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DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

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Gerd Leonhard: "O Facebook foi desenhado para ser um vício e isso devia ser ilegal"

Músico, pensador, visionário da era digital e autor do livro "Tecnologia Vs Humanidade", Gerd Leonhard explica ao Observador porque é que as pessoas mais sozinhas do mundo estão nas redes sociais.

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“O Facebook foi desenhado para ser um vício”, “as pessoas mais sozinhas do mundo estão nas redes sociais” e “a Internet tem tido por base uma premissa errada desde sempre”: a de que estaríamos dispostos a vender as nossas informações. O cenário do presente parece destrutivo, mas não vá ao engano nesta entrevista. Gerd Leonhard, pensador, visionário e futurólogo da era digital, acredita que, no futuro, 95% das mudanças provocadas pela tecnologia serão positivas, mas que é preciso certificarmo-nos de que não desumanizamos. O que quer isto dizer? Que temos de proteger o que nos distingue das máquinas e de criar uma espécie de conselho mundial que trace as fronteiras àquilo que os computadores poderão ou não fazer.

Em entrevista ao Observador, antes de ter passado pelo evento Building The Future, promovido pela Microsoft Portugal, o autor dos livros “Tecnologia versus Humanidade” e “O Futuro da Música” explicou porque é que a tecnologia é uma droga e deve ser tratada como qualquer outra droga — o café, o tabaco ou o álcool –, porque quando começas a fazer muito uma coisa que é boa, ela rapidamente se torna numa coisa muito má. Com formação em teologia e ciências sociais, Gerd Leonhard começou a carreira na música e hoje é presidente executivo da The Futures Agency, organização suíça que ajuda a descobrir, compreender e a criar o melhor futuro para os seus clientes.

“Em 50 anos, podemos definitivamente viver noutro planeta e teremos máquinas que pensarão por si e a tecnologia, que costumava estar fora [de nós] como num carro ou num computador, agora vai estar dentro. E por isso pode mudar a forma como pensamos. Todas estas diferenças significam que [a tecnologia] é uma curva que se desenrola assim, muito devagar, e depois sobe rapidamente. E neste momento estamos apenas na partida”, afirmou.

“Tecnologia Vs Humanidade”, de Gerd Leonhard (Gradiva)

“A Internet tem tido por base uma premissa errada desde sempre: a de que iríamos vender a nossa informação”

Escreve que é muito pouco provável que o futuro seja uma extensão do presente. Porquê?
Sim, é. Desde há muito tempo que há regras e leis que funcionam: não podias ser um super-humano, por exemplo, não podias viajar até à Lua, não podias fazer nenhuma destas coisas porque não havia tecnologia. E começámos por morrer, enquanto humanos, primeiro aos 35 anos, depois aos 50, depois aos 80 e, em 20 anos, podemos muito provavelmente viver até aos 120 ou 150 anos. Por isso, muitas destas regras foram sujeitas a problemas científicos e estão a ser mudadas. Em 30 anos, por exemplo, vamos poder combater o cancro com engenharia genética. Em 50 anos, podemos definitivamente viver noutro planeta e teremos máquinas que pensarão por si e a tecnologia, que costumava estar fora [de nós] como num carro ou num computador, agora vai estar dentro. E por isso pode mudar a forma como pensamos. Todas estas diferenças significam que [a tecnologia] é uma curva que se desenrola assim, muito devagar, e depois sobe rapidamente. E neste momento estamos apenas na partida.

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A ficção científica deixou de ser ficção científica?
A ficção científica ainda é ficção científica, mas muitas coisas que pensámos que nunca iriam acontecer de facto acontecem. Os carros autónomos, os táxis voadores, a energia solar que daqui a 15 anos vai ser a solução a 100% para as nossas necessidades energéticas. Daqui a 15 anos não vamos precisar mais de petróleo e tudo isto era ficção científica há 20 anos. Acho que vai correr tudo bem, mas vamos precisar de um governo de supervisão para organizar esta transição, porque está a mudar tudo: o mercado de trabalho, o emprego, a segurança social, a privacidade. Está tudo a mudar e o Governo vai ter de ser muito bom a assegurar que tudo isto vai correr bem.

