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Fugas à censura, baladas à Scorpions e doces noites de festival: as histórias em volta das canções de Tozé Brito

Benjamim explica-nos como recriou "um dos mais importantes cancioneiros portugueses" para o álbum "Tozé Brito (de) Novo". E o compositor revela-nos as personagens e os enredos de cada um dos 12 temas.

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De “Olá, Então Como Vais?”, interpretada pelo próprio e por Paulo de Carvalho, a “Depois de Ti”, balada cantada pelas Doce — passando por “Sábado à Tarde” (Paulo de Carvalho), “Uma Nova Maneira de Encarar o Mundo” (Quarteto 1111), “Papel Principal” (Adelaide Ferreira) e tantas mais.

Ao longo de 70 anos de vida e 55 de atividade musical, duas datas comemoradas neste 2021, Tozé Brito compôs centenas de canções, interpretadas por si e por muitos outros. Esta sexta-feira a comemoração faz-se com pompa e circunstância: é editado um disco de homenagem ao compositor, que traz para o presente — e na companhia de vozes mais jovens — alguns exemplares maiores do seu cancioneiro.

O disco chama-se Tozé Brito (de) Novo e leva os ouvintes numa viagem por 12 temas da safra do compositor — canções cuja origem e génese Tozé Brito recordou ao Observador, numa viagem ao passado. São temas cantados originalmente por Quarteto 1111, Carlos do Carmo, Doce e tantos outros, aqui interpretados por B Fachada, Ana Bacalhau, Tiago Bettencourt, Rita Redshoes, Selma Uamusse, Camané, Samuel Úria, Joana Espadinha e Tomás Wallenstein, entre outros.

A capa do disco de homenagem a Tozé Brito, que será editado esta sexta-feira, 12 de novembro

Quem teve originalmente a ideia de fazer este disco foi a radialista Inês Meneses, sua mulher, explica Tozé Brito, “que se lembrou que era bonito, porque fiz 70 anos este ano e porque são 55 anos de música, fazer-se um tributo com malta de outras gerações, mais novos do que eu”.

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Numa fase inicial o compositor não soube de detalhes, garante em conversa com o Observador: “Perguntou-me o que acharia. Disse ‘OK, mas não me quero envolver nisso, faz como quiseres’. Não achava correto estar a tratar de uma coisa que acaba por ser uma homenagem às minhas canções e ao meu trabalho”.

Inês Meneses começou por recrutar um parceiro, o músico, compositor, intérprete e produtor musical Benjamim (Luís Nunes). Este posteriormente convidaria João Correia (das bandas Tape Junk e Julie & The Carjackers) para partilhar a responsabilidade de definir os arranjos e a produção musical do disco.

Definir “arranjos” e “produção musical” significa na prática o seguinte: Benjamim e João Correia foram não apenas a “banda residente”, tocando praticamente todos os instrumentos que se ouvem no álbum (guitarra, baixo, bateria, teclas), como propuseram aos convidados que as suas versões soassem a isto ou aquilo. A estética musical de cada versão foi assim pensada originalmente por eles e só posteriormente trabalhada com os cantores.

"Fui convidado a, como produtor, fazer uma releitura destas músicas. O João Correia (Tape Junk) juntou-se a foi essencial", explica Benjamim. Os dois partiram para o disco tendo "uma ideia concreta do que se queria fazer com cada intérprete" A ideia era fazer "o contrário do que são normalmente os discos de tributo, que são muitas vezes incoerentes." 

Foram depois escolhidos os intérpretes, mas sempre com uma ideia em mente: a de que este não poderia ser um “disco de homenagem” tradicional. Benjamim, que diz que já conspirava informalmente com Inês Meneses a hipótese de se fazer isto “há muito tempo”, explica porquê: “Fui convidado a, como produtor, fazer uma releitura destas músicas — depois o João Correia juntou-se e foi essencial. A ideia era fazermos o contrário do que são normalmente os discos de tributo, que são muitas vezes incoerentes porque cada canção tem um intérprete, cada um acaba por fazer a sua versão e soam totalmente diferentes entre si”.

