o primeiro da história a fazer isto, mas é preciso ter uma vida um pouco fechada para poder acomodar este trabalho. Tenho que ter uma vida vazia praticamente de tudo, salvo as obrigações universitárias, para ter tempo para o fazer.
O que é que acredita que a sua tradução tem de diferente? É um texto tão discutido, que não deve ser nada fácil tocar-lhe.
O que é difícil na tradução da Bíblia é fazer aquilo que eu faço. Fazer uma tradução da Bíblia que seja católica, que seja protestante, ou que tenha uma orientação religiosa, é mais comum. Fazer uma tradução como a minha, totalmente neutra, é menos usual. Eu não preciso de obrigar o texto a dizer nada que ele não diga. Traduzo apenas as palavras que lá estão. As notas servem para explicar às pessoas onde é que há dificuldades no entendimento das palavras, do ponto de vista de uma proposta de tradução, pois ninguém pode pôr a mão no fogo no sentido de que sabe o que estas palavras ou estas frases querem dizer. Isso é muito diferente da tradução religiosa que sabe sempre tudo, que tem respostas para tudo, que tem a apologética toda para explicar as contradições enormes. Eu tento ser neutro, não estou a fazer uma tradução para desmoronar a Bíblia, nem para alicerçar a Bíblia. Estou a pôr a descoberto as questões que a Bíblia apresenta. Para um teólogo pode ser útil, sobretudo a minha tradução do Antigo Testamento, uma vez que não existe uma outra tradução do original e o Antigo Testamento grego tem uma forma diferente do Antigo Testamento hebraico. Hoje em dia muitos teólogos já não aprenderam tantos anos de grego como há 20 ou 30 anos, e se calhar já têm dificuldade em lê-lo. Para uma pessoa que esteja a estudar Teologia, com 20 ou 25 anos, talvez seja interessante ter uma tradução portuguesa que lhe dê um acesso muito mais fácil ao texto grego. Espero que a minha tradução seja uma ponte para se chegar ao texto grego.
No processo de tradução, mudar uma palavra implica muita coisa, muda tudo? É como completar um puzzle?
Tirar uma palavra muda tudo. O exemplo que dou nos Evangelhos Apócrifos é a palavra “discípula”, que ocorre uma única vez no Novo Testamento e que na Bíblia católica mais lida em Portugal foi tirada. Claro que o tradutor tem um poder enorme. Ao tirar a palavra “discípula”, fez com que isso significasse que não há fundamento para dizer que uma mulher pode desempenhar as funções que são desempenhadas por um padre, um bispo, um cardeal, ou um papa. Aqui há uma questão importante, que acho que não é inocente.
É por isso que diz que os Evangelhos Apócrifos são mais inclusivos?
São mais inclusivos porque, pelo menos em três deles, Evangelho de Pedro, o Evangelho de Tomé e o Evangelho de Maria Madalena, é claro que uma mulher pode ser uma discípula. O caminho e a liderança cristã não estão vedados a mulheres por elas serem mulheres. Os textos também nos dão conta de que havia homens que se incomodavam com isso. Vemos isso no Evangelho de Tomé e no Evangelho de Maria Madalena, em que Pedro fica incomodado com a preferência que Jesus parece ter por Maria Madalena. E o que o texto apócrifo nos dá é a palavra de Levi a defender Maria Madalena relativamente a Pedro.
Entra em jogo o papel da mulher na religião que nem sequer era equacionado. Não se conhecia sequer o Evangelho de Maria Madalena. A maior parte dos cristãos portugueses não tem ideia de que Maria Madalena foi discípula de Jesus e passou a palavra. E é logo no Evangelho de Maria Madalena que Jesus diz: “Não há pecado”. O que significa este “pecado” na sua tradução, uma vez que João Baptista diz, também na sua tradução do Evangelho, “Eis o cordeiro de Deus que tira o erro do mundo”?
