“Haverá um perímetro de segurança à volta do Parlamento Europeu entre as 9h00 e as 19h00.” No dia 9 de maio, manhã cedo, quem ia aceder ao edifício Louise Weiss, a imponente casa do Parlamento Europeu (PE) em Estrasburgo, ladeada por canais do Rio III, um afluente do Reno, recebeu esta mensagem no telemóvel com uma lista de ruas e estações de metro inacessíveis.
A razão era excecional. Comemorava-se o Dia da Europa e a efeméride era aproveitada para encerrar, igualmente, e de forma oficial, a Conferência sobre o Futuro da Europa (CoFoE), depois de, no dia 4 deste mês, o poder legislativo europeu ter aprovado, em plenário, as 49 propostas dos painéis de cidadãos, após um ano de intensos trabalhos.
Depois de feitas as verificações em câmaras de raio-x e de detetores de metais e confirmadas as identidades para as acreditações, membros do PE, centenas de cidadãos, jornalistas, estudantes de escolas locais e de Erasmus misturavam-se, sem restrições, nesse majestoso edifício que é uma espécie de berço da democracia da União Europeia (UE), inspirado nos anfiteatros romanos. É revestido a vidro, “simbolizando uma democracia aberta e transparente”, lê-se na plataforma Europeana, e “o aspeto inacabado do telhado alude à natureza contínua do projeto europeu”, tal como se tem vindo a propalar neste exercício de democracia participativa da CoFoE.
Quase quarenta anos depois da morte de Louise Weiss, a deputada europeia francesa que dá nome ao edifício — e uma incontornável voz na promoção da paz e da democracia, tendo ajudado a salvar milhares de crianças da Alemanha nazi na Segunda Guerra Mundial —, a concidadã Linda Moustakim vestiu-se de cor-de-laranja e, às 12:07, levantou-se de um dos 750 lugares no hemiciclo do PE em França, para dar início à cerimónia de encerramento da CoFoE.
“Quero dar as boas vindas a todos vocês, cidadãos da União Europeia. Participei no painel de cidadãos e no recente plenário europeu e a minha filha Nágis, que está aqui hoje, nasceu durante esta conferência, tal como centenas de recomendações.”
Há precisamente um ano, Linda dava à luz a bebé do dia da Europa. No final da cerimónia, Roberta Metsola, presidente do PE, olharia enternecida para a pequena Nágis, tentando chamar-lhe a atenção com palavras carinhosas. Emmanuel Macron, presente na cerimónia enquanto representante da Presidência do Conselho da União Europeia, agarrar-lhe-ia a mão para brincar. Ao mesmo tempo, o primeiro-ministro português António Costa, convidado de honra deste encerramento da CoFoE, estaria a fazer selfies com alguns cidadãos portugueses.
O retrato de família do futuro da Europa estava emblematicamente anunciado nestes comportamentos: os cidadãos que trabalharam durante um ano têm vontade de que nasça uma nova Europa, menos protocolar, menos burocrática, mais humanizada e solidária, por isso, mais próxima de todos. Resta saber se será possível de concretizar.
49 propostas e cerca de 300 medidas. E agora?
A cerimónia, que teve como preâmbulo uma coreografia de corpos ora imóveis, ora em biodinâmica, feita nos corredores do hemiciclo — a Dança da Europa — foi apresentada por vários cidadãos europeus, anunciando discursos de líderes da UE e dos nove cidadãos que tomaram a palavra. Além das presidentes do PE e da Comissão Europeia (CE), bem como da presidência do Conselho da União Europeia, estiveram presentes Clément Beaune, Secretário de Estado dos Assuntos Europeus de França, Dubravka Suica, vice-presidente da CE e Guy Verhofstadt, coordenador da delegação do PE.