Em suma, houve a preocupação de que o disco tivesse alguma coesão entre faixas, que apesar dos diferentes intérpretes pudesse ser “uma viagem presente neste universo mágico de canções”. Até para evitar que o registo das canções mudasse radicalmente de um tema para outro, Benjamim exemplifica o que não queria: “De repente entrava um intérprete do fado e começavam-se a ouvir guitarras portuguesas, o registo mudava por completo…”.

Os dois produtores e arranjadores partiram para a empreitada tendo “uma ideia concreta do que se queria fazer com cada intérprete”. Os cantores trouxeram depois nuances suas a cada versão, moldando-a mas não a desvirtuando. Tudo para ter um conjunto de versões em que o registo “vai variando, com universos musicais diferentes — até porque as canções são de géneros e épocas diferentes —, mas que fosse claramente deste tempo, de agora”. Colocar todas estas canções, em suma, “em 2020 e 2021”.

"O cancioneiro do Tozé Brito é o maior cancioneiro pop nacional, o mais importante e o mais histórico. Temos a responsabilidade de manter os legados vivos e de falar entre gerações, de gerar memória e de preservar memória". 
Benjamim

Até pelo “legado” que tinham em mãos, o património de canções de Tozé Brito que Benjamim considera “o maior cancioneiro pop nacional, o mais importante e o mais histórico” — aqui revisto pela primeira vez —, este foi “um trabalho de grande dedicação e responsabilidade, foi um disco que implicou muito trabalho e muitas horas, sem fins-de-semana ou folgas”, vinca um dos produtores e arranjadores de Tozé Brito (de) novo.

Para o produtor e músico, trabalhos como estes “são importantes para a música portuguesa, porque temos a responsabilidade de manter os legados vivos e de falar entre gerações”. Por outras palavras, Benjamim considera importante “gerar memória e preservar memória” e “haver um convívio” entre músicos de gerações diferentes e universos musicais distintos. Admite mesmo: “Nunca imaginei que ia estar num estúdio com o Camané a produzir uma canção, ou com o António Zambujo”.

Se os méritos deste disco novo estão apresentados — entre eles, a forma como se resgata do esquecimento uma grande canção chamada “Eva” ou como este cancioneiro se molda ao presente e a vozes de diferentes estilos musicais —, o álbum traz até à modernidade 12 canções de diferentes épocas, mas todas elas com histórias por trás.

Ao telefone com o Observador, Tozé Brito recuou até à génese de cada uma das canções que se ouvem neste álbum Tozé Brito (de novo). Contou, por exemplo, que o disco do dueto com Paulo de Carvalho “Olá, Então Como Vais?”, Cantar de Amigos (editado em 1979), foi feito porque queria contratar o amigo para a Polygram, hoje Universal Music Portugal, e um álbum a dois foi a maneira de libertar o comparsa da anterior editora.

Numa viagem pelas suas memórias, Tozé Brito revelou ainda que Herman José, para quem compôs A Cor do Teu Batom, participou num Festival da Canção interpretando esse tema sem ter nacionalidade portuguesa — se tivesse vencido naquela altura o concurso de canções da RTP ficar-se-ia a saber que não poderia representar Portugal na Eurovisão. E confessou que Adelaide Ferreira, quando lhe pediu uma canção que se tornaria a famosa “Papel Principal”, lhe pediu uma balada com um estilo semelhante ao de “Still Loving You”, dos Scorpions.

Tozé Brito: “Queria ter escrito uma canção para a Amália”

“Olá Então Como Vais?”

Interpretação original: Tozé Brito e Paulo de Carvalho
Recriação: Benjamim e B Fachada

A história dessa canção é curiosa. Estava na altura da Polygram, hoje Universal Music Portugal, e era AR – diretor de artistas e reportório. Nessa época queria muito contratar o Paulo de Carvalho, que era meu amigo de quando eu estava no Quarteto 1111 e ele nos Sheiks.

