910kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

i

A escritora Gisela Casimiro nasceu na Guiné-Bissau em 1984

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

A escritora Gisela Casimiro nasceu na Guiné-Bissau em 1984

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Gisela Casimiro: "A escrita é uma questão de classe. Não produz conteúdo artístico quem está preocupada em comer amanhã"

"Estendais" é livro de crónicas, baú de memórias, biblioteca de emoções e elogio à beleza do mundano. Não é só raça nem é só género — na escrita de Gisela Casimiro cabe o mundo.

Há três anos, no bairro lisboeta da Estrela, um homem foi detido por estar a colar cartazes com um poema. “Quando for grande quero ser polícia/ para bater nos pais de outros meninos em frente aos outros meninos”, lia-se nos primeiros versos. “Nunca dês bastonadas a um preto/ senão vão achar que és racista. Se deres bastonadas a um branco estás apenas a ser polícia”. Quando for grande, de Gisela Casimiro, foi o poema que motivou um processo judicial, que acabou arquivado, não sem antes abrir um importante debate sobre o racismo nas forças policiais e a liberdade de expressão e artística — debate que se repetiria este ano a propósito de um cartoon.

Gisela tem bem presente o episódio. Ainda se lembra de quem lhe disse como era ridículo, como o processo “não ia dar em nada”, como seria só mais uma polémica perdida na espuma dos dias. “Faz-me pensar, ironicamente, como seria se fosse o poema de uma pessoa branca a ser censurada. Se isso não teria sido levado mais a sério, se ainda continuaria a ser ridículo, se as pessoas teriam encolhido os ombros, se não teriam dado importância.”

Aos 39 anos, a escritora, poeta e dramaturga tem dois livros de poesia: Erosão (2018) e Giz (2023), ambos publicados pela editora Urutau. É autora do texto e dramaturgia de Casa com Árvores Dentro, espetáculo encenado por Cláudia Semedo e estreado no Teatro Municipal Amélia Rey Colaço, e deu apoio à dramaturgia do espetáculo Blackface, de Marco Mendonça, que este ano esteve em cena no Teatro do Bairro Alto, em Lisboa.

Gisela Casimiro nasceu na Guiné-Bissau em 1984, ano da publicação original de Irmã Marginal (Sister Outside, no original), que, quase quarenta anos depois, chega finalmente a Portugal. Coube à escritora traduzir as palavras da norte-americana Audre Lorde (1934-1992), figura maior do feminismo negro.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

“A sua caneta pode ser uma navalha ou uma folha que suavemente passeia junto ao vento”, resumiu o músico brasileiro Emicida no prefácio de Giz. De facto, os escritos de Gisela Casimiro podem ser lidos, por vezes, como manifestos de justiça, mas ultrapassam as questões de raça e género. Como se prova em Estendais (Caminho), livro de crónicas que publicou em abril, onde os temas da identidade, da linguagem, da pertença, do corpo, da violência, da guerra, do amor, da família e da condição social surgem atravessados por um humor inesperado. Ou não falasse Gisela “a erudita e especialíssima língua dos apanhados TVI e RTP Porto, uma língua que, se mais pessoas falassem, certamente seriam mais felizes”.

Em entrevista ao Observador, a escritora fala do primeiro contacto com as palavras, da romantização da figura do escritor, da precariedade, da cultura do cancelamento, dos livros que aí vêm.

Gisela Casimiro escreveu dois livros de poesia, "Erosão" e "Giz", antes de se aventurar na não-ficção

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Em Erosão (ed. Urutau, 2018) escreve que “o poema é um campo de batalha”. A poesia pode ser um espaço de denúncia e confronto?
A minha poesia é, ou tento que seja, um espaço de reflexão, como antes também foi a poesia de muitas outras pessoas. Muito do que está nas nossas ruas também é uma forma de poesia, de consciencialização. Tenho fotografado algumas coisas para um livro que estou a terminar. Tenho uma coleção que dura há alguns anos de coisas que estão nas paredes da cidade e que vão desaparecendo. Agora recentemente, aqui perto, na [avenida] General Roçadas, ali na [rua] Heliodoro Salgado, ou na rua da Penha de França vi a mesma frase que diz: “Danijoy Pontes foi morto pelo Estado português”. Escrevi sobre isso, como muitas pessoas também se foram manifestando e ajudando a trazer a atenção para esse caso, mas é importante pensar que em paralelo com aquilo que estou a fazer na escrita, nos livros, também há pessoas que o estão a fazer na rua, onde toda a gente vê e onde se chega de uma forma mais democrática, mesmo que seja temporário, mesmo que saibamos que isso vai ser apagado eventualmente. Há muitas coisas que fotografei que já não estão em lado nenhum, mas as mensagens estão aí.

A fotografia, como a escrita, eterniza?
Eterniza, mas, às vezes, mesmo aquilo que é eternizado pode ser esquecido. Acho importante reforçar certas mensagens e reforçar que essas lutas ainda não estão terminadas. É importante lembrar que a situação não se resolve porque deixou de ser falada nos meios de comunicação social. Os dias daquelas pessoas, na verdade, são afetados para sempre. A Cláudia Simões continua a ser afetada pelo que lhe aconteceu. A mãe do Danijoy Pontes vai continuar a ser afetada pelo que lhe aconteceu a ela e ao seu filho, a toda a família. A rua é isso, é de todos, ou deveria ser. No fundo, também foi um bocado isso que quis fazer quando pus o cartaz [com o poema Quando for grande em 2020] na rua para chegar às pessoas e perceber de que forma é que elas, ao longo do tempo, se iriam relacionar com aquela mensagem. Não foi possível fazer isso.

Consegue identificar porquê?
Tem a ver com o medo. Penso que existe um grande medo da inversão de papéis, da inversão da norma, da alteração da norma.