Neste dia da Europa, celebrado entre guerra e o apelo à paz, foram entregues, simbolicamente, as 49 propostas e as trezentas medidas que 800 cidadãos decidiram durante um ano. Os eurodeputados admitiram que as propostas exigem alterações nos tratados e solicitaram à Comissão dos Assuntos Constitucionais que preparasse propostas de reforma dos tratados da UE.
As sugestões seguem depois para deliberação entre o Parlamento Europeu, a Comissão Europeia e Conselho da União Europeia e serão discutidas numa Convenção em setembro, anunciada neste encerramento da CoFoE por Roberta Metsola, de acordo com o artigo 48.º do Tratado da União Europeia, onde se examinará como dar-lhes seguimento — e cada instituição na sua esfera de competência e em conformidade com os tratados. Além disso, o PE compromete-se a “uma fiscalização europeia para saber se realmente as propostas dos cidadãos vão ser levadas a sério”, garante ao OBSERVADOR o deputado Pedro Silva Pereira (PS), vice-presidente do PE (ver caixa).
Nove temas, 49 propostas: alguns exemplos
“As recomendações dos cidadãos e as conclusões da Conferência oferecem-nos um roteiro para evitar que a União Europeia se torne irrelevante ou até desapareça”, disse o eurodeputado Guy Verhofstadt, membro do PE e ex-primeiro ministro belga.
Para o copresidente da delegação da CoFoE — da qual fizerem parte os deputados portugueses Paulo Rangel (PSD), Sandra Pereira (PCP) e Pedro Silva Pereira (PS) —, as propostas permitem abrir novas perspetivas e garantir uma Europa nova, eficaz e mais democrática. “Uma Europa soberana e capaz de agir, como claramente os cidadãos esperam. Na verdade, não há tempo a perder. Temos de honrar os resultados da Conferência e aplicar as suas conclusões o mais rapidamente possível.”
Mas “a concretização das propostas vai sempre depender da vontade política”, alerta o eurodeputado Paulo Rangel. “São de antever resultados na saúde, na defesa e nas alterações climáticas e (…) algumas dependem da revisão dos tratados e justificam uma convenção que pode arrastar-se no tempo.” Contudo, atenta, “há um fio condutor em quase todas as 49 propostas que apela a um funcionamento mais eficaz e rápido da UE. Esse apelo toca os processos de decisão e as maiorias requeridas, podendo reclamar em muitos casos a dita mudança de tratados”.
Já Sandra Pereira nota que se trata da “insistência em propostas – algumas das quais anteriormente rejeitadas – que, a serem concretizadas, representariam um novo aprofundamento das políticas da UE, que são responsáveis pela regressão de direitos, de conquistas sociais e laborais, pelo agravamento das desigualdades sociais dentro de cada país, das assimetrias de desenvolvimento entre países, de relações de domínio e de dependência”.
Algumas propostas apresentadas refletem “problemas reais e justas preocupações, (…) mas acabam por ser inseridas numa lógica de aprofundamento de políticas que, sendo parte do problema, não poderão ser parte da solução – como o mercado único, as políticas comuns ou a união económica e monetária”, acrescenta. Para a eurodeputada comunista, “no plano institucional as propostas são negativas para países como Portugal”, na medida em que reforçariam o poder de países mais hegemónicos, “agravando desequilíbrios já existentes”. E dá exemplos: “o fim da regra da unanimidade” seria negativo, porque esta constitui “uma importante garantia da defesa dos interesses de países como Portugal”. Ou “a atribuição de mais poderes ao Parlamento Europeu, num quadro de usurpação de competências dos Estados num número importante de novas áreas (…), o que significaria um ainda maior esvaziamento do papel dos parlamentos e demais instituições soberanas nacionais”.
O que pensam os cidadãos?
Guy Verhofstadt elogiou o compromisso e o sacrifício dos cidadãos para se dedicarem à CoFoE e acredita que “há uma coerência na sociedade que não sabíamos que existia”. “As pessoas não temem a mudança.”