O Paulo gravava para a Nova, uma editora pequena e independente de um amigo nosso, o Hugo Lourenço. Disse ao Hugo que gostava de contratar o Paulo — já tinha falado com o Paulo — e ele disse-me que era o artista mais importante que tinham na Nova. Tínhamos de chegar ali a um acordo. É claro que o Paulo de Carvalho podia deixar o contrato com a Nova acabar e sairia, mas eu queria efetivar a representação o mais rápido possível.

[a nova versão, com Benjamim e B Fachada, foi o primeiro single de “Tozé Brito (de) Novo”:]

O Hugo lançou-os um desafio giro: “pá, eu liberto o Paulo para a Polygram se tu e ele gravarem um álbum a dois”. Um álbum a que resolvemos chamar ‘Cantar de Amigos’, em que metade das canções escrevia o Paulo e a outra metade escrevia eu — deu cinco temas a cada.

No meio disto, pensámos: era simpático cantarmos uma canção juntos. O Paulo cantou as canções que eu escrevi e eu cantei as que ele escreveu. Mas achámos que era giro haver ali um dueto. Fiquei eu encarregado de escrever esse dueto e comecei a pensar numa história que me pareceu original, de dois amigos que acabam por ter uma relação com a mesma mulher. Essa mulher acaba por passar de um para o outro até desaparecer da vida deles.

Na canção temos um a perguntar ao outro se sabe dela, “está comigo” e tal. É um diálogo entre dois homens que tiveram uma relação com a mesma pessoa, uma mesma mulher neste caso. Pareceu-me original, não conhecia nada feito nesses moldes nem em Portugal nem fora. A canção nasceu assim e de imediato foi escolhida para ser o single desse álbum. Hoje, passados 40 anos, continua cá.

“Canção da Alegria”

Interpretação original: Tonicha
Recriação: Ana Bacalhau e Mitó

Esta canção foi a Tonicha que a cantou. É anterior à “Olá, então como vais?”, é do fim dos anos 1970. A Tonicha era muito conhecida por cantar folclore português, a carreira dela foi feita à base de arranjos de folclore português em versões mais pop, digamos assim.

Na altura a Tonicha mostrou vontade de gravar um álbum completamente diferente, com canções muito mais sérias. Esse álbum chamou-se ‘Ela por Ela’. Entre as muitas pessoas a quem pediu canções, pediu-me uma canção a mim.

O Joaquim Pessoa escreveu a letra e eu musiquei a canção dentro de um estilo que não tinha nada a ver com o folclore português mas sim com um formato de canção pop pura e dura. A canção ganhou alguma notoriedade, porque entre os temas desse álbum foi escolhido para ser o ‘single’. Passou a tocar nas rádios e etc. Foi uma incursão da Tonicha pela música popular para depois voltar às raízes folclóricas que foi onde fez sempre carreira — e muito bem.

“Sábado à tarde”

Interpretação original: Paulo de Carvalho
Recriação: Tiago Bettencourt

A “Sábado à tarde” é uma das tais canções que escrevi e que veio a acabar no disco ‘Cantar de Amigos’, que fiz com o Paulo de Carvalho. Foi o Paulo que a cantou, mas foi uma canção que não foi escrita de propósito para esse álbum. Comecei por escrevê-la para mim, depois acabei por nunca a gravar.

É uma canção que relata um episódio da nossa adolescência, da nossa juventude, acho que todos passámos por momentos parecidos. É um rapaz que combinou uma ida ao cinema com a namorada, o filme é para maiores de 18 anos e ela não tem ainda 18, ele está super preocupado com o que vai vestir. Digamos que é um primeiro encontro a sério entre eles.

