Um grupo de velhos à espera da morte. Dito curto e grosso é isto que gira em torno da terceira parte de “O Nosso Desporto Preferido”, tetralogia de Gonçalo Waddington que conhece “O Futuro Próximo”, a partir do próximo dia 5 de dezembro, no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa. É uma distopia com direito a grande líder, com desejo de eternidades, que faz saltar os interruptores de assuntos como a eutanásia ou aquilo que se espera encontrar do lado de lá.
Mas bom, essas conjunturas são só para arranque de conversa. Gonçalo Waddington é uma das pessoas mais interessadas e conhecedores de assuntos vários com quem já nos cruzámos. Muitas das suas respostas começam com “no outro dia li uma notícia que”, “vi uma publicação de um gajo no twitter”. É um poço de referências que o próprio tenta camuflar para fugir do epíteto de name-dropper. Mas nem por isso. Chamemos as coisas pelos nomes. Gonçalo Waddington é um nerd. Perguntem-lhe sobre astrofísica, a ver se não querem virar astronautas. É, acima de tudo, um apaixonado pela conversa e um homem de princípios e que, como tantos outros, coleciona uma série de irritações. Quem não lhe entende o sarcasmo, sobretudo nas redes sociais, talvez possa ficar para ler as próximas linhas.
A primeira fase da infância foi passada na floresta, na Venezuela, onde os pais trabalhavam na construção de uma barragem. Depois instalar-se na Portela, Lisboa, onde viveu aquele centro comercial que tanto diz a tanta gente. E seguiu para a zona de Oeiras, Carcavelos e Cascais, onde se tornou sócio de todos os clubes de vídeo e viu cinema independente de vários pontos do globo (já por ali dava indícios de geek). Certo dia, quando um amigo entrou com uma T-shirt a dizer “Escola Profissional de Teatro de Cascais”, ligou-se um outro interruptor para Gonçalo Waddington. E ainda bem que não desistiu quando lhe disseram que não tinha voz para ser ator. Diz que gosta de estar perante contrariedades. Que lhe apareçam mais. Sem maldade, claro.
Este “O Futuro Próximo – O Nosso Desporto Preferido” é o terceiro capítulo de uma tetralogia que tem como base a evolução humana como espécie universal. Isto veio de onde?
Apareceu algures em 2014, quando acabei a primeira peça que escrevi e encenei e que se chamava “Albertine, o Continente Celeste”. Aquilo era a partir do Em Busca do Tempo Perdido, do Proust, inventei uma espécie de Proust para espraiar sobre as questões do tempo, o tempo da memória, psicológico, mas também o tempo físico. Hoje em dia, o Marcel Proust seria um tipo informadíssimo, imagino que ele consumiria toda esta nova astrofísica e mecânica quântica. Nessas pesquisas li uma data de livros e um deles era o Time Reborn, do Lee Smolin, e o que ele diz é que, a uma dada altura, o tempo não era um fator, não existia, era uma perceção mental, ainda que depois, mais à frente, tenha renascido muito devido à mecânica quântica. A segunda lei da termodinâmica, julgo eu, diz que existe uma coisa chamada “entropia”, que é a tendência das coisas para se desorganizarem. Epá, pronto, estou a falar muito, mas é para contextualizar.
Sem problema.
Ao ler essas coisas todas deparei-me com a Escala de Kardashev, um cientista russo que faz uma previsão da tua evolução civilizacional, mas com base nos progressos de consumo de energia. Ele diz que uma civilização do tipo 1 tem uma língua comum, tem um meio de comunicação único entre toda a gente, já consegue prever e tirar uso de todos os fenómenos meteorológicos. E nós já temos uma língua comum, que é o inglês, um meio de comunicação comum que é a internet, estamos quase a dominar todos os fenómenos meteorológicos. Uma civilização do tipo 2 já vai buscar energia à própria estrela, e uma civilização do tipo 3 já é intergalática. Por essa altura também li vários livros do Houellebecq e li ainda O Admirável Mundo Novo, do [Aldous] Huxley. Ou seja, tudo o que vemos como distópico deixa de ser assim tão distópico. Basta pensar no Elon Musk e outros malucos com muito dinheiro que estão a investir biliões em investigação aeroespacial.