Sobre a poesia das ruas, há um caráter efémero no que é escrito na parede, que se desvanece, ou num cartaz, que se arranca. Estamos na Penha de França, uma freguesia em Lisboa onde muitas ruas têm referências coloniais: General Roçadas, Mouzinho de Albuquerque. Nos últimos anos, a toponímia das cidades tem sido muito debatida e no Porto, por exemplo, houve uma grande mobilização para que Gisberta, mulher trans brasileira que foi assassinada em 2006, desse nome a uma rua. Como vê esta urgência de ressignificar o espaço público?
É importante e simbólico o que aconteceu em casos como a Gisberta. Se bem que existe também ali uma questão, no caso da Gisberta, para a qual a investigadora e artista Hilda de Paulo chamou a atenção, que é: mesmo na placa, diz “Gisberta”, diz o seu nome, mas depois tem “Júnior”, que, como nós sabemos, nos Estados Unidos ou no Brasil, é o filho que tem o mesmo nome que o pai. Portanto, quando se mantém esse Júnior no nome de uma mulher trans, estamos a invalidar aquilo que ela lutou para ser. Também temos de ter cuidado, ver como se fazem as coisas. Agora, são casos importantes, são casos fortes. Como a placa, no caso do Alcindo Monteiro, por exemplo. Foi necessário verter-se sangue para aquela placa, não nos iludamos. São coisas que nos marcam muito. Continuamos a falar todos os anos, continuam a acontecer situações semelhantes de violência. Era bom que as placas fossem por reconhecimento, por mérito, por valorização, por celebração da vida dessas pessoas e dos seus conseguimentos e não porque alguém teve que morrer, como no caso da Marielle Franco, como no caso do Bruno Candé.

Era bom que não houvesse uma cota-parte de culpa nestas decisões?
Bom, já tenho medo de usar a palavra cota nestes contextos, mas a verdade é que sim. A culpa é absolutamente inútil. A culpa não nos leva a lado nenhum.

Djamila Ribeiro: “Se o racismo é negado, como é que se enfrenta uma coisa que para muitos não existe?”

A filósofa brasileira Djamila Ribeiro, quando passou por Lisboa, falou precisamente sobre a culpa levar à inação, alertando que é preciso fazer algo depois desse sentimento.
Exatamente. Já a Audre Lorde falava nisso. A questão da toponímia é essa. Estive agora em Luanda e estive a reparar nessa questão, como já tinha reparado em Cabo Verde. Há ruas Amílcar Cabral. Aqui não temos essas referências. Temos outras pessoas aqui que estão vivas e que se calhar mereciam os seus nomes em auditórios, por exemplo. Era bom associar os nomes de pessoas racializadas, negras e outras, pessoas trans, pessoas com deficiência, a momentos de elevação. Porque é isso que inspira. A maior parte das pessoas não fazem ideia de quem são estas pessoas da toponímia portuguesa. Terão aprendido aqui e ali, mas a maior parte das pessoas tem um grande desinteresse. Como o Padrão de Descobrimentos, onde só fui uma única vez, e há pessoas até hoje que nunca foram. O Padrão dos Descobrimentos virou uma coisa para os turistas, mas os portugueses pouco lá vão, pouco sabem o que é que se passa lá, ou o que é que isso quero dizer.

No entanto, é um símbolo.
Sim, tivemos aquela situação do selo das Jornadas Mundiais da Juventude, há pouco tempo. Tínhamos quase uma réplica da estátua do Padre António Vieira, com as crianças indígenas em posição submissa, um menino negro ajoelhado com a outra menina branca a pôr-lhe a mão no ombro. E, no entanto, isto ninguém viu, era invisível para toda a gente. O problema era a ressonância com a mocidade portuguesa. Como é que não há de ser semelhante à mocidade portuguesa? Se a mentalidade vigente, na verdade, subliminarmente, ainda é essa. Encontra-se à venda, por aí, em qualquer bazar, agendas e cadernos com a imagem do Padrão dos Descobrimentos, da Torre de Belém.

No outro dia vi uma revista infantil de uma livraria e editora conhecida e a capa do segmento infantil era uma caravela. Portanto, isto é aquilo com que somos alimentados constantemente. Muitos dos nossos produtos, o marketing, os nomes das marcas, as imagens, há símbolos que consumimos e que muitas pessoas nem sequer pensam se é um problema ou não. Os [chocolates] conguitos em Portugal ainda se encontram com aquela imagem antiga, que é uma caricatura das pessoas negras. Noutros países, quando encontro [conguitos], já é com uma outra imagem. Tenho vindo a trabalhar em exposições sobre isso, sobre essa colonialidade em execução, ou seja, essa colonialidade que está connosco à mesa e como as pessoas deixaram de ser comercializadas, deixaram de ser exploradas, mas a sua imagem também vale. Não é só a sua presença e a força do seu trabalho, mas também a sua imagem hipersexualizada, submissa, ou caricatural, que ainda vende.

Nas crónicas de Estendais encontramos interações mundanas, observações detalhadas sobre o quotidiano. Foi sempre uma pessoa atenta?
Sempre. Acho que tem a ver com uma certa escassez de recursos, no início, mas também com uma necessidade de usar a imaginação. Tem a ver um bocadinho com usar aquilo que temos à nossa frente e perceber que conseguimos retirar da mesma coisa, em dias diferentes, coisas diferentes. Mesmo de nós. Às vezes também pode ser um problema, reparar muito, lembrar muito, não esquecer. Espero também que os livros ajudem agora a libertar um pouco alguma dessa memória. Também é saudável libertar coisas.

"Pode ser um problema reparar muito, lembrar muito, não esquecer. Espero que os livros ajudem a libertar alguma dessa memória. Também é saudável libertar coisas"

Os livros servem como purga?
Não diria purga, mas acho que inevitavelmente isso acontece. Há um momento em que os livros, mesmo depois de estarem publicados, nos pesam ainda. Vamos sendo novamente confrontados com as coisas que vivemos e que estão ali, mas depois talvez haja uma libertação ou, pelo menos, um equilíbrio desses pesos.