Mas tudo isto nos chega com uma série de desafios como a perda de privacidade, a desqualificação humana, etc. Como vamos resolvê-los?
Em primeiro lugar, 95% destas mudanças são positivas, mas por causa de todo o processo de mudança é preciso certificarmo-nos de que nos mantemos num mundo humano. O maior problema é o da desumanização. Se perderes privacidade e o Governo poder procurar toda a informação que existe sobre ti, como o Facebook faz (e que é o problema que temos agora), isto torna-se desumanizante. Faz com que mudes o teu comportamento porque te queres enquadrar e desta forma paras de fazer as coisas que fazem de ti humano, como erros ou excessos. Usamos computadores para termos encontros de cariz romântico, para encomendarmos coisas, para gerirmos o nosso dinheiro, tudo isto é desumanizante. Por isso, o que é preciso é assegurarmo-nos de que protegemos as coisas que fazem de nós humanos e que são completamente diferentes das máquinas.

"Temos de ensinar as nossas crianças a serem mais humanas em vez de melhores a tecnologia. A tecnologia é sempre boa, não há dúvidas sobre isso, mas em 10, 15 ou 20 anos não vamos precisar de pessoas que programem, porque os computadores vão ser capazes de o fazer."

E como podemos fazer isso?
Usando a tecnologia onde podemos tornar a vida melhor, com regras e distribuindo os benefícios tecnológicos por toda a gente. Por exemplo, com a Internet das Coisas podemos tentar ligar a cidade, torná-la inteligente e fazer com que o retorno disto não vá apenas para as empresas de carros ou de transportes públicos, como o metro. Também deveria ir para as pessoas que mais precisam dele. Isto é uma questão de de vontade política. Atualmente, os lucros vão para as pessoas que gerem o sistema e isso não faz muito pelas pessoas.

Tendo em conta os desafios relacionados com a privacidade, está familiarizado com o RGPD, a regulamentação europeia para a proteção de dados?
Sim, claro.

É a melhor solução?
Acho que o RGPD traz dores a muitas pessoas, mas é um passo que é dado na direção certa. A Internet tem tido por base uma premissa errada desde sempre: que iríamos todos vender a nossa informação e, em troca, teríamos estes serviços e nunca seríamos hostilizados. Por isso, ter esta alternativa e pedir a permissão às pessoas é, em princípio, melhor.

Mas o que podemos fazer mais?
Precisamos de usar as tecnologias que temos para criar um mundo melhor para toda a gente que vive nele. O turismo é um bom exemplo. Muitas pessoas visitam Lisboa porque é uma cidade que se manteve ao longo do tempo tradicional e real, mas com os milhões de turistas que tem corre o risco de perder estas características. E, por isso, é preciso tirar algum dinheiro às pessoas que viajam até Lisboa. E é preciso alguém decidir sobre isto, não se trata apenas de capitalismo. Podes ver o que acontece com a cultura do comércio em Bali ou na costa espanhola, onde vendem tudo apenas porque percebem que resulta. Fazem dinheiro, mas destroem tudo o que têm. Para os governos sábios, isto significa que às vezes é preciso criar incentivos que não funcionam apenas a nível financeiro. Na educação, por exemplo, temos de ensinar as nossas crianças a serem mais humanas em vez de melhores em tecnologia. A tecnologia é sempre boa, não há dúvidas sobre isso, mas em 10, 15 ou 20 anos, não vamos precisar de pessoas que programem, porque os computadores vão ser capazes de o fazer.

"Inventámos as armas nucleares, mas depois decidimos que era má ideia toda a gente ter uma bomba destas e fizemos acordos nucleares. Precisamos do mesmo para a inteligência artificial, para os super computadores, para a engenharia genética. E é muito difícil para os políticos entenderem estes assuntos."