Na altura era assim: os filmes tinham classificação para idades e às vezes era-se barrado à porta. A canção descreve uma pessoa que vai a correr para o cinema, preocupado com o que veste, com o que vai acontecer, se ela vai entrar ou não. Entram no filme e depois há aquele momento em que dão a mão e pela primeira vez se beijam.

É uma canção de amor adolescente, de uma adolescência mais adiantada, que creio que funcionou muito bem e tem mais versões cantadas por mais pessoas. Penso que funcionou muito porque descreve uma situação pela qual julgo que todas as pessoas da minha geração passaram: idas ao cinema em que não tínhamos idade para ver um filme e estávamos cheios de medo se íamos entrar ou não. E, depois, o que se passava no cinema.

O álbum é de 1979 e terei escrito esta “Sábado à Tarde” quando cheguei de Inglaterra, para aí em 1975. Na altura já tinha 24 anos, mas estava a pensar na altura em que ia ao cinema em Cascais, ao cinema São José. Era o cinema de Cascais nessa época, a que toda gente ali ia no fim dos anos 60 e princípio dos anos 70. Foi escrita a pensar nessa época, baseada numa realidade que vivi. É uma canção muito pessoal, mas penso que muita gente passou pelo mesmo e relaciona-se.

“Uma Nova Maneira de Encarar o Mundo”

Interpretação original: Quarteto 1111
Recriação: Miguel Guedes e Rita Redshoes

Esta é uma canção completamente diferente, do Quarteto 1111. Foi gravada pelo Quarteto e depois pelos Green Windows [grupo que Tozé Brito também integrou].

A canção nasceu quando estava no Quarteto 1111, por volta de 1972, escrita por mim e pelo José Cid. Fomos convidados a participar num festival internacional que aconteceu no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, o Festival dos Dois Mundos. Tinha representantes de 20 e não sei quantos países e nós éramos os representantes de Portugal. Levámos duas canções, esta foi uma delas.

Nesse festival, o Quarteto 1111 surgiu com as nossas quatro mulheres ou namoradas da altura. Dois de nós eram casados, eu não era. Mas as quatro mulheres ou namoradas fizeram coro nessa canção, pelo que foi interpretada pelo Quarteto 1111 e por elas. A esse grupo que a cantou resolvemos chamar depois Green Windows. E gravámos a canção posteriormente com vozes femininas.

Recordo-me perfeitamente de termos pensado inicialmente: esta era uma canção que precisava de um coro grande, de vozes femininas, de uma parte vocal muito forte. Daí o convite que fizemos às quatro para cantarem connosco. Isto foi a génese dos Green Windows, que nascem depois da atuação neste festival — em que ficámos em terceiro lugar. Também na sequência do festival fomos convidados pela Decca, uma editora inglesa, a ir gravar a canção a Londres. 

Foi uma canção que escrevemos depois de muitas canções do Quarteto 1111 terem sido censuradas, proibidas pela censura. Esta foi uma forma de maneira de passarmos um recado: era preciso mudar o mundo. Tinha tudo a ver com o país em que vivíamos, mas  dito de uma forma que passasse e contornasse a censura. Lá conseguimos.

As canções que tivemos proibidas no Quarteto 1111, e foram muitas, eram muito mais diretas, falavam muito concretamente dos problemas da Guerra Colonial, da emigração que naqueles anos era maciça — milhões de portugueses saíam de Portugal. As condições em que se vivia eram muito abaixo do aceitável. Havia emigração em massa e havia uma Guerra Colonial contra a qual estávamos, declaradamente.

Esses temas proibidos eram canções diretas, que falavam de forma direta sobre estas coisas, e portanto foram proibidos. Aqui demos a volta, dizendo que era preciso mudar o mundo e olhar para o mundo de outra forma sem corrermos o risco da canção ser proibida. Tivemos de usar metáforas para dizer aquilo que queríamos. A canção passou, lá ficou em terceiro lugar no festival e levou-nos a Londres.