Em muitas crónicas faz referência a transportes públicos: ao que ouve a bordo dos autocarros, como torce por quem corre para os apanhar.
Não conduzo e sempre andei de transportes. Cresci em Alverca do Ribatejo e, portanto, para vir estudar, para vir trabalhar em Lisboa, era inevitável apanhar o comboio, apanhar o autocarro. Isso implica esperas e muito contacto com pessoas. Muitas pessoas falam comigo, abordam-me na rua sem razão, com razão, é uma coisa que me acontece. Lembro-me de ver, há muitos anos, uma entrevista da Paula Rego, em que ela dizia que ia para o ateliê de autocarro todos os dias, todas as manhãs, e que tirava a inspiração daí, de observar as pessoas. Acho que foi isso que comecei por ficcionar… Voltarei à ficção, mas sempre uma ficção com base em coisas reais, porque a realidade fascina-me. Gosto de inventar, mas seria uma pena perder toda esta vida real que existe, e que muitas pessoas não valorizam como algo que deve ser transcrito ou sobre o qual se deve refletir. É uma pena, porque isso também é uma história comum, coletiva, são coisas de todos os dias. Também é uma forma de estar mais presente no tempo, na própria vida, na vida dos outros. Vem tudo também de um contacto presencial. A maior parte das coisas de que falo no livro são encontros irrepetíveis. É uma forma de homenagear algumas pessoas também. É uma caixinha com uma série de pessoas estranhas, amigas, familiares…

Encantou-se pela não-ficção?
Sempre quis, obviamente, passar para a ficção.

Porquê “obviamente”?
O romance é um género que aprecio muito. Adoro aquilo que faço, adoro poesia, crónica, mas quero ser uma boa romancista, acho que isso é importante. Li muito mais romances do que qualquer outro tipo de livro, tem a ver com isso.

Podia divergir o que consome daquilo que quer produzir.
Não. Na verdade escrevi um romance uma vez, mas era uma coisa para deitar fora.

Deitou fora mesmo ou chegará a ver a luz do dia?
Partes dele vão ver a luz do dia.

Tinha nome?
Sim, tinha [risos]. Mas o nome agora está noutra coisa. Penso que teria ido por aí se não tivesse sentido quase este chamamento para fazer outras coisas primeiro. Poesia vou continuar a fazer sempre, também não acho que vá deixar de escrever crónicas. Na verdade, não tenho de abdicar de nenhum destes géneros. Também escrevi teatro. Tudo o que seja escrita, estou disponível e quero fazê-lo da melhor forma que conseguir. Mas li muitos, muitos, muitos romances, acho que é normal querer escrever romances. Tudo tem o seu tempo. Publiquei livros de poesia, publiquei livros de crónicas, escrevi uma peça de teatro e, portanto, acho que agora é o tempo do romance.

Depois de Erosão, Gis, Estendais, imagino que o romance tenha como título, uma vez mais, só uma palavra. Já a encontrou?
Ela encontrou-me.

Que adoração é esta pelas palavras únicas para títulos?
Não tem de ser palavra única. A minha peça de teatro chama-se Casa com Árvores Dentro, que era o tal nome que tinha intencionado para um romance. Quando a Cláudia Semedo me convidou para escrever este espetáculo, assim que percebi sobre o que é que seria, que na verdade é inspirado por duas crónicas aqui dos Estendais, percebi: este título de que gosto tanto e que estou a guardar para um romance pode ir para ali. Acho que escolhi bem. Tenho assim um ficheirinho com os títulos dos meus livros. Agora tenho esse em que estou a pensar, em que estou a trabalhar, mas também tenho um outro já, um género de poesia, tenho várias coisas já definidas, já delineadas. Estou à espera de que novas coisas se me revelem.

Há uma passagem de Estendais em que lhe perguntam “escreve sobre Portugal ou sobre a África?”. Responde: “sobre o mundo”.
A crónica chama-se assim: “No metro do Chiado à espera da Carlota”. Estava à espera da minha amiga, na parte de cima, e um senhor fala do Chiado ser um poeta, da placa. Está ali a olhar para tudo, a falar de tudo. Um bocadinho como eu, não é? E pergunta-me isto. Tem a ver também com a idade, mas isto acontece constantemente em muitos lugares. Comparar países com continentes, estar a querer homogeneizar o continente africano como se tudo fosse igual, como se só houvesse um único país, como se os costumes fossem os mesmos, as línguas fossem as mesmas, as pessoas fossem as mesmas. É aquela mentalidade de que Portugal não é um país pequeno, e que no fundo ainda há essa colonialidade que está entranhada nos genes. Acho que mostra também muito desconhecimento, porque a África, para as pessoas portuguesas, continua a ser aquela que foi colonizada, de onde posso ou não ter nascido, de onde os meus pais nasceram, de onde eu vim.

Falar sobre racismo é abrir a ferida que é o colonialismo português?
É importante saber que existe esse lugar. Há muitas pessoas que são especialistas em falar desse lugar e que se focam nisso, eu estou mais preocupada com o que se está a passar agora e o que é que tem estado a passar-se nos últimos anos e aquilo que ainda se vai passar. Senão vamos estar sempre nessa. Não tira a colonialidade das coisas, mas a verdade é que depois cinge-nos àquilo. E também existe um lado perverso em que as pessoas também pensam que o colonialismo já não está a acontecer, mas o racismo está a acontecer e há uma consequência direta disso. Temos de nos focar também em diferentes lutas que vêm dessa mesma questão opressora, que não vem só daí. Ok, isto aconteceu, o que é que nós estamos a fazer agora? Quais é que são as nossas questões hoje em dia? É importante que se estude o presente, como é importante que se estude o passado, como é importante que se pense o futuro, acho que isso é relevante. Só não é a minha especialidade, é de outras pessoas, e acho que vou lá beber a isso. Mas acho que é normal, porque é uma questão identitária muito forte aqui em Portugal, e motiva muitas coisas que são ditas e feitas. Só que sinto é que isso é sempre o início da conversa, e acho que temos de continuar cada vez mais a tentar avançar na conversa. É uma conversa muito lamacenta, muito pegajosa, não é fácil fazê-lo com desenvoltura, não é fácil avançar verdadeiramente. É tudo muito lento. Vemos como é que este monumento às pessoas escravizadas está a ser atrasado há anos, como já querem pô-lo num outro sítio… Isso é um problema.