“Pensámos que as redes sociais seriam o nosso grande salvador, mas são apenas uma máquina”

No futuro, o que vai significar ser humano?
Acho que há muitas coisas que os computadores não conseguem fazer e que não vão ser capazes de fazer durante muito tempo. Talvez daqui a 50 ou 100 anos ainda não o sejam. Os computadores assimilam muitas coisas, mas não são capazes de fazer coisas que são muito simples para os humanos. Diria que os computadores são binários, trabalham com código e que os humanos são multinários. Os computadores são muito rígidos e conseguem resolver problemas muito grandes, mas os humanos sentem coisas ou compreendem-nas de forma instantânea. E isto é muito difícil para as máquinas. Por isso, para protegermos estas coisas, precisamos de mantê-las no sítio certo e  de manter os humanos a trabalhar, mesmo que seja mais económico ter uma máquina a fazer o seu trabalho.

E vamos ter a vontade política necessária para que isso aconteça?
Acho que temos, porque, no final das contas, uma sociedade que for apenas uma máquina gigante será muito infeliz e o desemprego é um dos maiores motores de conflito nas sociedades. Encontrar um bom equilíbrio não vai ser fácil. Os cientistas têm estado a puxar pela inovação, a estudar a engenharia genética, a mudar o genoma, querem criar um bebé que não tenha cancro no futuro, como já aconteceu na China… Mas ainda não sabemos quais são os efeitos secundários de tudo isto e vamos precisar de muita sabedoria para descobri-los. Não podemos dizer apenas “sim” ou apenas “não”, vamos ter de descobrir qual é o caminho certo para fazermos estas experiências e percebermos quais são os limites. Como por exemplo: criar super-humanos.

E quem é que poderá legislar e decidir sobre estas matérias? Não deveria existir uma entidade internacional para isto?
Temos as Nações Unidas, que têm feito algum trabalho. Acho que cada país pode ter um conselho de pessoas sábias, que compreendem estes assuntos e que não sejam necessariamente políticos. E que a Europa pode ter outro conselho acima do dos países e que o mundo pode ter outro, que se tornaria numa espécie de conselho mundial que nos diria o que não deveríamos fazer. Por exemplo, inventámos as armas nucleares, mas depois decidimos que era má ideia toda a gente ter uma bomba destas e fizemos acordos nucleares. Precisamos do mesmo para a inteligência artificial, para os super computadores, para a engenharia genética. E é muito difícil para os políticos entenderem estes assuntos.

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Sobre a inteligência artificial, diz que é expectável que cresça duas vezes mais depressa do que as outras tecnologias.
Há muitas coisas sobre inteligência artificial que as pessoas estão a confundir. Muito do que vemos hoje é apenas assistência inteligente, como os carros autónomos: não são inteligentes como eu ou tu, são basicamente uma máquina de assistência. Não podes pura e simplesmente pegar no carro e esperar que te leve até Paris. Não é assim tão inteligente, é basicamente um computador que te ajuda. Muito do que utilizamos hoje, o Google, o Gmail ou o Slack também é inteligente. Mas assim que tivermos computadores maiores a tentar todas estas coisas daqui a cinco anos com uma ligação à Internet 5G, teremos máquinas com poder ilimitado, informação ilimitada e bateria ilimitada.

E como será esse mundo?
Será o mundo no qual podes pedir às máquinas que te façam praticamente tudo aquilo que as pessoas são capazes de fazer hoje. Podes perguntar-lhes como é o tratamento para um cancro em específico e, muito provavelmente, vão saber a resposta melhor do que a maioria dos médicos, em cinco, sete ou 10 anos. Porque terão uma base com triliões de dados a fazer, em tempo real, experiências na cloud com os teus genes, que depois te dirão o que acontece em cada tratamento. Hoje, os computadores não conseguem fazer isso, porque não têm energia suficiente.

Estamos a construir os nossos próprios deuses?
Podem ser deuses ou podem ser diabos. Vamos pôr a questão desta forma: provavelmente é bom que tenhamos este poder, mas precisamos de encontrar uma forma de o controlar. E temos de concordar sobre o que podemos e o que não podemos fazer. Como por exemplo: controlar a população, isso não é uma coisa que devemos deixar sobre responsabilidade das máquinas. Estamos a ficar muito preguiçosos… Muitos de nós dizem “deixa a máquina fazer isso” e a máquina toma conta do meu dinheiro, do que leio, do que escrevo. E isso pode ser potencialmente muito perigoso.