É para esse aspeto que a Maria João Bernardo chama também a atenção. A portuguesa, que integrou o painel 4 (A UE no mundo/migração), acredita que este exercício de democracia participativa foi importante e que “o futuro da Europa passa por mais exercícios assim, dando lugar a outros”. E vai mais longe: “as pessoas que participaram nos painéis de cidadãos acreditam na Europa. As que não acreditam não quiseram participar.” Apesar da visão cautelosa, Maria João, que, no dia 9 de maio, chegou às 8h30 da manhã ao PE para escutar e comentar previamente, tal como outros embaixadores, as palavras dos nove cidadãos europeus que iriam discursar nesta cerimónia, faz um balanço otimista.
No caminho de regresso a casa, entre um TGV e um voo para Faro, Maria João Bernardo tomou muitas notas, refletiu sobre todo o processo, e partilhou com o OBSERVADOR:
“As pessoas sentem-se longe dos processos de decisão. Por isso espero que as críticas dos decisores às nossas propostas sejam construtivas e não destruam o próprio sentido do processo. Queremos melhorar a democracia, mas para isso é preciso vontade política. Tenho esperança que as instituições saibam trabalhar com respeito pelas propostas dos cidadãos.”
Inês Silva, outra portuguesa que também foi selecionada para embaixadora na CoFoE, atenta numa das inquietações dos cidadãos participantes. “Como não estaremos presentes nesta parte de negociações, a nossa preocupação é que as coisas possam ser interpretadas de diferentes maneiras. Alguns embaixadores já se ofereceram para serem porta-vozes e irem passando informação sobre o que vai sendo decidido.” Para já, há um evento de feedback aos cidadãos marcado para outubro. “Esperamos pelo melhor.”
Por seu lado, Maria Helena Marrana está mais zelosa. “Falta saber se os decisores realmente vão aceitar.” Para ela, uma das medidas mais urgentes é “perceber que os Estados-membros que não estão de acordo com as regras da UE têm de mudar”, referindo-se às preocupações de cumprimento de Estado de Direito de países como a Hungria e a Polónia. “Existe um tratado que respeita a lei, a democracia, os direitos humanos e quem não respeita não pode estar cá dentro.”
Jorge Pazos foi um dos nove cidadãos que tiveram direito a discursar na cerimónia de encerramento da CoFoE. Para ele, este exercício permitiu crescer “como europeus” e, para que isso acontecesse, tiveram de fazer “sacrifícios”, como “pôr dias de férias para poder estar presente nas reuniões, já que foram nove fins-de-semana longe da família”. Ele admite que houve dificuldades, reportando-se ao modelo de democracia participativa a aprimorar, e reconhece, em nome de todos os cidadãos, que “será difícil ligar todas as peças de puzzle (…), o que não vai acontecer de um dia para o outro”. Contudo, os cidadãos confiam que vão conseguir fazê-lo. “Se nós fomos capazes, enquanto cidadãos, de chegar a um consenso, também vocês, políticos, podem e devem fazer o mesmo”, sentencia. “Vocês têm aqui nove assuntos horizontais de um mandato para a Europa”. Por seu lado, a italiana Laura Maria Cinquini, outra cidadã que discursou na cerimónia, chamou a atenção para a conveniência do gatekeeping: de os decisores escolherem agora apenas as propostas que lhes interessam.
Neste embalo, a presidente da Comissão Europeia louvou o modelo da CoFoE, porque “provou que esta forma de democracia funciona”. Ursula von der Leyen promete, inclusive, dar-lhe “mais espaço”, pois “deve tornar-se parte da forma como fazemos política.” “É por isso que vou propor que, no futuro, dêmos aos Painéis de Cidadãos o tempo e os recursos necessários para fazer recomendações antes de apresentarmos propostas legislativas chave. Estou convencida de que a democracia não termina com eleições, conferências ou convenções. Precisa de ser trabalhada, cultivada e melhorada.”