“Papel Principal”

Interpretação original: Adelaide Ferreira
Recriação: Selma Uamusse

Esta canção tem uma história curiosa. A Adelaide Ferreira era nossa artista na Polygram, onde na altura para além de ser diretor artístico (AR) também já era vice-presidente. Isto passa-se nos anos 1980. A Adelaide Ferreira gravou um álbum que se chama ‘Entre Um Coco e Um Adeus’ e pediu-me uma canção, porque estava a gravar o álbum. Muita gente vinha ter comigo pedir-me canções, tínhamos muitos intérpretes que não escreviam as suas próprias canções.

A Adelaide veio-me pedir uma canção e fez uma comparação, lembro-me de termos falado nisso: pediu-me uma ‘power ballad’, uma balada com força, com peso, com poder. Lembrou-se da “Still Loving You” dos Scorpions. Lembro-me perfeitamente de ter andado muito tempo a ouvi-la, porque o ambiente que ela queria era aquele e o que fui à procura foi isso.

Sendo uma canção que não copia nada, acordes nenhuns, penso que se conseguiu captar esse ambiente. Porque esta canção também começa com notas baixas, graves. A Adelaide tem uma extensão vocal incrível, foi talvez a voz feminina com mais potencial para quem escrevi. Tinha uma voz que lhe dava a possibilidade de dar notas graves com muita segurança e depois ir a notas agudas com facilidade tremenda.

A “Still Loving You” é um bocado assim: começa cá em baixo e depois no refrão vai completamente lá para cima. Foi esse ambiente que se tentou recriar na “Papel Principal”. Mas é uma canção de Lado B, passaram anos e ninguém deu por ela, pela canção. Ficou perdida no álbum, como acontece a muitas.

Uns anos mais tarde, penso que em 1998, a Adelaide grava um álbum [‘Só Baladas’], volta a estúdio e regrava essa canção fazendo um dueto com a Dulce Pontes. Essa versão tem imenso sucesso, entra para uma novela portuguesa e, porque teve ‘airplay’ de rádio e destaque grande na novela, entrou em tudo o que era karaoke neste país. Em tudo o que fosse karaoke onde ia, a “Papel Principal” estava lá.

Basicamente é uma canção que esteve 15 anos num limbo. Ninguém sabia que existia, sabia a Adelaide. Não teve impacto e sucesso na altura em que saiu o álbum. Os singles foram outros, as pessoas não falavam da “Papel Principal”. Quinze ou 16 anos depois, fez um dueto com Dulce Pontes e esse é que tem impacto e projeta a canção.

“Eva”

Interpretação original: Tozé Brito
Recriação: Catarina Salinas

Esta foi uma grande surpresa para mim ter sido escolhida para este álbum. Quando a Inês [Meneses] me propôs esta homenagem com malta de novas gerações — tudo malta nova e que recriasse completamente as canções, desconstruindo-as e reconstruindo com arranjos novos — no início o que me pediu foi que fizesse uma playlist com algumas canções para propor às pessoas.

Nunca pensei… não fiz nenhum contacto com os intérpretes, só ia sendo informado que este escolheu esta e outro escolheu aquela. Quando me disseram que a Catarina Salinas dos Best Youth ia cantar a “Eva” fiquei estupefacto. Foi uma surpresa enorme para mim porque é uma canção que gravei num álbum meu, chamado ‘Adeus até ao meu regresso’, do início dos anos 80 [1982]. É uma canção pop pura e dura, divertida, dançável, que de vez em quando tocava nas pistas de dança deste país. Mas nunca pensei que alguém a fosse recriar porque ficou perdida lá atrás.

Em 2021 é redescoberta quando era uma canção que estava completamente esquecida. Quando me disseram que a Catarina ia gravar essa canção, achei espantoso e foi uma surpresa enorme. Fez uma versão absolutamente espectacular, todas as canções estão muito boas e não tenho preferidas mas houve umas que ficaram mais próximas das versões originais. A “Eva” mudou bastante em relação ao original. Tantos anos depois, é uma nova canção.