A tecnologia cresce exponencialmente enquanto os seres humanos se mantém praticamente iguais. O que podemos fazer para nos acelerarmos?
Precisamos de uma agência que nos proteja e que diga: sim, os humanos são lentos, de uma forma geral, e podem cometer erros, mas se removermos todas as coisas que são humanas, então tornamo-nos nas máquinas. Se nunca cometermos um erro, fizermos coisas erradas, nunca mentirmos, torna-se tudo muito aborrecido. Precisamos de proteger estas coisas dizendo: “Ok, deve ser ilegal fazer certas coisas, como exigir a uma pessoa que use um capacete de realidade virtual para trabalhar, porque isso fará com que aumente a produtividade. Precisamos de traçar algumas fronteiras e de proteger as coisas mais desajeitadas. Mas é um trabalho complicado porque, no final, trata-se tudo de crescimento e de lucros.

Quais são as coisas mais importantes que deveríamos estar a fazer agora para nos protegermos?
Acho que devíamos parar de procurar que seja a indústria ou as empresas científicas a definirem o nosso futuro, porque elas vão definir o futuro que fizer mais dinheiro. Precisamos que os governos e os políticos se envolvam e participem no debate defendendo o ponto de vista do humano, porque é esse o seu trabalho. O trabalho dos negócios é fazer dinheiro e por isso, se nos puderem transformar em clips para fazerem dinheiro é isso que vão fazer. Trata-se apenas de lucro. Precisamos de ter mais debate, mais consciência, mais responsabilidade. Pelo que podemos ver agora, as redes sociais fizeram isto tudo de forma errada. Pensámos que seriam o nosso grande salvador, mas afinal revelaram ser apenas máquinas.

Máquinas com vários escândalos no último ano. 
Sim, como o que aconteceu com o Facebook e noutras redes também. As redes sociais são praticamente governadas por máquinas, sabes? E um meio de comunicação sem um humano não é um meio de comunicação, é um algoritmo.

"A tecnologia é uma droga e acontece o que acontece com qualquer outra droga, como o café, o tabaco, o álcool, o que seja: há um contrato social com regras e em algumas situações as coisas correm mal, mas conseguimos gerir."

E é por isso que estamos com tantos problemas?
Sim, penso que em última instância a pergunta é: “O que é que faz os humanos felizes?”. E a felicidade não é um algoritmo ou uma fórmula. É algo que está cá dentro [aponta para o peito], não está lá fora. Por isso, é muito difícil para os humanos entenderem o que é a conveniência e que nem sempre é uma coisa boa. E [as redes sociais] estão naturalmente inclinadas para serem convenientes. E por isso os governos têm de nos proteger disto e de outras coisas.

“O Facebook foi desenhado para ser um vício e isso devia ser ilegal”

Escreve no seu livro que estamos numa espécie de delírio da lua de mel que é o progresso tecnológico, mas que nos devemos recordar da ressaca que tudo isto tem: o preço que vamos ter de pagar amanhã e para sempre. Acha que estamos numa relação tóxica com a tecnologia?
Alguns de nós estão. A tecnologia é uma droga e acontece o que acontece com qualquer outra droga, como o café, o tabaco, o álcool, o que seja: há um contrato social com regras e em algumas situações as coisas correm mal, mas conseguimos gerir. A maioria das pessoas não é alcoólica, apesar de poderem comprar cerveja e vinho. Passa-se o mesmo com a tecnologia. Temos de ter uma posição que diga que podemos fazer algumas coisas, mas que se calhar não é bom começarmos a fazer amor com um robô, por exemplo. E achamos que isso é normal, mas não achamos normal beber uma garrafa de brandy ao pequeno-almoço. Temos de encontrar um compromisso que nos mantenha protegidos, mas que não seja demasiado rígido. É como a legalização da marijuana, provavelmente é uma coisa boa, mas será mau se começarmos a distribuir marijuana às crianças nas escolas. E tudo isto também é verdade para a tecnologia. Quando fazes muito uma coisa boa, ela torna-se numa coisa má.