Existir esse monumento ajudaria ao reconhecimento do problema?
É mais um passo, um passo muito importante, e algo que foi escolhido, não só foi escolhido pelas pessoas

Resulta do Orçamento Participativo de Lisboa.
Exatamente. Foi escolhido pelas pessoas, pelos cidadãos, tem de ser respeitado. A localização ali [no Campo das Cebolas, junto ao rio] é muito estratégica, acho que equilibra as coisas um bocadinho. Pode ser um primeiríssimo passo, esta escultura. Porque depois continuamos a ter o parque de diversões colonial que é Belém, ali, e a existir com toda aquela força, com toda aquela carga. Começar a fazer as outras coisas, feitas por nós, por artistas negros, e com a escolha também das pessoas negras, equilibra a cidade. Ali, naquele lugar, que é um lugar onde as pessoas chegam de barco, é extremamente simbólico. Onde as margens se misturam, é super relevante que seja ali e não no sítio mais escondido possível, que é para não se notar muito, que com sorte ninguém vai lá, ninguém vai reparar. Assim não saímos do mesmo. Também tínhamos o plano contra a discriminação racial. Estamos em 2023 e há ainda num certo vácuo em relação a uma série de ações concretas. É cansativo.

Mais do que planear, é preciso agir?
Não é só o agir, pode-se confundir, “ah, existe um plano, mas as pessoas votaram, os artistas propuseram, até se mandou fazer”. Isso já são algumas ações, mas o que é a concretização? Não é só pôr lá a plantação no Campo das Cebolas. Ia haver um outro dispositivo que as crianças poderiam visitar.

O centro interpretativo.
Sim.

Que não está, pelo menos nesta primeira fase, planificado no novo espaço oferecido pela Câmara Municipal de Lisboa.
Por exemplo, já é um problema. Negociou-se algo e depois, na verdade, está-se a fugir àquilo com que se comprometeu. Os símbolos que temos continuam a repercutir a mesma mensagem. Nós também não nos permitimos ter outros símbolos. Não temos uma estátua sobre a memória de Amílcar Cabral, por exemplo. E quem diz a Amílcar, diz outros, mas estou a dizer um exemplo que é gritante. Como é que não temos isso? Sabemos como é importante a existência deste tipo de memoriais e como eles apelam às pessoas. É mesmo teimar em vincar uma coisa, recusar a resignificação dos símbolos.

Capa do livro "Estendais", que foi publicado em abril pela editora Caminho

Há minutos, suspirava e dizia que era cansativo.
Era o que ia dizer logo quando disse que falo destes temas. É sempre cansativo. Porque é cansativo viver as situações, é cansativo educar-se sobre elas, é cansativo ter de falar sobre elas e, sobretudo, falar sobre coisas que já não deviam estar a ser faladas, já devíamos esta a falar sobre como resolvê-las e não se elas são um problema ou não.

Sendo o racismo um tema presente na sua obra, como navega entre a necessidade de purga e libertação, e esse cansaço?
Como diz a Audre Lorde, “o nosso silêncio não nos protege”. É preciso falar sobre as coisas.

Escreve no poema As Cicatrizes: “nada as fará desaparecer, chora o que quiseres sobre as suas cicatrizes, elas limitam a tua invisibilidade, por isso escreve o que puderes sobre as tuas cicatrizes”.
Pois, mas nem todas essas coisas são cicatrizes, não é? Se continuam a acontecer não dá tempo para cicatrizar. As coisas de que falo não são coisas que me pertencem só a mim. A minha causa não é só o racismo, só que sou mulher e sou negra. Há outras causas, pessoas próximas a mim, que não podem propriamente lutar e tento fazer o que posso em relação a isso também, para ajudar, para amplificar isso, essa necessidade. Os temas são muitas vezes os mesmos e vou falando deles de diferentes formas, sei que isso é importante. Aconteceu uma coisa muito engraçada numa exposição coletiva que fiz no Porto, chamada Erro 417: Expectativa Falhada, com a curadoria da Marta Espiridião. Uma das artistas presentes era a Hilda de Paulo. Houve uma pessoa que me disse: adorei aquela tua frase. Falava sobre estar na casa do colonizador. Estava lá, pintada em grande. E eu disse-lhe: aquela frase não é minha, a minha peça não é essa. A minha peça é aquela parede de escalada gigante ali ao fundo, que é sobre isso, mas é sobre muitas coisas, mas é muito para lá disso. Portanto, só porque diz lá “o colonizador” ela achou que eu era a única pessoa que iria falar, que era eu que iria falar sobre isso automaticamente. Essa não é a minha identidade, o racismo não é uma identidade para mim. A pessoa pode vir de um país que foi colonizado e falar sobre colonização, a pessoa pode ser emigrante, como é o caso também, e estar a falar de colonização, e a pessoa pode ter simplesmente consciência e falar de colonização. Não tenho de ser sempre eu, ou só eu, ou alguém como eu, a falar dessas coisas. Aí, sim, repartimos o cansaço.

