A frase tornou uma insuspeita visita oficial ao Canadá num acontecimento mediático. “We are bacalhau”, declarou Marcelo Rebelo de Sousa perante a comunidade luso-descendente em Toronto, em setembro. O discurso continuou com outros ícones da portugalidade — o caldo verde, o vira — mas nenhum, nem mesmo Cristiano Ronaldo, arrancou aplausos e títulos na comunicação social como o bacalhau. A pergunta, porém, ainda ecoa: o que é exatamente isso de ser bacalhau?
A relação identitária dos portugueses com o bacalhau perde-se na história. Muito associado ao consumo pelos grupos proletários e pobres, foi frequentemente objeto político e usado como símbolo nacional na imprensa e nas artes. Levá-lo para o discurso político não é invenção de Marcelo Rebelo de Sousa. Já o Estado Novo usava o bacalhau para justificar políticas protecionistas e, antes disso, davam-se os pescadores de bacalhau como os antecessores dos navegadores da expansão marítima. No inconsciente nacional o bacalhau permanece rico apesar de remediado, português apesar de estrangeiro, e o seu consumo aumenta na época do Natal. A história prossegue com artistas a refletir sobre este passado.
Para quem é bacalhau basta
Para o professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra Álvaro Garrido, a pesca portuguesa na Terra Nova, Canadá, durante o Estado Novo, “terá sido a última grande saga marítima dos portugueses”, escreve em Do Atlântico Norte para a mesa portuguesa, ensaio que pode ler-se no livro História Global da Alimentação Portuguesa. A estética sobre essas frotas “tende a realçar os traços épicos dessa atividade transatlântica e a recalcar os seus aspetos mais sombrios e dramáticos”, continua.
O consumo de bacalhau era já generalizado e a Primeira República tornou-o uma questão política. Com a crise aguçada pela I Guerra Mundial, o bacalhau seco provava-se capaz de enriquecer as alimentações pobres dos trabalhadores, particularmente no litoral urbanizado. Com o mito da autossuficiência alimentar dos governos de Salazar, a produção de bacalhau exclusivamente por portugueses é um objetivo que ficou por concretizar.
Levanta-se uma pesada regulação do sector com tabelamento de preços ou créditos estatais e a sua figura de proa, Henrique Tenreiro, fica conhecida nos folhetos satíricos como Almirante Bacalhau.
O bacalhau é vendido barato, especialmente o pequeno. No final dos anos 1940 consumia-se mais bacalhau do que porco ou qualquer outra carne e este produto é simultaneamente indispensável à mesa dos remediados e despeitado com expressões como “para quem é bacalhau basta”. Havia frequentemente problemas de conservação, curas mal feitas que resultavam em mau cheiro (muito glosado pelas anedotas populares) e intoxicações alimentares frequentes, pelo menos até meados dos anos 1960. No livro O Bacalhau na vida e na cultura portuguesa, Marília Abel e Carlos Consiglieri lembram um dos casos mais dramáticos de intoxicação coletiva, quando, em 1952, no Porto, 900 pessoas adoeceram por causa de bacalhau estragado fornecido pela Assistência Social da Legião Portuguesa.
Bacalhau à Salazar
Apesar do bacalhau de posta alta e bonita, bem seco, estar às melhores mesas do regime, os jornais satíricos falam do bacalhaço, bacalhuço, do bacalhau cheirão, bacalhau soleque, reboleiro ou sonapaio — isto é, do bacalhau ordinário e de má qualidade. Numa primeira página do Os Ridiculos vê-se um Zé Povinho montando um burro, com um pequeno bacalhau na mão. No título: “Projeta-se uma estrada que ligará Portugal à Noruega! Será a única forma de comermos bacalhau do bom”.
Marília Abel e Carlos Consiglieri fazem também uma recolha de anedotas que se contavam discretamente, como a do bacalhau à Salazar, servido com batatas mas sem azeite: se era gordo não precisava, se era magro, não merecia.