Não sou 100% coerente nisso porque, de facto, a palavra grega traduzida por pecado é uma palavra que significa erro, mas a própria palavra latina, pecado, peccatum, também significa erro. A questão é que nós temos duas palavras: pecado, que é uma coisa religiosa, e temos a palavra erro, que é diferente. Associamos à palavra pecado dois mil anos de cristianismo ou de catolicismo, e, se calhar, não é bom associar isso às palavras quando elas são utilizadas nestes textos em que quem os lia pela primeira vez, lia erro. Se calhar, tinha que se perceber que era um tipo de erro diferente do erro normal, mas a palavra que a pessoa tinha diante dos olhos era a palavra grega para erro. Achei importante, nalguns termos, mudar qualquer coisa só para levar as pessoas a pensarem nesses mesmos termos. Se tivesse traduzido por “pecado”, ou se tivesse traduzido “o filho do homem” por “filho do homem” e não por “filho da humanidade”, ninguém pensaria nesses termos. Isso já levou imensas pessoas a pensarem e a escreverem artigos a dizer que discordavam. Portanto, obriguei as pessoas a pensarem em termos que elas pensavam que não levantavam nenhuma questão. Isto são de facto questões que levantam imensas discussões. Podemos concordar, discordar, mas o importante foi chamar a atenção para elas. No caso, “não existe erro”, podia ter traduzido assim, em vez de pecado. Foi para levar as pessoas a sentir o alcance da afirmação.
Estamos livres da culpa, não existe pecado.
Explico nos comentários, através de uma passagem de S. Paulo, que poderíamos entender isto sem grandes problemas, também entendendo que o mundo real à nossa volta, ou o que nos parece real à nossa volta, não é a verdadeira realidade, ou seja, o habitat do pecado não é real. Então, não sendo real, o próprio pecado também não tem consistência. A verdadeira realidade é o que vem a seguir. O que temos aqui é um momento transitório. Mas claro que tudo isto são questões. Não tenho soluções para muitos dos problemas teológicos da religião cristã. Sou apenas alguém que tenta levar as pessoas a refletir sobre eles. Acho que ninguém tem a solução definitiva.
Qual foi a maior revelação que teve com estes textos?
A revelação em relação ao Novo Testamento é talvez perceber que quanto mais conheço estes textos, mais extraordinários os acho. São textos que podem ser lidos centenas e centenas de vezes. A maior revelação em relação aos Evangelhos Apócrifos foi ver que houve cristãos, nos primeiros séculos do cristianismo, que não discutiam os problemas que nós discutimos hoje em dia sobre o lugar da mulher, por exemplo. Ou melhor, discutiam-nos, mas a solução não é a atual, católica. De acordo com esses textos, a mulher pode ter um lugar de liderança na Igreja. De acordo com esses textos, a homossexualidade também é compatível com o cristianismo. São conclusões que nos chegam desses textos escritos antes do século IV. Antes da imposição da ortodoxia havia cristãos que achavam isso. Há aqui uma série de coisas que, de facto, nos levam a pensar que, se calhar, voltar aos inícios do cristianismo e ver como é que evolui essa religião a partir dos seus primórdios até depois de ser religião oficial do Império Romano, é importante.
Quer dizer que havia uma diversidade de pensamento que depois deixou de existir?
Claro. Depois houve a imposição da ortodoxia, porque o grupo que estava mais perto do imperador foi o grupo favorecido por ele e pela comunidade cristã de Roma. Não é que não houvesse também lá pessoas com outros pensamentos, mas as pessoas mais próximas do imperador pontificaram com o poder político e com a autoridade para suprimir e proibir as outras versões do cristianismo. No início não havia cristianismo, havia cristianismos. Como, de resto, há hoje em dia: católicos, protestantes, mórmons, adventistas do sétimo dia. O cristianismo voltou hoje a ser o que era nos seus inícios.
Como é que chegou aos Evangelhos Apócrifos? Porquê traduzi-los?
Cheguei lá por esta curiosidade enorme que tenho sobre Jesus. Além disso, depois de ter traduzido os Evangelhos Canónicos fiquei com curiosidade sobre os Apócrifos, em saber o que eles dizem. Comecei a interessar-me por isso e comecei a adorar esse universo. É muito, muito interessante. Desde aqueles evangelhos mais inocentes, digamos assim, sobre a infância de Maria, a infância de Jesus, aquela história sobre o pai de Jesus, José, o carpinteiro, desde esses que são muito inocentes, que não têm nada de chocante, até àqueles mais de teor gnóstico, mais polémicos.
Os Ditos de Tomé?
Sim, os Ditos de Tomé, o Evangelho de Filipe, o Evangelho de Maria Madalena, as “Grandes Questões de Maria Madalena”, que é o texto mais chocante do livro, o Evangelho Místico de Marcos, que também não se sabe se é autêntico. Sobre estes textos fala-se muito no seu grau de autenticidade, mas a questão é que existem. E já que existem vamos lê-los e cada pessoa forma a sua opinião.
É curioso que o texto do Evangelho de Maria Madalena versa sobre uma temática bem diferente das que conhecemos dos Evangelhos de sempre. Fala do desejo, dos poderes, fala sobretudo da alma, do espírito, da mente. Trata de assuntos mais imateriais, mais esotéricos, mais metafísicos.