D.R.

Lembro-me que esta canção começou por ser uma brincadeira. Tinha uma amiga que se chamava Eva e que era só minha amiga, nunca foi mais do que isso. Nunca tive com ela nenhuma relação amorosa mas a canção brinca com isso. Essa minha amiga, que ainda conheço, fez com repente pensasse: este nome dá-me para brincar com o Paraíso, “o paraíso és tu, o paraíso é agora ter-te aqui”.

Faço um paralelismo com Adão e Eva, ele — que na canção obviamente não se chama Adão — estava sozinho no seu mundo e a Eva cai neste mundo com uma maçã. De repente, como diz a canção, “a aguardente já lhe sabia a maçã”. Toda a letra foi construída com esse paralelismo bíblico dos primórdios da humanidade. 

Achámos imensa graça e ela gostou imenso na altura, falámos sobre isso. A canção depois perdeu-se, tocava de vez em quando em pistas de dança naquela altura mas passou. A história era no fundo a história de Adão e Eva.

“Retalhos” (ou “Retalhos de uma Vida de Médico”)

Interpretação Original: Carlos do Carmo
Recriação: Camané

Esta é uma canção completamente escrita ao contrário. Foi feita para uma série de televisão que se chamava “Retalhos de uma Vida de Médico”, mas a canção originalmente chama-se apenas “Retalhos”. Nasce com o intuito de ser o genérico de uma série da RTP sobre o Fernando Namora, um grande escritor português e um médico de província.

Fez-se uma série de televisão em que o genérico da série me foi encomendado. O Carlos do Carmo era o intérprete dessa canção, já estava definido que era ele que ia cantar e que a letra seria do ‘Zé’ Carlos Ary dos Santos, a pessoa mais genial com quem escrevi canções. Dos poetas com que trabalhei, foi sem dúvida o mais genial de todos. Deu-me um prazer enorme ter escrito essa canção com ele.

O Carlos do Carmo convidou o Ary dos Santos a escrever a letra e convidou-me para escrever a música. Quando li a letra, imediatamente percebi que sugeria uma canção daquele género. Sabia que o Carlos, um intérprete fabuloso que dizia e cantava como ninguém neste país, tinha uma predileção enorme pelos Jacques Brel e pelo Frank Sinatra. Quando me pediu uma canção para a série, percebi logo que o Sinatra não tinha nada a ver com o ambiente que estávamos a tentar criar numa canção relacionada com uma série destas, sobre um médico de província — mas o Brel sim, tinha canções épicas com aquele crescendo.

A canção começa lenta e o refrão vai acelerando, um pouco à semelhança da “La valse à mille temps” que também começa lenta e no refrão acelera, acelera… Inspirei-me nessa canção para escrever esta completamente distinta. A inspiração foi o Brel, sem dúvida. E a letra [de Ary dos Santos] resume todo o conteúdo da série, está lá a série de televisão toda plasmada. Tive de ir à procura de uma música que transmitisse esse dramatismo de um homem que trabalha em condições extremamente duras.

Sem falsas modéstias, lembro-me de ter adorado e ter-me sentido extremamente orgulhoso com a forma como a canção ficou. Foi uma das canções bonitas que acho que tive oportunidade de escrever, foi uma das parcerias mais bonitas que tive com o “Zé” Carlos Ary dos Santos — que foram todas para canções interpretadas pelo Carlos do Carmo, aliás. Esta foi talvez a mais conseguida, a orquestração e o arranjo ficou absolutamente genial, apanhou-se totalmente o espírito que queríamos.

Às vezes escrevem-se canções, transmite-se a ideia ao arranjador e a coisa não sai exatamente como imaginávamos. Neste caso, saiu perfeito.