A história contada pelo Estado Novo é mais épica: a dos homens que embarcavam rumo aos bancos da Terra Nova, heróis do mar desafiadores do mau tempo para alimentar a nação. Depois de abençoados os bacalhoeiros, com laudas à fé e ao Império, os barcos partiam do Tejo. Chegados ao destino, cada pescador saia do lugre numa pequena chata, o dóri. Dentro desse pequeno barco cada pescador era o próprio capitão. No meio de nevoeiro cerrado deveria saber voltar à embarcação mãe com todo o peixe que conseguisse apanhar (ganhava ao peso) procurando a linha ténue entre o bom salário e o naufrágio. Meses depois, voltava.
O romance que falta
As histórias por contar destes pescadores foram, em 2019, o ponto de partida de Sandro William Junqueira para duas peças de teatro, O Presente de César e Há Marias Assim. O escritor falou com antigos pescadores e mulheres de pescadores e de capitães de Ílhavo, Nazaré, Murtosa e Peniche. “O meu interesse foi o conflito humano, a questão dramática à volta da pesca do bacalhau. A ideia de que quem vai para o mar não volta à terra. Os homens que iam nunca mais voltavam, apesar de voltarem. Quando chegavam eram três dias de pura felicidade, mas depois havia qualquer coisa que não estava bem. Havia muitos pescadores deprimidos, outros que pregavam tudo o que tinham em casa às paredes, como se faz nos barcos, porque o ouvido interno estava desregulado, sentiam-se sempre no desequilíbrio do mar”, recorda ao Observador exemplos que ouviu na primeira pessoa.
A má nutrição, a dureza da natureza, a solidão no dóri e o perigo de morte iminente contrastam com o mito heroico e “havia também o drama de quem ficava, mulheres completamente vigiadas pela população”, lembra Sandro que tratou o lado feminino em Há Marias Assim.
A pesca do bacalhau era “a outra guerra” e por isso “serviu como arma: ou vais para o ultramar ou para o bacalhau. Houve muitas mães que fizeram peregrinações até Ílhavo, com animais e joias para oferecer às mulheres dos capitães, a pedirem que levassem os filhos para a pesca”, continua Sandro. “Não sei como ninguém fala nisto, como é que não é dado em História. Narrativamente há muito por onde pegar. Chateia-me de morte que o cânone da nossa literatura sejam as casas burguesas. Como é que não temos um grande romance sobre isto? Não temos um Moby Dick na nossa literatura”, diz Sandro William Junqueira que tem “um romance engatado”, pensado a partir destas histórias.
As narrativas sobre a “frota branca”, como era conhecida internacionalmente na época em que se cruzava com os submarinos da II Guerra Mundial, ficam-se pelas peças de Bernardo Santareno ou o filme Heróis do Mar, de 1949, com António Silva.
A epopeia ficou exposta com o 25 de Abril de 1974. Houve boicotes ao abastecimento, pescadores que começaram uma greve no momento em que receberam a notícia da revolução pela rádio.
Em Águas de Bacalhau
Com o fim da campanha do bacalhau, os preços começam a aumentar, fala-se no fim da fiel amizade entre o português comum e o bacalhau e no ABC, em Lisboa, sobe ao palco a revista Águas de Bacalhau, em 1977. Entre o 25 de Abril e a entrada na CEE, em 1986, as zonas económicas exclusivas mudaram e foi forçoso fazer acordos de pesca com o Canadá e a Noruega. O resultado foi uma diminuição do bacalhau pescado e salgado pelas armações portuguesas, um aumento das importações e dos preços e, mais recentemente, uma diminuição maior das cotas de pesca por razões ecológicas.