Sim, também acho. Acho que tem muito que ver com essa ideia de qual é o caminho da alma, que percurso é que a alma tem de percorrer, e, como diz, do confronto com o desejo, com a inveja, com a ira, com essas coisas que não são físicas, são coisas do espírito. A ira, a inveja podem ser uma doença do espírito e faz parte do percurso da alma libertar-se dessas coisas, afastando-se delas. É um pouco o que a alma tem ou deve dizer quando chegar ao outro lado, é um pouco dizer que conseguiu libertar-se e atingir a tranquilidade.
É um passo mais à frente em relação aos outros evangelhos. Será por isso que Pedro desconfia se Jesus terá mesmo dito aquilo a uma mulher e não aos homens?
São coisas mais imateriais do que os outros evangelhos, e mais imateriais do que a forma de religião que se baseou nesses outros evangelhos. A religião católica tem muito que ver com muitas coisas que temos de fazer: temos que ir à missa, temos que rezar o terço, temos que não sei o quê. Coisas que não têm nada a ver com aquilo que se dizia nestes primeiros tempos do cristianismo. E textos como esse, como o Evangelho de Maria Madalena, e o Evangelho de Tomé, têm que ver com a reflexão e com a compreensão das palavras. No Evangelho de Tomé diz-se que se rezardes, isso não serve de nada, “se orardes, estais a condenar-vos a vós mesmos”. Isso é algo de muito esquisito para quem é católico praticante, ouvir Jesus dizer uma coisa dessas. São caminhos, formas diferentes de entender esse percurso da alma.
“Até a questão da sexualidade era entendida de forma diferenciada”
Podemos pensar, ao ler o Evangelho Místico de Marcos, no qual se diz que Jesus passa uma noite com um jovem, que estamos perante a aceitação da homossexualidade por uma via do cristianismo? Como é que entende o texto?
Não faço essa leitura do fragmento do Evangelho Místico de Marcos, porque não me parece que seja suficientemente convincente a interpretação homossexual da noite que o jovem discípulo passou com Jesus. Trata-se de um texto que provoca todas as controvérsias (e, por isso, católicos e protestantes rejeitam a sua autenticidade), mas parece-me a mim que a questão da homossexualidade não é clara. Interpreto o texto como rito iniciático ou, com mais verosimilhança, como preparação pré-batismal. E deixo claro que o texto poderá ser um exemplo de literatura “neo-apócrifa”, como a Epístola de Lúcio Lêntulo, que descreve a fisionomia de Jesus (pois o Novo Testamento nada nos diz sobre a aparência física de Jesus). Quanto à conciliação possível da homossexualidade com o cristianismo entre os primeiros cristãos, encontramos um testemunho disso por via indireta no autor ortodoxo do século IV Epifânio de Salamina e nas observações que ele faz acerca da aceitação do Evangelho de Filipe entre cristãos a quem chamaríamos hoje homossexuais. É preciso não esquecer que o termo “homossexual” é uma invenção do século XIX, ainda que o fenómeno de pessoas do mesmo sexo se apaixonarem umas pelas outras e quererem ter relações sexuais é de todos os tempos.
Como podemos interpretar a descrição de Jesus num ato sexual não procriativo, como é descrito no Fragmento das “Grandes Questões de Maria”, se à luz do cristianismo o sexo só é permitido para a procriação? E, mais chocante ainda, nesse mesmo texto diz-se que Jesus ejacula e ingere o seu próprio esperma. O que pode isso significar para os cristãos?
Habituámo-nos a identificar a atitude cristã em relação ao sexo com a doutrina ortodoxa do cristianismo sobre a moral sexual, mas estes textos cristãos heterodoxos que circulavam até ao século IV mostram que até a questão da sexualidade era entendida de forma diferenciada pelos muitos grupos cristãos. Aquilo que não vemos muito recomendado até ao século IV — até mesmo em contexto ortodoxo — é o sexo procriativo. Uns cristãos achavam que não valia a pena procriar porque o mundo estava prestes a acabar com a segunda vinda de Cristo. Outros cristãos achavam que o mundo era tão imperfeito que pôr nele mais filhos era prolongar o ciclo inútil de nascimento e de morte. O que um texto como o fragmento das “Grandes Questões de Maria” nos diz é que havia cristãos que se reviam na ideia de que o sexo é permissível, desde que daí não advenha a gravidez da mulher. Há outros textos, referidos pelo mesmo Epifânio de Salamina, que também apontam nesse sentido. Quanto à espermatofagia, é uma prática que os críticos ortodoxos (como Epifânio) atribuíam aos cristãos gnósticos, mas é claro que não podemos saber se isso correspondia a uma prática real ou a uma calúnia escandalosa, lançada pelo campo ortodoxo para manchar a reputação de cristãos que pensavam de outro modo. No caso de ter sido uma prática real, o intuito de ingerir esperma seria puramente místico (e não o que chamaríamos hoje “pornográfico”). No meu comentário ao fragmento das “Grandes Questões de Maria”, tento propor algumas pistas de leitura sobre este tema.
