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Quase de certeza que o leitor pararia para ler este título: “O sem-abrigo de 16 anos que inventou a Louis Vuitton”. Bom, a internet já pensou nisso e o efeito caça cliques nem sequer deve muito ao engano — a história é mesmo esta, a do artesão sem teto que de forma precoce começou do zero, perdeu tudo e voltou a reerguer-se, e revolucionou para sempre a arte de viajar. Responsável pela manufatura da primeira bagagem moderna, o seu trajeto jamais caberia num dos seus cobiçados baús, os mesmos que caíram nas graças da última imperatriz francesa, Eugénie de Montijo, a mulher de Napoleão III, entre outras figuras da elite da época. Da primeira oficina ao intemporal monograma, do jet set dos anos 60 aos nossos dias, esta é a história do fundador da marca, que nasceu há 200 anos para mudar para sempre a mala de férias dos turistas mais luxuosos.
1835. O adolescente determinado a caminho de Paris e a clientela real
De origens humildes, Vuitton nasceu a 4 de agosto de 1821, no seio de uma família de artesãos, carpinteiros e agricultores. A mãe, fabricante de chapéus, morreu quando o pequeno Louis tinha apenas 10 anos, e o pai não demoraria a recasar. Na primavera de 1835, com 13 anos, despede-se da relação turbulenta mantida com a madrasta e abandona a casa de família em Anchay, contrariando a vontade paterna. Estrada fora, vai colecionando trabalhos aleatórios e palmilha quase 500 quilómetros, a distância que o separava de Paris. Quando chega por fim à capital francesa, haviam passado dois anos. Em 1837, Louis Vuitton encontra uma cidade em plena Revolução Industrial. À sua espera tem o mestre Monsieur Romain Maréchal, nome de sucesso na confeção de baús de bagagem, a partir da rua Saint-Honoré. Em poucos anos, um ainda jovem mas perseverante Vuitton consolida a sua reputação neste ofício, essencial numa era em que as viagens se cumpriam em barcos, comboios ou carruagens e cada uma dessas alternativas punha em causa a proteção e segurança dos objetos transportados pelos passageiros.
Foi na oficina de Maréchal que Vuitton apurou a sua técnica, lançando as sementes daquele que viria a ser o atelier em nome próprio, altamente especializado na indústria artesanal, com o design das caixas e dos grandes baús de transporte, personalizados segundo os requisitos dos clientes — alguns deles bastante sonantes. Quando Napoleão III se torna imperador de França, em 1852, Louis é contratado como arrumador de bagagem da sua mulher, Eugénie de Montijo, título que lhe valeu o acesso à esfera da realeza e aristocracia francesas. De resto, a influência de Eugénie no estilo de vida opulento prevalece até hoje. Cedo começaria a fornecer-lhe ele próprio as malas da sua criação.
1854. Em nome próprio, a embalar com toda a segurança e mais resistentes que o Titanic
Dezassete anos depois de começar a aprendizagem com o seu mestre, estabelece-se no número 4 da Rue Neuve-des-Capucines, a um passo da Place Vendome. Nascia assim a “Louis Vuitton Malletier”, pela altura em que Louis se casa com Clemence-Emilie Parriaux, com quem constitui família. O novo espaço, aberto em 1854, acolhia também workshops. À porta da loja, lia-se: “Embalamos com segurança os objetos mais frágeis. Especializados em embalar artigos de moda”. Quatro anos depois, Vuitton estreia um novo malão e a funcionalidade não é menos relevante do que o design. No lugar da habitual pele, ganha terreno a resistente tela, mais leve e prática, durável e impermeável. A alteração imposta na forma é determinante: dos modelos abaulados no topo para as estruturas retangulares e de superfície plana, bastante mais fáceis de empilhar e arrumar. Cedo os modelos Trianon começariam a ser imitados.
O negócio segue à velocidade com que os emergentes meios de transporte se instalam no quotidiano, incluindo o automóvel. Da fotógrafa e poeta Dora Maar ao pintor Francis Picabia, de Coco Chanel a Hélène Rochas, sem esquecer os Rothschilds e os Windsor, as estrelas irão passear-se com as malas Vuitton, símbolo de status desde a sua criação. Em 2016, uma grande exposição ilustrava essa relação inseparável entre a maison e a sublime experiência da viagem.