A questão foi sempre de grande relevância política pelo desemprego da classe profissional e pelo abanão no consumo. As reportagens que entrevistam portugueses junto a uma banca de bacalhau pelo natal sucedem-se até hoje e resumem-se bem no Fadinho do Bacalhau, de Ary dos Santos, gravado por Paulo de Carvalho em 1985: “Agora subiu de posto/ Está pela hora da morte/ Quem quiser saber-lhe o gosto/ Vai pagar com juros e tem muita sorte/ Ai! Que saudades do meu bacalhau (…) O que é preciso é a malta/ Exigir de muitos modos/ Que se acabe com a falta/ E haja bacalhau com todos, para todos”.
Este Natal e para 2024 já se prevê um novo aumento do preço do bacalhau em parte devido à diminuição da sua disponibilidade nos mares, segundo a Associação dos Industriais do Bacalhau (AIB). Já em 2023 os calibres grandes de bacalhau ficaram mais caros e as vendas caíram 20%, mas o país continua a consumir mais de 50 toneladas por ano, segundo a AIB. É o maior consumo per capita do mundo e, para países como a Noruega é determinante. “O mercado português é o que mais consome bacalhau salgado no mundo, o equivalente a 20% de todo o bacalhau capturado a nível mundial. Portugal é o principal cliente do bacalhau norueguês e, sem dúvida, um mercado-chave para a Noruega”, dizia em 2018, o Conselho Norueguês da Pesca (NSC) à agência Lusa.
Bacalhau pop
Talvez por isto João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira tenham decidido trabalhar a relação portuguesa com o bacalhau quando embarcaram para uma residência artística em Skrova, na Noruega. Este período em 2019 criou a performance Semiótica do bacalhau, em que os dois artistas cozinham bacalhau à Brás enquanto falam sobre a forma como este peixe seco pontua a cultura nacional e reimaginam significados.
“Em oposição à nossa conceção dogmática da história, queríamos explorar de forma aleatória uma possível história fluida. Através de todos os objetos, artefactos e documentos concretos que pudemos encontrar sobre a relação de Portugal com o bacalhau, quisemos dar uma versão alternativa e fluida dos acontecimentos. Uma versão que não é visível. (…) Uma história de água salgada e tempestade. De óleo de fígado de bacalhau. De azeite para untar os filetes de peixe. De caldos e sopas feitas com sobras. Do cheiro a peixe a bordo do navio. De unhas a cair no frio gélido. De sangue, suor, lágrimas e esperma. Das comunidades de trabalhadores temporários que se reúnem a bordo e nos portos. A troca de fluidos”, lê-se no livro que publicaram com as notas que originaram a performance.
No conjunto, os textos de Semiótica do Bacalhau são uma reflexão crítica e, em alguns momentos, enfabulada sobre inúmeros objetos, frases, expressões e personagens. Estão lá a cadeira rabo de bacalhau, design português que vinga desde o século XVIII, as cerâmicas da Bordallo Pinheiro, a ideia fabricada de masculinidade que perpassa as aventuras marítimas portuguesas da expansão do Império à frota branca; estão lá Quim Barreiros, o autor de Bacalhau à portuguesa, Filipa Vacondeus, que escreveu vários livros de receitas de bacalhau, e Herman José, que a satirizou em Cozinho para o Povo, do Tal Canal, e é autor do livro As minhas receitas de bacalhau, de 2004.
Em Semiótica do Bacalhau fica clara a vocação pop do bacalhau, confirmada no mesmo ano por Alexandra Moura, que apresentou nas passarelas de Portugal e Milão malas de tiracolo com a forma deste peixe salgado. A coleção chamava-se Gadidae e era uma homenagem aos pescadores que partiam para o ártico e às mulheres que ficavam.
João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira vão além: criam uma perspetiva queer, permeável pela polissemia do bacalhau e pela cultura intrinsecamente masculina, perpetuada desde o século XV, quando os barcos pesqueiros começaram a sair do Tejo para a Terra Nova.
Devotos do bacalhau
Na busca pelo caminho marítimo para a Índia, as potências europeias deram com uma terra muito mais fria, mas carregada de peixe. Os ingleses dominaram boa parte desse território — hoje canadiano, St. John’s ou São João da Terra Nova — antes da chegada portuguesa que só se deteve na pesca do bacalhau até encontrar outras rotas mais lucrativas. É por isto que, mais tarde, no século XIX, estes pescadores são lembrados, pelos historiadores, como os intrépidos heróis que antecederam a expansão marítima.