Hoje há uma exigência imposta, particularmente a artistas negros, para que falem e se posicionem?
Ninguém pode obrigar outra pessoa a posicionar-se, mas às vezes não nos posicionarmos também é uma posição. Se esse silêncio não nos protege, é preciso entender que o sistema também não nos protege. É uma ilusão achar que estou protegida agora, que estou a ser beneficiada e então não tenho que me posicionar, ou que é melhor não me posicionar. Temos de ir conquistando essa coragem, conquistando espaço ao medo também. Temos de ser estratégicos nos nossos posicionamentos, como quando, onde e com quem. Mas temos de nos posicionar. O pessoal é político, mas as pessoas não são todas ativistas. Tem de haver um equilíbrio. Quando temos uma plataforma e acesso às pessoas…

Seria um desperdício não o fazer?
Sim, mas aí já fica ao critério da consciência de cada um e do seu sentido de missão, se o tiver. É normal que as pessoas vivam com medo e tenham medo de represálias. Sobretudo na época em que vivemos. No entanto, para mim não me interessa a questão do cancelamento, não ligo a isso.

Porquê?
Porque não acho que isso seja real. Cada vez mais já refleti sobre vários casos e acho que não existe realmente cancelamento. Acho que algumas tentativas de cancelamento até reforçam a posição de algumas pessoas e acho que há pessoas que continuam a ser, durante anos, imunes a isso, e que beneficiam até disso.

Refere-se à literatura ou no geral?
Refiro-me a diferentes áreas, desde a música à literatura, a uma série de coisas. É transversal a áreas e transversal a géneros. Mas é isso: sou responsável pelo que faço e digo, embora sinta que, infelizmente, tenho sempre mais tempo de antena se for falar destes temas. Acho que isso também cria um grande desequilíbrio e põe um grande ónus nas pessoas negras e nas pessoas racializadas e nas outras quando, na verdade, não são elas o problema. O problema não é só delas, não foi criado por elas, deveria haver outras pessoas a falar sobre o assunto. Por isso é que acho que foi importante naquela altura [do poema] ter aquelas pessoas a falar que são de fora da minha comunidade, que não são pessoas negras e que são pessoas que conseguem fazer passar a sua mensagem.

Em vez de usarem o argumento do “lugar de fala” para se demitirem da conversa.
Pois, não transformarem o “lugar de fala” num “lugar de cala”, como diz a Djamila Ribeiro. Toda a gente tem um lugar de fala, não é essa a objeção, não vamos confundir. Agora, as pessoas querem usar isso também como lugar de cala, às vezes. Aquilo foi um atentado à nossa democracia, à liberdade de expressão, à liberdade artística. Perceberam que era uma coisa que ia além de uma questão de raça, apesar de estar, obviamente, clara a questão no poema de racismo e violência policial. É fácil encolher os ombros, sobretudo se não está a ser derramado de sangue. Se formos a ver bem, no caso das pessoas negras as pessoas só prestam alguma atenção se tiver havido derramamento de sangue, fora isso as pessoas não têm empatia, têm exatamente o oposto. Basta ver como algumas pessoas foram e ainda continuam a ser enxovalhadas na praça pública, ativistas ameaçados… É preciso ver também que muitas vezes as pessoas só são chamadas para falar destes temas, ou se tiver acontecido alguma coisa que seja considerada grave, que leve a ferimentos, a morte, mas com grande referência para a morte. E, mesmo assim, após algumas mortes, ainda se questiona se de facto, aquela pessoa não fez para merecer aquilo.

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

A morte de George Floyd foi um ponto de viragem na mudança de mentalidades?
Acho que foi, que existe um antes e um depois do George Floyd, como acho que existe um antes e um depois do Rodney King, como existe um antes e um depois do Alcindo [Monteiro]. Agora, se já existe um antes e um depois do Bruno Candé? Não. Tivemos uma grande comoção no caso do George Floyd, mas não tivemos a mesma comoção no caso do Bruno Candé. Porquê? Porque isso implica assumir que os assassinos são pessoas portuguesas, que as pessoas portuguesas praticam o racismo. E praticam o racismo mortífero. Também existe uma coisa de negritude ser usada como moda, como escudo, benefício. Já falei sobre isso. E ainda falarei mais porque… Estou a terminar também um livro sobre racismo, que vai sair na [editora] Penguin. Sobretudo sobre antirracismo.

Um livro de não-ficção?
É um livro de não-ficção.

Será o próximo livro então, antes do romance.
O romance não vai sair este ano. Vai ser no próximo ano. Não tenho tempo. É preciso tempo para escrever as coisas. O que vai sair agora são encomendas. São coisas que já tinha planeado.

Qual será o formato desse livro sobre antirracismo?
É um formato misto. Não são crónicas. Tenho aqui [aponta para Estendais] crónicas sobre isso. Mas tem coisas novas. E tem coisas, obviamente, que já fui escrevendo sobre o tema. Em algumas publicações online. Portanto, também será isso. Tem tantos tipos de textos diferentes que não dá para… É um manual. Um manual antirracista. É a melhor definição, talvez.

De novo se debruça sobre o racismo.
É verdade. Esse tema persegue-me. Tento equilibrar a minha vida dessa forma. Em Estendais não quis deixar de ter algumas crónicas que são especificamente sobre questões raciais. É um livro que fala sobre todas as dimensões que atravessam a minha vida e as coisas que me afetam e fazem pensar. Tenho muito trabalho sobre esse tema. Mas o livro é muito mais do que isso. É também isso que queria poder mostrar. No meu livro de poesia novo também tenho uma secção que fala muito de questões raciais, de violência de género, de outras coisas. Mas é importante para mim que saiam diferentes coisas que não têm só a ver com isso. Porque, lá está, essa não é a minha identidade.