Na realidade, Louis nunca se focou nos pequenos e acessíveis bens de consumo de todos os dias, antes na confeção de requintados artigos à medida de uma elite, que espelhassem o espírito do tempo. As peças de moda não estavam entre as confeções de um criador contemporâneo de Charles Frederick Worth, o precursor da alta costura, mas o trabalho na corte permitira-lhe ter noção da forma como o guarda-roupa de senhoras e cavalheiros era debilmente acondicionado. Dos vestidos mais delicados aos espaçosos chapéus, nada como uma caixa robusta e elegante à altura do recheio dos viajantes, ao mesmo tempo leve o suficiente para facilitar o transporte. A estrutura de madeira e metal casava na perfeição com os materiais exteriores, que acabariam por cristalizar no icónico padrão “Louis Vuitton Damier Canvas.”
Tão emblemáticas criações jamais se livrariam de uma lenda urbana à altura, valendo-se da sua robustez. Mais inafundáveis que um transatlântico, para a história passou a imagem no rescaldo do naufrágio do Titanic, com a bagagem a flutuar nas águas nos dias que se seguiram, não estranhando que alguns dos items da primeira classe tivessem a assinatura Vuitton. A fama de indestrutível estender-se-ia a momentos como o rally Paris-Pequim, em 1907, ao longo do qual sobreviveram à agua melhor que muitos motores.
1859. A expansão nos arredores de Paris, a reconstrução das oficinas e o trabalho até ao fim — tudo em família
Com o negócio a correr de feição, em 1859 Vuitton decide alargar a sua pequena oficina, trabalhando agora a nordeste de Paris, em Asnières-sur-Seine, morada que se tornaria célebre. A equipa, composta por vinte empregados, chegaria à centena por volta do ano de 1900, já após a morte do fundador. Chegados a 1914, o número subia para 225. Expandido ao longo das décadas, incluindo uma residência para a própria família Vuitton, este símbolo do sucesso pessoal e comercial continua a assistir ainda hoje à confeção de alguns artigos da marca, recorda a Architectural Digest. Se a casa do clã foi preservada e funciona, em parte, como museu privado, 170 artesãos continuam a trabalhar neste atelier, respondendo a pedidos de todo o mundo.
Em 1867, o reconhecimento ganhava outra dimensão. Da Exposição Universal em Paris saía uma medalha de bronze para o empresário, que em 1889 garantiria o ouro na grande mostra para a qual foi erguida a Torre Eiffel, um emblema absoluto da cidade que é afinal posterior às não menos representativas malas LV.
Em 1871, contudo, por causa da guerra franco-prussiana, a procura pelos artigos Vuitton cairia drasticamente e o rombo no atelier foi inevitável, incluindo a pilhagem de material e a debandada de muito do pessoal. Louis não demorou a arregaçar as mangas e a construir nova loja, agora no número 1 da Rua Scribe, vizinha do prestigiado jockey club, no coração da capital. Apenas um ano depois desse desastre na oficina, o artesão lançava uma nova linha, combinando o bege com as riscas encarnadas, que se manteve mesmo após a sua morte, em 1892.
1876. Contra a contrafação e um moderno e previdente cadeado (à prova até de mágicos)
Até hoje uma das marcas mais cobiçadas é também, por inerência, uma das preferidas no capítulo da contrafação. Mas a tentativa de replicar ao detalhe os luxuosos apontamentos de cada modelo está longe de ser uma proeza meramente contemporânea. Não por acaso, corria ainda o ano de 1876, Vuitton introduziu um padrão especial para a sua bagagem, sendo que 13 anos mais tarde surgia o clássico xadrez de fundo que prevalece até aos nossos dias. Parte da estratégia visava precisamente dificultar as cópias indevidas.
Em 1886, outra novidade, agora orientada para o reforço da segurança, no ano seguinte à abertura da primeira loja da marca em Londres, em Oxford Street. George Vuitton revolucionou os modelos disponíveis com um engenhoso sistema de cadeado. O método ambicionava ser tão eficaz que o filho do fundador chegou mesmo a lançar, nas páginas de um jornal, o desafio ao famoso mágico Harry Houdini, para tentar evadir-se de um dos baús Louis Vuitton — mas o mestre da fuga não terá sequer respondido à proposta. De qualquer forma, a segurança oferecida pelos cadeados foi tal que o esquema continuou a ser usado.
The Art of Craftsmanship: a challenge fit for Houdini. In 1905, #LouisVuitton publicly invited the illusionist to escape a trunk secured with one of the Maison's patented 'unpickable' locks. Watch the new LV TV series on YouTube: https://t.co/aqmRLGlPIb pic.twitter.com/2CLOCWEMsG
— Louis Vuitton (@LouisVuitton) December 19, 2019
A exatidão nas proporções, o cuidado dos reforços em faia, o pormenor dos rebites, ou o revestimento com o monograma. Se muitos dos códigos da casa sobrevivem até à atualidade, a era moderna não parou de assistir à evolução da família de malas. Para levar no carro, para o gabinete, para a secretária, para a cabine do avião, etc., do popular “trunk de 1906” aos mais recentes modelos, a cronologia enche-se de invenções e opções, como Steamer, Noé ou Marceau.