Tudo isto está relacionado com o conceito de obesidade digital de que fala no livro. 
Costumamos pensar que quanto mais ligados estivermos, melhor é para nós. Por isso, se fores para África e as  pessoas não tiverem Internet, vais perceber que querem ter Internet porque é uma coisa boa, mas quando a temos em demasia, queremos fugir dela e vamos pagar mais dinheiro para não estarmos conectados. Porque quando fazes muito de uma coisa que não se enquadra na natureza humana — como estares demasiado conectado, com demasiados amigos, demasiadas mensagens, demasiadas notificações — distraímo-nos, ficamos stressados com as redes sociais. Há muitas pessoas que se matam por causa delas. As pessoas mais sozinhas do mundo estão nas redes sociais. Na verdade, nós conseguimos o oposto do sobreconectado quando nos conectamos em demasia.

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Como é que podemos fazer uma dieta mais saudável nas redes sociais? Porque consumimos muito lixo, não consumimos?
Como fazemos com a comida. É a mesma coisa. A indústria alimentar percebeu que no Brasil, por exemplo, há muitos sítios com pessoas obesas porque a indústria alimentar as está a alimentar com produtos que fazem muito dinheiro, mas que não são saudáveis. No Brasil, 61% da população é obesa, tal como nos Estados Unidos. A solução passa por termos um contrato social que diga “não comam isto, porque isto faz-vos mal” e que tenha uma lei a proibir que um KFC esteja próximo de uma escola, por exemplo. Precisamos do mesmo para a tecnologia. Não devíamos permitir que as crianças de 4 anos brinquem com um iPad num avião. É muito má ideia.

As nossas crianças estão a ser expostas à tecnologia muito mais cedo do que deviam?
Depende muito da criança e depende muito do contexto. Mas, falando de uma forma geral, precisamos de manter as crianças a experimentar e a brincar e isso é muito diferente de usar tecnologia. O que nós obtemos da tecnologia é consumo. Muitas destas crianças que vemos hoje nos aviões a brincar com iPads, chegam à praia e acham aborrecido brincar com a areia. Porque a praia não tem iPad. E acho que ainda estamos no início disto tudo. Quanto tivermos mais realidade aumentada e virtual, vamos poder fugir. Vamos poder mesmo fugir. Agora, quando estamos no telemóvel, estamos apenas no telemóvel, mas quando formos para dentro do mundo da realidade virtual, que está apenas a três ou quatro anos de distância, podemos trabalhar em realidade virtual e viver num mundo de sonho, que é muito difícil de os humanos compreenderem.

Mas isto vai fazer com que fiquemos ainda mais solitários, não vai?
Sim. E por isso precisamos de regras que determinem durante quanto tempo podemos trabalhar num cenário de realidade virtual. Temos de decidir o que é mais saudável para nós e como nos podemos proteger.

Como podemos proteger todas as coisas que fazem de nós humanos, como a empatia, o senso comum, a capacidade de sentir dor ou amor? Ou acha que os computadores também vão poder ter isto tudo?
Muitas dessas coisas têm a ver com consciência e espiritualidade e esse tipo de coisas não são necessariamente fáceis de descrever. O que temos de fazer é ensinar as nossas crianças de que isto de experimentar coisas é importante, sem tirarmos conclusões muito depressa. É uma questão de treino. É um treino humanístico decidir passar o tempo a criar uma história em vez de fazer alguma coisa no iPad. Deixar espaço para estas coisas é importante, encontrando uma forma de as incorporar nas proporções corretas. Conseguimos fazer as duas coisas. Acho que, de muitas formas, daqui a 10 anos alguns de nós serão os últimos a saber o que significa verdadeiramente estar offline. Muito provavelmente, um adolescente de 15 anos sabe o que é, mas não se lembra de alguma vez ter estado fora da Internet. E isto é muito importante, porque não somos construídos como se fossemos uma máquina que consegue sempre aglomerar mais dados.