“A Cor do Teu Batom”

Interpretação original: Herman José
Recriação: Samuel Úria

Este tema foi cantado pelo Herman José, que o levou ao Festival da Canção. É uma canção muito especial. Conhecia bem o Herman, éramos grandes amigos. Já escrevia para um programa de rádio do Herman, que creio que se chamava “Rebéubéu Pardais ao Ninho”. Era um programa que dava sábado de manhã na Rádio Comercial que depois veio dar origem ao “Tal Canal”, para o qual também escrevi — com o António Tavares Telles — para a personagem Esteves.

O Herman mostrou vontade de ir ao Festival da Canção mas havia um problema de que ninguém sabia e de que ainda hoje pouca gente estará a par. É que o Herman tinha nacionalidade alemã. O pai era alemão e ele optou pela nacionalidade alemã em detrimento da portuguesa, imagino que para evitar o serviço militar porque ninguém tinha vontade de o cumprir. Acho que foi a razão principal.

Portanto, o Herman mostrou vontade de ir ao Festival da Canção mas se tivesse vencido o festival não poderia ir à Eurovisão porque era obrigatório o intérprete ser português. Eu e o António Avelar Pinho, também grande letrista com quem trabalhei, escrevemos uma música, uma coisa festivaleira, leve, alegre, que ficasse no ouvido. O Herman acabou por ficar em segundo lugar, ganhou o Armando Gama. Foi um alívio. O Herman gostava de ter vencido mas não podia ganhar, era um escândalo ter de dizer depois que não podia cantar e que tinha de ir outra pessoa.

É uma canção que ainda hoje o Herman continua a cantar em espectáculos, que se tornou de alguma forma muito representativa e irónica daquela época, daquele festival logo no início dos anos 80. A história da canção é esta, uma brincadeira para o Herman, que pediu uma coisa leve, ligeira, de festival, para o refrão ficar no ouvido à primeira. Foi esse o intuito original da canção.

Desde o início daquilo tudo dizíamos: se isto ganha é terrível… porque o Herman ia ter de dizer que não podia ir representar Portugal por não ser português. Foi um alívio ficar em segundo lugar. O Armando Gama ganhou muito bem e o Herman ficou num honradíssimo segundo lugar.

“Em Segredo”

Interpretação original: Dina
Recriação: Joana Espadinha

Esta é uma canção muito especial. Escrevi-a para a Dina. A Dina estava na altura a começar, ia gravar o seu primeiro álbum, o ‘Dinamite’, tinha um ou dois singles na época. Foi mais uma cantora que me pediu canções, tal como a Tonicha e a Adelaide Ferreira.

Em 1982 a Dina concorreu ao Festival da Canção com mais do que uma canção [concorreu com “Em Segredo” e com “Gosto do Teu Gosto”]. Escrevi esta [que ficou em oitavo lugar] pensando nela e num amor secreto que eu sabia que ela tinha. Eram confidências de amigos, eu sabia que esse amor existia mas que não passava de um amor em segredo.

A letra da canção explica tudo: ela não tinha coragem de assumir esse amor perante a pessoa de que gostava, então amava em segredo. Foi uma canção escrita especificamente a pensar não só na Dina mas numa questão amorosa, num amor que ela tinha. E foi uma das baladas mais bonitas que terei escrito, é uma canção de que me orgulho muito.

Quando ouviu, a Dina percebeu logo e adorou a canção imediatamente. Deu-me um grande beijo. Ela percebeu que eu tinha entendido e que tinha conseguido traduzir e transmitir na canção o que ela sentia.

“Não Hesitava um Segundo”

Interpretação original: Tozé Brito
Recriação: António Zambujo

É uma canção curiosa, esta, que escrevi já no final dos anos 90, quase a entrar nos anos 2000. Remete para a minha juventude, andava a lembrar-me de uma namorada que tive em tempos e de um anel de prata que existia entre nós. E dos olhos azuis que ela tinha, também.

A canção foi escrita a pensar nela e mais uma vez a letra conta a história toda. Remete para uma namorada que tive e que adorei quando era bastante novo, diria que foi talvez o meu primeiro namoro a sério. Tinha 18 anos quando conheci essa namorada. A canção foi escrita muitos anos depois a pensar nela.