1896. Um monograma para a posteridade, a guerra e o futuro com o grupo LVMH
Louis Vuitton morre a a 7 de fevereiro 1892 e o seu legado está longe de ficar esquecido no fundo de uma mala, mesmo que se trate de uma luxuosa peça com as iniciais LV. Ao leme da companhia, o seu filho George dedica-se a conjugar a arte e tradição paternas com o desígnio da inovação permanente. É graças a ele que a empresa segue o seu caminho rumo a um futuro cada vez mais sintonizado com os ventos de modernidade do século XX. Em 1893, apresenta os seus artigos na Feira Mundial de Chicago, vendendo ainda as peças, nessa viragem do século, em cidades como Nova Iorque ou Filadélfia. Mas sem dúvida que uma das suas criações de maior impacto foi a introdução do célebre monograma da maison, com as iniciais L e V interligadas e uma combinação de diamantes, círculos e flores, patenteado em 1896.
Mas há mais: com George, a Louis Vuitton, feita por medida para os mais exigentes viajantes, estreava-se ela própria a conhecer mundo. Encetava assim uma campanha para expandir a venda de produtos em outras grandes cidades, sobretudo nos EUA.
Além da inovação nos cadeados, George apostou na série de livros “Le Voyage” e na criação de produtos VIP para oferecer aos clientes mais fiéis da marca. Em 1905, mais um exemplo da criação de objetos únicos, providenciais para exploradores como Pierre Savorgnan de Brazza, para quem a marca concebeu uma versão especial cama, desdobrável e altamente portátil. Contas feitas, nada de tão extravagante, pelo menos quando comparado com outros modelos, como a versão casino, com direito a roleta incorporada e fichas, para um mundo de apostas ilimitadas, em qualquer lugar, a qualquer hora.
Em 1914, a Vuitton ganhava um quartel-general à sua dimensão, o “Vuitton Building”, um imponente edifício de sete andares que resultou do trabalho dos arquitetos Louis Bigaux e Koller. No seu estilo de Arte Nova tardia, o espaço hoje ocupado pelo Hotel Mariott, abriu portas em plenos Campos Elíseos, em Paris, e ostentou o título de maior loja de artigos de viagem do mundo. A marca mantém a sua presença na célebre avenida, agora no número 101, com uma grande loja num prédio Art Déco.
A expansão do negócio seguiu ao ritmo da invenção de novos modelos, tendência que manteve até 1936, quando também ele morreu, aos 79 anos. Era agora a vez do seu filho mais velho, Gaston, neto do fundador, assumir os destinos do emblema. As décadas que se seguiram incluíram momentos de luzes e algumas sombras, como a relação estreita com o governo de Vichy durante a ocupação da França, uma fase que permaneceu discretamente abordada até à publicação da obra de 2004 “Une Saga Française”, da historiadora Stephanie Bonvicini. Já na plena era do jet set, com a chegada dos anos 50 e 60, aterrar num aeroporto acompanhado de uma Vuitton podia perfeitamente ser o cúmulo do chique. De Catherine Deneuve a Anna Magnani, passando por Audrey Hepburn, as estrelas não dispensavam a sua bagagem exclusiva.
De resto, as carteiras de mão só bastante depois da morte de Louis se tornariam um ponto de destaque, já para não falar das linhas de roupa, ainda mais recentes. Foi preciso esperar até 1930 para assistir ao nascimento da Keepal, um grande formato com pega, seguindo-se, em 1932, a hoje mais do icónica Speedy, uma versão em ponto pequeno, para ser usada no dia a dia.
De 1945 ao novo milénio, a coleção de artigos ganhou diferentes categorias e acessórios. Em 1970, com a morte de Gaston Vuitton, a liderança da empresa passou para as mãos do seu genro Henry Racamier, que manteve a ambição expansionista. Chegados a 1987, uma nova etapa no historial da empresa familiar: a fusão entre a Louis Vuitton, a Moet & Chandon e a Hennessy. Unidas as forças, nascia o conglomerado de luxo LVMH. Em 1997, o designer Marc Jacobs assumia a direção criativa e assinava a primeira linha de pronto-a-vestir Louis Vuitton.