Diz no seu livro que tudo isto é uma espécie de inferno/paraíso, que nos está a conduzir a uma sociedade distópica. Porquê?
Sou mais otimista e acho que muitas coisas são mesmo um paraíso. Se conseguirmos erradicar doenças, vencer as limitações do mundo com a agricultura vertical, etc, tudo isso é o paraíso. Mas será também um inferno se não pudermos fazer nada, não tivermos recursos, tivermos os computadores a fazerem tudo por nós, a tomar todas as decisões e tivermos de mudar o nosso comportamento porque alguém nos está a vigiar, não estivermos a controlar as nossas vidas ou perdermos o livre arbítrio. Por exemplo, conduzir é um exercício de livre arbítrio, porque decides onde queres ir. Não me importo de deixarmos o carro [para passarmos a ter carros autónomos], mas acho que se dermos muito controlo à tecnologia, vamos perdendo gradualmente este livre arbítrio.

Há-de chegar o dia em que já nem sabemos ler um mapa, porque temos o Google Maps, e isto é uma coisa muito pequenina mas de repente torna-se grande. O cérebro é muito plástico. Quando o cérebro se desabitua de usar algumas das suas partes, começa a esquecê-las e aí a máquina entra e faz a sua parte. Se isto passar a acontecer com muita coisa, tornamo-nos altamente dependentes. No dia em que acordarmos e não conseguirmos funcionar sem estarmos ligados, estamos em grandes problemas.

Devia ser obrigatório fazermos um detox de tecnologia volta e meia?
Primeiro, temos de nos certificar que estes aparelhos não são desenhados para criar vícios. O Facebook foi desenhado para ser um vício e isso devia ser ilegal. Devemos desenhar estes aparelhos para uma boa utilização, como a Apple faz, mas até a própria Apple diz que isto pode ser aditivo e que precisamos de ter cuidado. É por isso que os novos iPhone da Apple vêm com um sistema que te avisa quando estás a utilizá-los em demasia. E isto devia ser um procedimento padrão em toda a tecnologia.

"Agora, a tecnologia ainda é muito lenta, sabes que é maravilhosa, mas daqui a 10 anos, não vai haver limites para o que podemos fazer. Vai ser literalmente ilimitada. Vais poder imprimir as tuas calças de ganga e fazer todas as coisas que hoje ainda parecem ser ficção científica."

Nesta era digital, como nos tornamos melhores gestores da nossa própria humanidade?
Antes de mais, acho que é encontrando o que é mesmo muito importante para nós, definir o que queremos ser. Porque, agora, a tecnologia ainda é muito lenta, sabes que é maravilhosa, mas daqui a 10 anos, não vai haver limites para o que podemos fazer. Vai ser literalmente ilimitada. Vais poder imprimir as tuas calças de ganga e fazer todas as coisas que hoje ainda parecem ser ficção científica. E vamos ter de nos perguntar: queremos ser humanos ou queremos ser máquinas?

E essa escolha vai ser individual?
Acho que não vai ser completamente individual, porque vai ser uma espécie de corrida e as pessoas que não forem assim tão humanas vão ser mais rápidas. Por exemplo, se usares realidade virtual para trabalhar, vais trabalhar 100 vezes mais rápido e a outra pessoa que está a fazer a mesma coisa sem recorrer à realidade virtual vai trabalhar como trabalha agora. Precisamos de fazer acordos sobre este este tipo de coisas, sobre quem queremos ser, mas a um nível global.

Acha que vai ser fácil chegar a um entendimento global sobre isto?
A um nível básico, acho que sim. Por exemplo, os robôs capazes de matar pessoas… A maioria dos países concorda que não devemos ter drones que possam decidir sozinhos se podem matar alguém porque disse algo estranho no Twitter, por exemplo. Também vamos ter de ter algum controlo sobre a engenharia genética e decidir sobre algumas coisas. É nas pequenas coisas que temos mais dificuldades.