Antes que isto acabe, não é?
No outro dia li uma entrevista do Terry Gilliam [realizador, ex-Monty Python] onde o gajo dizia uma cena gira, que se calhar era dar o poder aos gajos que são pró-vida e serem eles a escolher quem é que morre, quem é que fica e quem é que vai. Bom, a minha personagem neste espectáculo, o Michel, tem uma entrada num veículo especial, vem com um roupão, mesmo com uma roupa à grande líder. E no outro dia o Trump postou uma fotografia linda que é o Rocky Balboa com a cabeça dele. Mais distópico que isto é impossível. Portanto, a minha peça não é assim tão estúpida quanto isso. Há ali umas brechas sobre liderança, sobre arrastar coisas.
Ao mesmo tempo em que tem, no espectáculo, o tópico da evolução, também há o espectro da morte. São indissociáveis?
Estes mesmos tipos de que estamos a falar são os que estão a investir rios de dinheiro para que nos possamos preservar, como é que não envelhecemos. Este espectáculo é também uma brincadeira com a ciência e com a própria arte, há cem anos a física experimental não tinha maneira de comprovar, era até gozada, pensemos em cientistas que morreram, que queimaram as pestanas por uma causa e que, se calhar, antes de morrerem pensaram…
Do que é que valeu isto tudo?
Isso. E na arte a mesma coisa, o Proust morreu com muita gente a questionar aqueles volumes, sem perceber que aquilo era uma catedral.
Tem medo de morrer assim?
Não, não tem que ver com isso, é mais, às vezes, aquele sentimento de estar a fazer isto tudo para quem? É o efeito paralaxe de nos afastarmos e vermos as coisas, porque quando estamos a escrever parece que estamos com uma máscara, num barco ou num aquário mergulhado e ninguém nos está a ver, está ali um gajo com o rabo para o ar e quando se tira a máscara “vocês não estão a ver isto? é do caraças”. E de repente não já não se veem os peixes, já não há nada. Só eu é que estou a ver.
Ninguém acredita.
Sim ou não vivem como eu, porque não têm que viver.
Nesta terceira parte da tetralogia vemos as personagens que a começaram e que agora estão ali, muito mais velhas, quase que à espera da morte que não chega. Gostava que a esperança média de vida fosse mais baixa?
É uma boa pergunta. É assustador pensar que cada vez mais se vive mais tempo. No outro dia li um artigo que à partida era um artigo fiável e que diz que os bebés nascidos nestes dois/três anos têm uma esperança média de vida muito maior, não se chega aos cem, mas vai mais longe do que antes. E isso tem implicações, como por exemplo: antes da Revolução Industrial os hábitos de dormir eram diferentes. As pessoas dormiam e acordavam às duas da manhã para falar, para pinar, para comer, depois iam dormir mais um bocado, esta ideia de dormir tudo de uma vez só não era assim, quando começou esta coisa dos horários laborais e do picar o ponto e tal, claro, as pessoas tinham que chegar a casa comer e tal e pronto, tinham que dormir a noite inteira.
No fundo, o Capitalismo.
Sim, é verdade. E a robotização e a mecanização vai tirar muito trabalho, não vamos poder ser uma sociedade de trabalho, isso não vai ser possível, vão-se matar as pessoas todas que vão ficar sem emprego? Não podes.
Há até aquelas fábricas do Elon Musk praticamente independentes do uso humano.
Por exemplo. Isso versus as fábricas onde os trabalhadores lá estão trancados à força e dali não saem. Uma das coisas mais fantásticas que li foi um livro de um trabalhador de uma fábrica de tecnologia na China, aquilo são poemas que ele escrevia quando estava lá trancado. Trabalhavam 17 horas por dia, dormiam em condições surreais, aquilo eram tantos andares que tiveram que meter grades em todas as escadas porque às tantas a malta se atirava.