Outro dos temas que atravessa a sua obra é o corpo. Desde a forma como o aborto é descrito em Giz, até como em Estendais disserta sobre estrias e cicatrizes. Atrás mencionou a pintora Paula Rego, que também tinha uma relação próxima com as questões do corpo…
Pois é, muito física. Muito vincada mesmo. As posições, os objetos.

Como é que a relação com o corpo influencia a sua escrita?
É inevitável escrever sobre o corpo. Estar atenta aos outros é também estar atenta a mim, à minha forma, à forma como me fui relacionando com o meu corpo e comigo mesma ao longo do tempo. E como ainda me relacionarei. Estamos sempre a tentar cuidar mais de nós. Também tem a ver com agressões que o corpo vai sofrendo, com imposições, com os padrões — ou não estar no padrão. Tive também de lidar com tudo isso desde muito cedo, com essa questão da diferença que começa na pele e depois pode ir para a altura e pode ir para o peso e pode ir para aquilo que o corpo consegue ou não consegue fazer, dependendo de quem estamos a falar. A minha relação com o corpo é sempre melhor quando estou presente. Uma das coisas que me ajuda mais a estar presente é o exercício, seja saltar à corda, ir ao ginásio ou nadar, que foi a atividade mais recente em que ingressei e que me ajuda muito. É a única atividade em que sou só eu, a água e o meu corpo e a minha respiração. Não há nenhum telemóvel para ouvir música, não há nada, não há mesmo uma interferência tecnológica, só eu.

É um momento que a estimula a ser criativa?
Não tem a ver com conseguir ser criativa, tem a ver com acho que nós estamos num estado tão, eu não estou a tentar ser nada naquele momento, estou a tentar não me afogar, estou a tentar divertir-me, estou a tentar estar ali, a aprender e a fazer melhor e a cuidar do meu corpo. A criatividade vem naturalmente, mas a criatividade vai-nos encontrar a fazer qualquer coisa, seja a coisa mais aborrecida ou a coisa mais entusiasmante. Agora, tenho tido muitas epifanias desde que comecei a ter aulas de natação. Acho que é uma forma também de cura, geracional e de conexão ancestral.

Como é o seu processo de escrita?
Depende do tipo de livro que estou a escrever. Há coisas que vão decorrendo, como a poesia. São raras as vezes que me sento e digo: agora vou escrever um poema sobre não sei o quê. Normalmente acontece, anoto e depois faço alguma coisa com isso.

"As bolsas e as residências não devem ser vistas como mais um luxo, devem ser tratadas como um bem, que permite às pessoas poderem escrever, mas também poderem pagar as suas contas. Mesmo assim, há muitas pessoas que ganharam bolsas, residências, já são publicadas há 10, 15, 20 anos, e também não vivem só da escrita"

Diz que acorda muito cedo. Não escreve pela noite adentro, como por vezes se romantiza…
Não tem a ver com a romantização. Cada um tem que fazer aquilo que resulta para si. Se a pessoa é mais funcional à noite, tem que escrever à noite. Sou uma das manhãs, gosto de acordar o mais cedo possível para poder fazer as minhas coisas. Também tive que me adaptar, muitas vezes não tinha tempo para escrever. Voltamos sempre à Audre Lorde, “a poesia não é um luxo”. A poesia acontece em qualquer lugar, posso estar a fazer qualquer coisa, a passar a ferro, e ela acontece. Agora, as outras coisas exigem uma dedicação de tempo, meios económicos também. Existe essa questão, e ela fala nisso. Não basta ter, não é como a Virginia Woolf, que basta um quarto só seu. E dinheiro? A Virginia Woolf diz isso, um quarto só seu e dinheiro, mas também é preciso ter outras coisas, a Virginia Woolf era uma pessoa privilegiada, tinha dinheiro, tinha esse quarto e tinha tempo. Não tinha de ir a trabalhar para…

Pagar o quarto em Lisboa.
Exato, para pagar o quarto em Lisboa, por exemplo. O tempo da escrita foi sempre um tempo roubado a outras coisas. Se entrava às sete no trabalho, tinha de sair de casa às seis e de tentar escrever antes. Prefiro sacrificar isso e fazer uma coisa que tem a ver comigo e que sempre me acompanhou, e que seja a primeira coisa que faço. Fazia isso e depois ia trabalhar. Quando voltasse sabia que pelo menos já tinha começado o meu dia dessa forma, podia a seguir continuar a escrever ou não, podia voltar a escrever, podia ir para outra coisa ou podia a seguir sair de um trabalho e ir para o outro, como já aconteceu muitas vezes. Tive de encarar a escrita também dessa forma. Tem a ver com escolhas e escolher-me em primeiro lugar.

A escrita acompanhou-a sempre?
Sim, sempre escrevi, sempre quis escrever, nunca tive dúvidas em relação a isso.

Mencionou a questão financeira. Há uma romantização do trabalho do escritor? Contava-me como escreveu sempre, tendo um trabalho que nada tinha a ver com a escrita.
Um trabalho ou dois. Exatamente. Só desde 2021 é que estou totalmente dedicada à criação artística e literária. Antes disso, tive sempre um ou dois trabalhos para pagar as contas. Como muitas pessoas continuam a ter. É muito difícil conjugar tudo isso. As pessoas romantizam. É muito engraçado, as pessoas perguntam: “porque é que não tens um assistente?”. Não tenho como pagar a um assistente, nem acho que tenha carreira para tal. Se achasse que tinha, trataria disso, mas também teria meios de pagar a essa pessoa condignamente? Não acho que seja o caso. Mas a verdade é que nós, criadores, escritores, autores, muitas vezes temos de fazer a nossa autopromoção, perdemos muito tempo com muitas coisas administrativas e burocráticas que nos sugam a energia. O tempo da escrita, da criação, efetiva, é muito curto.