JULIO LOBO PIMENTEL/OBSERVADOR

Há uma coisa que nunca fiz: nunca dediquei canções a ninguém. Inspirei-me em experiências que vivi e pessoas que conheci e em momentos da minha vida, mas não ia a correr telefonar às pessoas a dizer que a canção lhe era dedicada, que era para ela. Esta pessoa imagino que não saiba disto e se ler vai perceber, mas nunca lhe disse. 

As experiências que vivemos moldam também as canções. Aconteceu-me muitas vezes isso. Pouquíssimas vezes, que me lembre talvez uma ou duas, a escrita das canções coincidiu com o momento em que estava a viver essas relações e momentos sobre os quais escrevia. A maior parte escrevi muitos anos depois do que as inspirou, em alguns casos 20 ou 30 anos depois, quando pensava nessas vivências, nessas experiências, nesses amores. Tinha muita graça porque quando escrevia as canções, recordava esses tempos.

“Depois de Ti”

Interpretação original: Doce
Recriação: Tomás Wallenstein

Esta canção foi o Lado B da “Amanhã de Manhã” das Doce — que foi a primeira canção que as Doce gravaram e que foi logo um sucesso gigante. Eu e o Mike Sergeant pensámos em escrever uma balada para o Lado B do single, porque pensámos assim: deixa ver como é que elas cantam uma balada. Uma coisa é a “Amanhã de Manhã” que é alegre, divertida, pop, feita para à segunda vez que a ouves já estares a cantar. A “Depois de Ti” não é nada disso. Queríamos muito perceber como elas iam cantar uma balada.

O Mike compôs a balada, lindíssima e sem letra. Tinha a linha melódica da letra, umas silabas tónicas, a métrica, etc. Eu ouvia aquelas lengalengas rítmicas que ele me mandava em inglês, por cassete, sentava-me e escrevia a letra. É uma história que não é baseada em factos reais mas numa realidade pela qual já passámos todos: amores passados em que uma pessoa depois fica sozinha. Na letra está a história toda, que é em suma isto: ‘Se um dia voltares e me bateres à porta entra à vontade e vais ver como ultrapassei esta separação e sou uma pessoa feliz’. 

“Pensando em Ti”

Interpretação original: Gemini
Recriação: “Todos”

É uma canção escrita mais uma vez com o Mike Sergeant, no início dos Gemini. Em 1976 formámos os Gemini e precisávamos de um êxito. Com os Green Windows tínhamos tido êxito e os Gemini era um projeto feito um pouco à semelhança dos ABBA, que tinham vencido o Festival da Eurovisão dois anos antes com a “Waterloo”. A fórmula dos Gemini é mais ou menos a mesma: dois homens, duas mulheres.

Precisávamos de um tema muito forte para arrancar e fizemos esta “Pensando em Ti”, uma canção que no início, quando saiu, quase Portugal inteiro cantava. É uma daquelas canções que atravessa gerações. Quando compunha, tentava sempre que as canções fossem intemporais, que fossem suficientemente sólidas para resistir ao tempo, que sentisse que passados 20, 30, 40 anos ainda continuaria a gostar de as ouvir. Claro nem sempre se consegue, mas quando se consegue é uma vitória.

Esta tem 45 anos e é uma canção que está perfeitamente atual. Neste disco novo, cantamo-la todos. É uma canção que fecha o álbum, em modo fim de festa, com toda a gente que participou no álbum a cantar. Até eu me juntei, é a única em que apareço a cantar.

Mais uma vez, é uma canção em que a letra é clara, desvenda tudo. É mais uma canção de amor e que teve um enorme sucesso na altura, foi o primeiro disco de ouro oficialmente atribuído em Portugal. Os discos de ouro oficiais nasceram precisamente nesse álbum, nessa altura, em 1976.

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