Basta pensarmos que nos primórdios da escravatura o único meio que o escravo tinha para se libertar do seu senhor era o suicídio.
Nem mais.
Quando vi o ensaio do “O Futuro Próximo – O Nosso Desporto Preferido” pensei que é impossível não pensarmos em eutanásia. Deduzo que seja algo que o preocupa.
Claro que sim, ainda me lembro quando foi a votação da Lei do Aborto, “era a favor ou contra a despenalização?”, acho que é uma discussão legítima, atenção, discutir é legítimo, mas um dos argumentos mais falaciosos é: “esses gajos são a favor do aborto”. Não. Ninguém é a favor do aborto. E quando se entra nesse género de argumentação André Ventura, digno de Capitão Falcão, até, “essas pessoas acordam de manhã e vão fazer um aborto como quem vai passear”. Não é nada disso. A eutanásia não pode ser esta coisa do hoje estou deprimido e vou a um hospital e digo “olhe, se faz favor, quero morrer, está bem?”. Não é assim, claro que não é meter uma moeda e agora vou-me matar.
Mas é um assunto que já foi ao Parlamento e parece que em Portugal ainda não estamos preparados para discutir o assunto.
É verdade, não estamos.
E para si, é prioritário?
Claro que é. E é prioritário discutir que não pode ser assim à balda. E acho muito importante poder-se escolher, é disso que se trata.
O início desta conversa serviu para comprovar algo que tinha pensado perguntar-lhe. Há uns meses entrevistei a Carla Maciel [atriz e mulher de Gonçalo Waddington] para o Observador e ela disse-me que o Gonçalo era muito interessado nestas questões do cosmos. Portanto: tem no “2001 – Odisseia no Espaço” um dos seus filmes preferidos?
Claramente. Epá, como não? Esse filme aparentemente é um encontro de uma civilização do tipo 1 com uma civilização do tipo 3. Só que o Kubrick cortou toda a parte inicial, ele tinha mais, mas a ideia daquele monólito é: como é que as civilizações se expandem? Expandem-se mandando naves, robots que chegam ao sítio criam uma base e depois vão para lá pessoas. É uma civilização de tipo 3 que põe uma cena toda XPTO e cheia de informação, só que a primeira vez que foi encontrada foi por primatas, não tinham ainda capacidade para reconhecer aquilo. Aquela cena toda genial do Dave Bowman, dos raios, é ele a contactar com uma civilização do tipo 3. Esse filme é cá um choque, é incrível, então quando se é puto…
Espero que não fique ofendido, mas tendo em conta esta conversa e o número de referências que já mencionou, o Gonçalo é um bocadinho nerd.
É o chamado name-dropping.
Ser assim, ler tanta coisa diferente e ao mesmo tempo, ter esse entusiasmo pelas coisas, não o faz sentir um bocado só?
A mim põe-me é mais ligado ao mundo, à minha maneira. E sim, gosto de saber como é que as coisas funcionam. Ontem, por exemplo, saiu um artigo sobre uma data de bolsas de investigação científica que não foram atribuídas a uma data de investigadores, pessoas com um currículo incrível. A investigação científica é um bocado como a criação cultural: a cultura cresce na cabeça e não se vê, não é como um prédio, não é como a arquitetura, que é arte mais visível, palpável e está lá todos os dias.
O teatro é fugaz.
O teatro ou a literatura que, para todos os efeitos, tem outro sentido.
Apesar de tudo pode-se carregar um livro.
Sim e pode ainda construir-se um livro que tenha mais a ver com a bagagem interior que demorou muito tempo a ser desenvolvida. Mas toda a gente se está a borrifar se ali na Gulbenkian descobriram uma nova bactéria, desde que se um dia eu precisar de uma injeção ela exista. A malta não faz ideia do investimento que é feito por exemplo na Fundação Champalimaud… em todas, de resto… ninguém quer saber, mas quando vão à farmácia já querem saber se há algum remédio para o seu mal.
Por falar em cultura, enquanto consumidor cultural quais são os seus hábitos?