Refere-se ao trabalho original, além das encomendas?
Exatamente. Primeiro é o tempo de criar, depois o tempo de lutar para que isso chegue a uma fruição, e depois divulgar esse trabalho… Há muitas etapas. Não romantizo, e cada vez mais tenho falado sobre isso, porque as pessoas não percebem que, primeiro, há muito poucas ofertas de bolsas e de oportunidades. E são dadas muitas vezes ainda a pessoas que já estão estabelecidas. Portanto, os prémios muitas vezes são atribuídos a pessoas que já foram premiadas. Entendo a necessidade, entendo que essas pessoas, por um lado, querem estar só a poder escrever, e precisam de dinheiro, e sabem que têm essa hipótese, por isso concorrem e ganham. E os que atribuem essas coisas também querem atribuir a quem acham que já é um valor seguro. Mas, depois, o que acontece com todas as outras pessoas é que estão a trabalhar por turnos, que têm dois trabalhos, que não sabem o que é estar numa residência, tranquilas, só dedicadas àquilo, seja um mês, dois meses, três meses. Não sabem o que é ter um mês em que não têm que estar preocupadas com a sua sobrevivência e poder estar totalmente dedicadas só a escrever, muitas vezes até sem estar a pensar se aquilo vai ser publicado ou não. Há todo o tipo de concurso e prémios, mas a verdade é que há uma repetitividade e acho que tem que se começar a olhar também para isto como a diferença que se pode fazer na vida de alguém. Estive há pouco tempo numa conversa na Livraria da Travessa, com o Tom Farias, que é o biógrafo da Carolina Maria de Jesus. A dada altura ele dizia-me: com certeza havia muitas Carolina Maria de Jesus por aí, de que nós nunca ouvimos falar. Pessoas faveladas, pessoas com talento, pessoas que escreviam, pessoas que liam, com meios quase nenhuns, e que não desistiram. Até nem é que elas desistem, mas a vida acaba e não chegam a ser conhecidas, mas chegam a ter a oportunidade. Acho que temos de refletir sobre essas coisas também. Temos de pensar sobre quem é que está a concorrer às coisas, porque é que concorre, o que é que faz com que alguém se sinta essa coragem e essa vontade de sequer concorrer? Desencorajou-me muito participar em algumas coisas.

Pelos resultados?
Porque nota-se um padrão. E não estou neste padrão. Acho que há pessoas que já conseguiram furar um bocadinho esse padrão, como a Djaimilia Pereira de Almeida, como o Ondjaki, por exemplo. Estou a falar na literatura, mas isto acontece também em criações artísticas. Noutros países foram dados apoios aos artistas a fundo perdido. Aqui não, aqui para se ter um apoio mínimo é preciso ter reunidas mil condições. Temos que implorar pela nossa validação, pela nossa sobrevivência. A escrita é uma questão de classe. Não escreve, não produz conteúdo intelectual, conteúdo artístico, quem está preocupada em sobreviver, em comer amanhã, em pagar a renda, em pagar o meu passe para ir trabalhar. As bolsas e as residências não devem ser vistas como mais um luxo, devem ser tratadas como um bem, que permite às pessoas poderem escrever, mas também poderem pagar as suas contas. Mesmo assim, há muitas pessoas que ganharam bolsas, residências, já são publicadas há 10, 15, 20 anos, e também não vivem só da escrita. Dão aulas, fazem traduções, algumas delas, fazem outras coisas. Há umas que o fazem porque querem, porque gostam, outras porque também não se vive só disso.

Ao longo desta conversa foi mencionando vários projetos que tem em mãos, parece haver um desmembramento permanente, um calendário…
Só estou a falar, na verdade, de coisas, não estou a entrar nos pormenores de coisas mais pequenas porque acho que não existem coisas pequenas. Há, isso sim, coisas que sei que vão ter uma visibilidade completamente diferente, uma permanência no tempo completamente diferente, como é o caso dos livros. Mas uma entrevista aqui, mais um texto curatorial, uma folha de sala para um artista em Luanda e outras coisas que eu vou fazendo… Gosto de as fazer, mas parece-me que a possibilidade de dizermos “não” também tem de ser avaliada. Às vezes por uma questão mesmo de incapacidade física, outras vezes porque fazer uma coisa pequena vai dar-nos tanto trabalho quanto uma coisa grande e a remuneração vai ser diferente. Mas a precariedade também entra aqui. Também quero falar sobre esse assunto, que é: as pessoas que estão na cultura, não só os artistas, os escritores, mas as pessoas na produção, estão a trabalhar meses num projeto até serem remuneradas. Meses! Se estão a viver de outras coisas, como é que vivem?

Escuta-se pouco sobre a precariedade da escrita. Será porque tradicionalmente esses lugares foram ocupados por quem pertencia às elites, de certa forma?
Os lugares são ocupados por muitas pessoas que estão nas elites, mas muitas também têm situações precárias. Só que têm outras questões de privilégio que depois acabam por colmatar isso. Há muito tempo que aqui ando a tentar e estive todo o tempo a ter outros trabalhos, até agora. É completamente diferente se uma pessoa consegue acabar os seus estudos e ir logo trabalhar na sua área. Isso é um privilégio. Se a pessoa é uma trabalhadora freelancer da cultura, precária, mas alguém lhe ofereceu o carro com que ela se desloca, isso é um privilégio. Se ela vive numa casa onde não paga renda, isso é um grande privilégio. Mesmo que seja freelancer como outra pessoa. Falamos muito do preço das rendas, mas há muitas pessoas que não pagam renda porque são herdeiras de alguma forma. Há escalas maiores e mais pequenas. Há muitas variações do que é a precariedade também. A minha precariedade não é a mesma que a de uma pessoa trans que tem dificuldade em ter o trabalho artístico e o trabalho de pagar as contas. E a de uma pessoa trans também não é a mesma de uma pessoa com deficiência.