O bacalhau aparece desde o século XV nas notas de compras de orfanatos, hospitais, misericórdias e segundo os investigadores José M. Sobral e Patrícia Rodrigues, no ensaio O “fiel amigo”: o bacalhau e a identidade portuguesa, é do século XVI o nome “remédio dos pobres” para falar do bacalhau. A subida às mesas nobres nos séculos XVII e XVIII e, escreve Álvaro Garrido, “começou aí a sua diversificação culinária, fator decisivo da sua difusão, ou do seu «triunfo social». Na segunda metade do século XVIII, o bacalhau já se tornara um alimento de todos os dias, em especial devido à interdição do consumo de carne durante os longos dias de jejum e abstinência. As prescrições católicas, a tradição cristã e a cultura judaica ajudaram a fixar um largo consumo de bacalhau, um peixe acessível, de fácil conservação e muito rico em proteína.”
A devoção do país tinha um rigor que chocava alguns ingleses e alegrava outros, já que, desde o século XVII, dominavam o comércio do bacalhau em Portugal. A religiosidade explica a primeira aparição do bacalhau na pintura: uma natureza morta do século XVII, de Josefa de Óbidos, que mostra uma mesa da quaresma. O bacalhau está pendurado em primeiro plano.
A presença do bacalhau na mesa de natal tem uma clara relação com o jejum religioso, mas é menos clara a razão da sua generalização por todo o país da noite de 24. No Alentejo ou o barrocal algarvio fazia-se maioritariamente uma refeição leve antes da missa do galo, consolada posteriormente com enchidos e carnes fritas ou assadas. Em Castelo de Vide, por exemplo, a alhada de cação com nozes é o prato tradicional, lembra Maria de Lourdes Modesto no livro Coisas que Eu Sei. A sua teoria é que a vulgarização do bacalhau nas consoadas do país é uma cópia da mesa de Natal minhota.
Tradições novas
Escrevia Ramalho Ortigão que “há um só banquete que desbanca todos os jantares de Paris, mas que os desbanca inteiramente: é a ceia da véspera de Natal nas nossas terras do Minho”. Em 2012, ao Público, Maria de Lourdes Modesto acrescentava: “O bacalhau, que é uma grande paixão dos portugueses, é que esteve na base da mudança”, diz sobre o aumento do consumo de bacalhau nesta noite. Segundo a AIB, metade do consumo anual de bacalhau dos portugueses acontece nos últimos quatro meses do ano. “Também os órgãos de comunicação tiveram uma grande influência,” continua, “e eu também não me tiro de fora”, com as “sumptuosas consoadas minhotas que todos os anos preparava para os programas na RTP”, entre 1958 e 1970.
O bacalhau seco é um produto político, mas não vale a pena depreciar o gosto que se herda. Justifica que não se abandone este peixe, mesmo quando está caro, e que os humores borbulhem quando se fala em pastéis de bacalhau recheados. Em 2015, a Casa Portuguesa do Pastel de Bacalhau, marca acabada de nascer na Rua Augusta, Lisboa, lançava os seus codfish cakes with Serra da Estrela cheese, um produto apresentado como português, mas que soa melhor em inglês — ou pelo menos assim causaria menos arrepios a Maria de Lourdes Modesto, uma das vozes que prontamente se insurgiram.
A marca conta agora com onze pontos de venda entre Porto e Lisboa, em zonas de alto valor turístico. A Norte, uma das suas montras é a histórica Casa Oriental que assim deixou de ter os memoráveis bacalhaus pendurados à porta. Em Lisboa, no coração da Rua Augusta, numa das paredes do fundo, uma pintura de Graça Morais mostra um bacalhau fantasmagórico, com ar de corpo ressuscitado. É o fiel amigo de outras vidas.