Além do teatro e do cinema, que são coisas que consumo porque faço e porque gosto, livros, música. Na nossa área há uma oferta cultural enorme, há muita gente. Hoje li uma notícia que dizia que o ministro da Administração Interna está em rota de colisão com o Centeno por causa das questões das forças de segurança, porque por terem congelado os aumentos no sector eles já estão com uma diminuição brutal do salário. Inclusive orçamento para eles poderem combater este Movimento Zero que se está a infiltrar e o ministro disse que é preciso mais dinheiro para isso. É óbvio que a sua contestação é profundamente pertinente e quando vemos o lado da cultura é exatamente o mesmo. Criam-se concursos para tudo, há todo o tipo de apoios. Só que depois há não sei quantas estruturas que estão em posição de elegibilidade e que não recebem nada.
O dinheiro não chega.
Exato, é um problema de dinheiro. Proporcionalmente, quando comparados com outros países, isto é uma vergonha.
O Gonçalo é, aliás, um dos nomes que aparece na Plataforma Cultural em Luta e que subscreveu um documento, conhecido há poucos dias, para exigir a demissão da ministra da Cultura, Graça Fonseca.
Assinei, claro que assinei, pelo menos sou coerente. Fico impressionado com a quantidade de estruturas e artistas que andaram a contestar no ano passado e há dois anos e agora estão todos calados. Faz-me alguma impressão, do género “OK já temos o nosso”. Eu tive apoio, mas não vou deixar de dizer que isto não está bem. Não há dinheiro. E a ministra da Cultura tem uma incapacidade total de comunicação com as pessoas, lamento, mas não dá, não é possível.
É um meio, neste sentido, pouco solidário?
Não. Acho que não está organizado. E neste momento, com grande esperteza, este Governo e a ministra estão a conseguir calar algumas bocas. Como é que se explica que estes resultados só aparecem depois das eleições? É absurdo. E portanto estou nisto porque é coerente com aquilo que fiz antes e com as posições que tomei. O que nós temos ao nível da cultura? Isto é uma miséria, porra, qualquer nome bom para Ministro da Cultura, quando se falou nesses nomes, grandes nomes, que agora não quero estar aqui a dizer, mas muitas dessas pessoas são pessoas com um conhecimento e uma sabedoria tão grande que logicamente pensam “para que é que eu vou ser ministro ou secretário de Estado da Cultura com este orçamento?”
Claro, se depois nada conseguem fazer.
Lógico. Querem ser sérios? Nem 1% temos, é uma miséria, estamos a brincar.
Isto leva-me a querer falar da sua utilização do Twitter. Parece que quer deixar clara e pública a sua consciência política.
Há uma coisa que neste momento faço, que é ter mais cuidado com as coisas que digo. Se disser alguma coisa sobre este episódio, por exemplo, do Livre, percebi que há uma data de pessoas que seguem pessoas conhecidas só para poderem utilizar aquilo mais tarde. A quantidade de facholas que existe…
Toda a gente é de extrema-direita na internet?
Há pessoas com quem não dá para dialogar. Portanto, cada vez que escrevo um comentário tenho que ter cuidado para que não existam pessoas como o André Ventura e os seus súbditos, alguns dos quais até são ligados a partidos de esquerda, são pessoas que fazem um aproveitamento ridículo. Mas muita gente acha que sou aquele gajo do “Último a Sair”, asneirento e misógino. Mas espera aí, o que é que não percebeste? E há outra coisa: eu não sou sócio do FC Porto, mas gosto do Porto. E há um dia que comento que isto do futebol está completamente a arrasar os tempos de antena, mais a corrupção, falamos demasiado de futebol, mas atenção, gosto de ver futebol e gosto do Porto, mas se há indícios de corrupção nos clubes de futebol, epá, vamos lá tentar perceber. E pronto, uma vez fiz um comentário qualquer que nem era nada de especial e apareceu logo um tipo a dizer que eu era um farsola. Enfim…
[Gonçalo Waddington em “O Último a Sair”:]
Uma das últimas coisas que escreveu no Twitter foi: “Preocupada, blogger vegan que entrou na menopausa antes dos quarenta decidiu consultar especialista em medicina tradicional chinesa que lhe disse para voltar a consumir produtos de origem animal. Vamos todos morrer de estupidez contagiosa.”