Estes Evangelhos Apócrifos apresentam-nos uma dimensão diferente de Deus?
Não sei se é diferente. Acho que nos Evangelhos Apócrifos há sobretudo, muito mais do que nos Evangelhos Canónicos, a ideia de separar Deus da figura de Deus no Antigo Testamento, ou seja, daquele Deus implacável, encolerizado, daquele Deus que castiga, que mata, que esfola. Nos Evangelhos Apócrifos há uma certa polémica antijudaica, que passa também por rejeitar a escritura judaica, rejeitar o Antigo Testamento e rejeitar o próprio Deus do Antigo Testamento. O pai de Jesus não é aquele Deus do Antigo Testamento. Para muitos cristãos, nos Evangelhos havia um equívoco enorme nessa ideia do Deus do Antigo Testamento. O Deus que criou o céu e a terra, não era Deus. Era alguém imperfeito, porque o mundo é imperfeito, está cheio de sofrimento e de coisas terríveis. Como é que Deus poderia ter criado o mundo? As pessoas pensavam que tinha sido outra pessoa a quem chamaram Deus, outra entidade, mas que o Deus verdadeiro estava acima disso, fora deste mundo, não fazia parte. A alma vai ter de fazer essa viagem para chegar lá. Não é cá que as coisas vão acontecer.
Quem são estes homens que escreveram estes textos? Quando lemos os Evangelhos Apócrifos parece que ficamos a saber mais sobre esses tempos ou que estamos mais perto da verdade. Esses homens eram homens como nós? Sei que sempre quis escrever um livro sobre os primeiros cem anos do cristianismo. Estes homens moveram-se nesse período. O que é que nos pode revelar sobre essa altura?
É uma pesquisa que ainda tenho que fazer, mas não acredito que fique a saber algo de muito concreto sobre os autores. Não sabemos até que ponto não são autorias coletivas. Será que os próprios Evangelhos Canónicos foram escritos só por uma pessoa? Não há respostas para essas perguntas. A resposta mais fácil é dizer que os textos do Novo Testamento foram inspirados por Deus e os outros todos não foram e aí resolvemos a questão de uma forma mais a preto e branco. Mas para quem não aborda estes textos dessa forma, são todos eles textos, e aí, de facto, temos dificuldade em dizer de forma fundamentada quem os escreveu. A Alexandra falou em homens…
Os nomes deles vêm todos no masculino, tirando Maria Madalena.
Pois, mas eu pergunto-me a mim próprio se o Evangelho de Maria Madalena não terá sido escrito por um homem, que escolheu o pseudónimo de Maria Madalena entendendo que havia comunidades de cristãos que gostassem de ler um texto alegadamente escrito por Maria Madalena. Acredito que também tenha sido uma mulher a escrever. Não sabemos. Pode ter sido um homem a assumir essa identidade de Maria Madalena, como há cartas de Paulo no próprio Novo Testamento que ninguém acredita que tenham sido escritas por ele, a não ser cristãos muito fundamentalistas nas universidades. As pessoas sabem que é muito improvável que tenham sido escritas por Paulo. Foi alguém que assumiu o nome de Paulo para escrever aqueles textos. Existem “diálogos” que Platão não escreveu, mas sim pessoas com o nome de Platão enquanto pseudónimo, até para darem mais divulgação aos seus textos filosóficos. Portanto, saber a identidade das pessoas é difícil. O que podemos é através do texto ter uma ideia das pessoas a que eles se dirigiam. Eles estavam a escrever para que tipo de comunidade cristã? Porque é que em três Evangelhos Canónicos, Mateus, Marcos e Lucas, Jesus diz que o divórcio não é permitido? E no Evangelho de João, nunca fala no divórcio? Àqueles cristãos que liam o Evangelho de João não lhes era importante se o divórcio era permitido ou não. Mas claramente, os cristãos que liam os outros três queriam ter uma palavra sobre a questão do divórcio. Em minha opinião, a questão do divórcio existe porque a intenção de Jesus era a de proteger o elo mais fraco no casamento da Antiguidade, que era a mulher. A mulher podia continuar a sua vida, mas ficava desamparada, na pobreza. A intenção de dizer que o divórcio não era permitido era a de não deixar as divorciadas desamparadas naquela sociedade. Extrapolar daí para dizer que não era permitido porque Deus não quer, não me parece que seja assim.