É por isto que tem esta convicção tão forte de que não podemos depender das startups de Silicon Valley?
O problema é que quando desenhas coisas pelo dinheiro, tudo o resto se torna menos importante. E isto sobretudo nos Estados Unidos. Tudo é desenhado para criar lucro. E quando fazes isso caminhas virtualmente sobre pessoas mortas, porque o sistema não é capaz de cuidar de coisas que não sejam relevantes para o sistema. E é este o problema. Enquanto quisermos apenas criar cada vez mais lucros e cliques, só estamos a ir numa direção, que é para fora do penhasco. Por isso, todos vamos ter de dizer que é importante permanecermos humanos, porque não podes fazer negócios num mundo morto, no qual toda a gente está morta. Não é um argumento muito bom achar que devemos ir todos numa só direção.

"Podem existir empresas e cientistas que basicamente dizem que a felicidade pode ser programada e que podes viver num mundo completamente pré-decidido e programado para que não tenhas preocupações, mas deixaremos de ser humanos."

“Daqui a 10 anos o negócio da música estará de volta aos 50 mil milhões”

Vai chegar o dia em que a felicidade humana vai depender unicamente da tecnologia? Não vamos saber ser felizes sem ela?
Acho que depende. Podem existir empresas e cientistas que basicamente dizem que a felicidade pode ser programada e que podes viver num mundo completamente pré-decidido e programado para que não tenhas preocupações, mas deixaremos de ser humanos. Temos muitos filmes sobre isto, não temos? Mas acho que 99,9% das pessoas percebe quando [a felicidade] não é real. As pessoas percebem a diferença. E acho que é isso que evita com que andemos nessa direção.

Tem um perfil muito interessante, vem da área da música. Como é que chegou a este ponto em que reflete sobre o nosso futuro?
Não foi propriamente um acidente. Fui sempre muito interessado pelas novidades tecnológicas. Fui um empreendedor na área da música digital, lancei uma empresa parecida com o que é hoje o Spotify, mas nos anos 1990, o que foi muito cedo. Mas logo aí percebi que era muito bom a perceber aquilo que seria o futuro e não tanto em fazer negócio a partir daí. Percebi que era bom a observar o que seria o futuro mas estava uns 10 ou 15 anos antes do que o que era suposto e acho que agora já só estou uns três ou cinco anos. O futuro apanhou-me. E depois escrevi o meu primeiro livro “O Futuro da Música”, que era uma coisa muito óbvia. Tudo nesse livro é óbvio, aconteceu tudo o que escrevi no livro. Acho que tudo isto me levou a ser um futurista. Acho que sou simplesmente bom a prever coisas complexas.

E qual é o futuro da música hoje?
Bom, é maravilhoso. Passámos pelo Vale da Morte, sabes, quando nada parecia estar a funcionar e ninguém comprava discos. E hoje o Spotify tem 100 milhões de subscritores, por isso, acho que daqui a 10 anos o negócio da música estará de volta aos 50 mil milhões. Mas já não através das editoras. E isso é bom.

Com mais empresas digitais?
Sim, o futuro da música vai acontecer nas plataformas digitais. Falando enquanto músico, sei que vai ser sempre difícil ganhares a vida assim e por isso temos de perceber o que é que vai permanecer como desafio chave. Temos o Youtube agora, mas só há 15 milhões no YouTube. Por isso, é bom e é mau para o negócio, mas acho que vai ser cada vez mais interessante, desta vez sem os monopólios que tivemos durante muito tempo.

Acabou-se essa era. 
Sim, acabou de várias formas, as editoras já não são tão relevantes. Ficam com os direitos do que já fizeram, mas será que as pessoas vão ouvir Michael Jackson daqui a 20 anos? Duvido disso. Acho que hoje as editoras são as plataformas como o Spotify e outras. Consegues ver que houve outras mudanças para o digital noutras áreas. Mas a música é muito especial, porque não requer um formato físico, como requerem os transportes, por exemplo.

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