Temos de ver quem é que é chamado para os trabalhos, quem é que não é. Em Portugal há um grande pudor em falar de dinheiro, devia falar-se muito mais. Querem que as outras façam o trabalho não remunerado. Dá vontade de perguntar se elas fazem esse trabalho não remunerado que oferecem aos outros. E a questão institucional de se demorar muito tempo a receber: quantos artistas têm dívidas à segurança social? E porquê? As pessoas fazem muita panelinha, muito segredo sobre os valores e as coisas. Acho que não, acho que tem de se falar, para as pessoas não serem enganadas, para as pessoas poderem construir a sua própria tabela, ver o que são valores justos para um trabalho.

Às vezes dizem que me veem de um lado para o outro, mas não veem o tempo que demorou até cada coisa ser publicada, não veem a precariedade. Se calhar se tivesse uma forma digna de subsistência não precisava de fazer tantos trabalhos. Há coisas que gosto de fazer, que me desafiam, mas se calhar não precisava de me sentir tão assoberbada, tão exausta mentalmente. Acontecem muitos burnouts no trabalho criativo, muitos mesmo. Tudo o que as pessoas não veem, não fazem ideia. As pessoas querem glamourizar. A Dulce Maria Cardoso uma vez disse-me que um médico lhe perguntou o que é que ela fazia além de escrever. E ela perguntou-lhe o que é que ele fazia além de ser médico. Não há mal nenhum em fazer uma série de coisas, mas a verdade é que um escritor deveria poder ser só escritor, um artista deveria poder ser só artista.

É um tema falado entre escritores?
Falo disso com pessoas do teatro e com artistas que escrevem e que fazem artes plásticas. Com escritores também falo, às vezes. Depende.

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Gostava de voltar ao princípio e à vontade de escrever. No livro fala muito da importância de Sophia de Mello Breyner.
Soube desde criança, desde que li, desde que acabei o meu primeiro livro sozinha, que era isto que queria fazer. Sempre gostei muito de livros de histórias. Quando era miúda, esse que me fez essa visão foi um dos contos dos irmãos Grimm. Imaginava muito, brincava muito com a minha irmã. Inventamos muita coisa, era fácil entrar nessa outra dimensão, escrever pequenas histórias. E a televisão… Sou dos anos 80 portanto a televisão marcou-me muito. Mas passar muito tempo na biblioteca, foi aí que fui descobrindo diferentes pessoas, como a Sophia de Mello Breyner, mas também o Stephen King, a Alice Walker. Li muita coisa, muitas pessoas diferentes. Acho que é assim que se aprende. Li muita coisa, coisas que vão aprendendo nos poemas e noutras coisas.

Desde ser ávida leitora até ver a escrita como profissão…
Sempre soube que seria uma escritora com livros publicados. Sempre tive essa visão. Chegar às pessoas e contar histórias. Também pensei que o jornalismo talvez fosse uma ferramenta para fazer isso, mas é diferente mesmo assim… É outro tipo de história.

Há jornalismo literário…
Há muita coisa. Há jornalistas que são romancistas. Cada um tem o seu caminho, o seu trajeto. O meu teve muitos desvios, muitas turbulências e atrasos. O seu lado público não começou tão cedo quanto gostaria e imaginaria.

Porquê?
Circunstâncias de vida, primeiramente, e não consegui chegar a editoras, não consegui chegar esses prémios, esses concursos. Foi isso também. Não é fácil para toda a gente chegar a um editor ou editora, não se chega da mesma forma. Não sei se as pessoas também estavam assim tão recetivas àquilo que eu tinha para dizer. Se virmos bem, a Caminho é uma das editoras que mais consistentemente e há mais tempo publica autores negros e autores africanos. A maior parte das pessoas a quem pergunto sabe dizer-me os mesmo três autores africanos. Sei o primeiro, o segundo e o terceiro. E vamos ficar assim.

Daí a importância de ver este livro editado?
Claro. É importante para mim estar numa editora tão importante, que conheci primeiramente como sendo a editora de José Saramago. Tenho a sorte de dentro da editora ter o mesmo editor, Zeferino Coelho, mas depois tornou-se além disso. Ter autores como o Ondjaki, a Paulina Chiziane, a Ana Paula Tavares, isso para mim significa muito. Ver até onde chegaram, o seu alcance, a linguagem que pulsou em mim, tem uma outra importância, tem outro sabor. Gosto muito deste livro, lutei muito para este livro ser publicado. Tal como o Erosão, também o Estendais foi rejeitado antes.

Por editoras com as quais agora trabalha?
Exatamente. Portanto, existe um lugar e as pessoas certas para cada coisa. Claro que custa porque sempre escrevi. Fui publicando coisas soltas aqui e acolá, mas diria que desde finais de 2017 até agora, as coisas têm estado cada vez melhor a nível profissional. O meu plano é criar condições para que os livros não demorem tanto tempo a sair de mim nem a sair para o mundo.

Há muito de autobiográfico em Estendais. Como é a sua relação com a partilha e a exposição?
Depende sempre com quem estamos a falar. Tem de haver um grande cuidado. É impossível não saber que isolar uma frase sem contexto vai gerar certas coisas. há pessoas que são alvos mais fáceis. As mulheres são alvos mais fáceis, as pessoas negras são alvos mais fáceis. Tudo o que seja falar de questões que são prementes, mas que também são acutilantes na sociedade portuguesa… Entendo porque é que muitas pessoas não querem dar entrevistas, não querem falar ou só falam se for certo assunto. Porque a dada altura a pessoa vira aqui um arauto e as pessoas colam isso à nossa identidade e também não é justo para nós. As únicas vezes que apareci no prime time da televisão portuguesa foi para falar de racismo. Não apareci para falar da minha escrita. Se não tivesse uma causa, se não falasse de racismo na minha escrita, será que podia falar? Tem a ver com isso também. Deixo essa pergunta.

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça até artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.