“’Apócrifo’ significa escondido em grego, não significa falso”
Em relação aos Evangelhos Apócrifos, como é que é possível que tenham ficado desconhecidos até tão tarde? Só foram publicados na segunda metade do século XX…
Aqueles mais inocentes foram sendo conhecidos, Evangelho de Tiago, Evangelho de Pseudo-Mateus, Natividade de Maria, esses nunca foram rejeitados pela Igreja. Os que foram rejeitados pela Igreja são mais os de teor gnóstico, o Evangelho de Tomé, o Evangelho de Maria Madalena, esses foram enterrados literalmente no século IV, no Egito, que tem condições atmosféricas que permitem que livros antigos e papiros se mantenham durante séculos e séculos sem se deteriorarem. No caso do Evangelho de Maria Madalena, foi descoberto no final do século XIX, enterrado, no Egito. E o Evangelho de Tomé, e o de Filipe e outros foram descobertos em 1945. São publicados pela primeira vez em 1959. É extraordinário. Já estava a Igreja católica a entrar no processo do Vaticano II. O Evangelho de Maria Madalena foi publicado pela primeira vez em 1955, ficou muitas décadas sem ser publicado. O cristianismo oficial ainda não digeriu bem estes textos, ou olhou para eles e disse “isto não interessa”. A nossa teologia está definida há muitos séculos, mas penso que estes textos podem trazer um contributo.
O facto de lhes terem chamado “apócrifos”, o termo já denota algum juízo de valor no sentido pejorativo, tem também importância, ou seja, é sintomático.
O termo foi mesmo utilizado pelo bispo de Alexandria, que no século IV escreve uma carta, um dos documentos mais famosos e importantes da história do cristianismo. É a primeira vez que lemos a lista dos 27 livros do Novo Testamento. Esse bispo de Alexandria chamava-se Atanásio, escreveu essa carta em 367, creio, aos cristãos de todo o Egito, dizendo quais são os livros que eles podem ler e que não podem ler, “apócrifos” diz ele, ou seja, escritos escondidos, escritos que têm uma circulação clandestina. “Apócrifo” significa escondido em grego, não significa falso, nem falsificado.
Nem herético?
Nem herético.
Nas suas notas apresenta duas ou três vezes a suspeita de que quem escreve leu Platão, leu Horácio. Explica que no Templo de Apolo, em Delfos, está uma transcrição parecida com outra dos Evangelhos: “Conhece-te a ti mesmo”.
Mas o meu ponto de vista não é que eles conhecessem esses textos. Penso que alguns gnósticos conheciam Platão porque quando o Evangelho de Tomé foi encontrado, nesse acervo de textos gnósticos estava também um exemplar de Platão, uma parte de A República. Faço a ligação no sentido de chamar a atenção para passagens que são parecidas nesses textos. Mas não acredito que lessem e conhecessem esses autores como nós.
E já no que diz respeito aos textos de hoje. Os textos teológicos de hoje refletem menos sobre o homem ou são mais ligeiros? Não têm a mesma carga que os Antigos, ou pelo menos quando os lemos não sentimos o mesmo fascínio.
Gosto bastante de ler textos sobre religião e sobre história da religião. Mas no que se refere ao que me está a dizer, acho que lhes falta qualquer coisa, acho que estes textos do início do cristianismo têm um timbre, têm uma coisa que é diferente.
Um mistério que nos atrai profundamente e que é diferente nos textos de hoje.
Há autores extraordinários hoje e sempre houve autores extraordinários, mas encontrar textos como estes… Eles têm qualquer coisa de diferente.
Há uma maneira de nos interpelar que é mais forte. Acho que nos sentimos mais abanados. Não sei.
Há grandes textos. Lembro-me de um poeta extraordinário que morreu jovem, Daniel Faria, que era um autor onde há qualquer coisa desse religioso, muito dessa coisa quase mística que existe nestes textos.
É possível hoje ler estes textos e agir de acordo com eles? Há um fosso tão grande entre a realidade de hoje e essa realidade bíblica e histórica que é muito difícil aproximar as pessoas da pureza que os textos têm também.
É precisamente a razão que motiva a importância das pessoas voltarem a estes textos. Eles estão para lá do trivial, do telemóvel, que é com o que as pessoas se preocupam. Estes textos alimentam. O espírito e a alma não conseguem sobreviver sem alimento.