O futuro das propostas em Portugal: mais diálogo social e com os mais jovens
Para o primeiro-ministro português, as principais reivindicações dos cidadãos europeus não necessitarão de alterações nos tratados. “Tem muito a ver com a vida concreta no dia a dia das pessoas: salário mínimo europeu, melhor acesso à habitação, melhor qualidade de transportes, uma cidade mais inclusiva e com menos desigualdades, emergência climática, etc. Tem muito a ver com políticas onde tem sido relativamente fácil haver entendimentos às vezes difíceis”.
Mas António Costa salvaguarda que, “entre os 27 Estados-membros há várias forças políticas e também realidades nacionais distintas” que são um desafio. Já em matéria de reforma institucional, o primeiro-ministro é mais cauteloso, explicando que tem de ficar clara a razão de mudança dos tratados. “Falamos de pequenos arranjos institucionais, ou de um desenho mais vasto da arquitetura europeia, como falado pelo presidente Macron nesta conferência? Como a necessidade de responder com urgência a países que querem fazer parte da nossa família, bem como a Ucrânia… Ou países que estão há anos à espera de negociar adesões (…) e, quem sabe, países que saíram da União Europeia poderem regressar. É um tema mais interessante para uma convenção.”
Costa promete dar seguimento às propostas dos cidadãos, estreitando o diálogo com os portugueses que participaram na CoFoE, para “ouvir de viva-voz, detalhadamente, a opinião deles”. “O relatório final da CoFoE é também o resultado da confrontação de cidadãos dos mais diversos países. E seguramente não coincidiram em tudo. Gostava de saber o que defendem os cidadãos portugueses em particular.”
No dia 7 de maio, na Fundação de Serralves, no âmbito do encerramento da CoFoE, afirmou que a revisão dos tratados era uma das medidas que estava em cima da mesa, mas que há ações concretas, imediatas, que devem ser feitas já. Quais são? Por exemplo, aquelas que dizem respeito ao reforço do Pilar Europeu dos Direitos Sociais, que levam mais longe as conclusões da Cimeira Social do Porto, durante a Presidência Portuguesa no Conselho da União Europeia e que têm que ver com questões como o salário mínimo europeu, subsídio de desemprego a nível europeu e outras políticas sociais que implicam um investimento no combate à pobreza e às desigualdades, à pobreza infantil de um modo particular e que resultam da exigência dos cidadãos. E há outras que também exigem uma resposta imediata, que têm que ver com a autonomia energética da União Europeia e que estão à vista em resultado da crise da invasão da Ucrânia pela Rússia. E aqui implica uma resposta imediata. Estão também em cima da mesa, a propósito das negociações sobre o sexto pacote de sanções à Rússia, que é também uma estratégia de promoção da segurança e da autonomia energética da UE.
Pedro Silva Pereira: "Há ações que exigem uma resposta imediata"
Em certa medida, um exemplo dessa abertura, sobretudo na intenção de abrir espaço para que os mais jovens tomem a palavra no espaço público e nas tomadas de decisão, foi o evento de encerramento nacional da CoFoE, na tarde do dia 7 de maio, na Fundação de Serralves, que contou também com a presença do primeiro-ministro. Durante cerca de uma hora, António Costa respondeu a questões diretas de jovens do ensino secundário sobre saúde mental, reformas na educação, a guerra na Ucrânia, diminuição da idade de voto, ação climática e mais energia limpa. E ouviu de um jovem que a “humanidade está a falhar no Ano da juventude, já marcado pela guerra”.
Nesse evento, Rui Oliveira, presidente do Conselho Nacional da Juventude, advogou que os jovens querem ser parte da resposta, que estão disponíveis para ser cooperantes e co-construir uma Europa de futuro, para “conseguir que os nossos cidadãos sejam felizes”.
O Observador viajou para Estrasburgo a convite do Parlamento Europeu.