A piada está feita. Blogger, vegan, volta a comer carne, epá, até o gajo da medicina tradicional chinesa diz que se calhar é melhor. Na volta, o facto de só comeres certas coisas… Há uma coisa chamada “ciência”, vamos parar de negá-la. Portanto, é muito mais fácil voltar aos tempos antigos e dizer que está a chover porque Deus está triste. Parem lá de negar a ciência. Se calhar estes fogos todos na Austrália já são um bocadinho fora do comum, se calhar os fogos todos na Califórnia já são um bocadinho fora do comum.
Eventualmente, há quem possa ler este seu post da blogger vegan e pensar que o Gonçalo é contra o veganismo.
Claro que há, mas não sou, de todo, num universo de 140 mil seguidores se calhar 14 mil ou 14, se calhar 140 percebem que estou a brincar. Quando fazemos uma dieta de carbohidratos aqui em Portugal uma das coisas que dizem é para não se comer arroz, porque o arroz engorda, mas como é que isso se explica na Mongólia ou na China? Na China há uma enzima qualquer nessas pessoas que queima logo essas propriedades do arroz, portanto pode-se comer muito arroz que nunca vai ter o mesmo efeito. Cada um pode comer certas coisas e outras não. Como é que se explica que alguém que come um morango possa morrer? É uma coisa chamada “ciência”. Na volta, essa pessoa precisava de fazer uma dieta mais mediterrânica. E isso relaciona-se com o espectáculo que vamos agora apresentar, porque isto que estamos a falar compara-se quase com a ideia de seita. Isso pode ser tudo certo, mas há vida, porra, há comer, há sexo.
Numa entrevista recente disse que havia muito do público português que o via como o tipo do humor.
Sim e eu percebo, mas é engraçado, fiz tantas coisas na televisão. Fiz muitas telenovelas, fiz várias séries do Moita Flores, fiz “Esquadra de Polícia”, fiz “A Raia dos Medos”, fiz o “Conde d’Abranhos”, fiz tanta coisa. Tinha feito “Os Contemporâneos” e depois fiz o “Último a Sair” e depois ainda fiz o “Odisseia”. Estas coisas ficaram. Mas acho que isso tem que ver com diferentes públicos, mas claro que o grande público, que vê televisão, obviamente associa-me ao humor.
[Gonçalo Waddington em “Os Contemporâneos”:]
E no Twitter abusa do humor.
Sim, acho piada ao sarcasmo, como não? Não me vou pôr ali com grandes discursos filosóficos, isso não.
Mas não acha que o seu nome, em certos casos, dá jeito para atrair público? Isto é, gente que nunca ligou muito ao que fez em teatro e que agora, porque o conhece, vem ver este espectáculo.
Não consigo ter acesso a esses dados. Mas malta que vê o “Odisseia” não é necessariamente a mesma que vê o “Último a Sair”, é claro que há alguns que fazem essa ponte, mas o “Último a Sair” é muito mais geral. Há pessoas que sabem claramente que aquilo é uma sátira e acham uma ideia genial, há quem acredite naquilo e outros gostam só pela estupidez. Mas sim, acho que serve de alguma maneira como chamariz. Há uma coisa que sei, nos diferentes meios tenho pessoas diferentes. Há pessoas que já acompanham o nosso trabalho, meu e da Carla, no teatro, independentemente do que veem no cinema ou na televisão. Portanto, há seguidores só do teatro e que não misturam as coisas, no teatro há muito público.
Acaba por ser apreciado em todos os meios.
Ou detestado. Depende do gosto de cada um.
Por falar em detestado, há uma coisa da qual sempre quis falar consigo. Sobre um vídeo que já vi muitas vezes do espectáculo que tinha com o Tiago Rodrigues, “O que se leva desta vida”, no São Luiz. Um dia, um grupo de idosos foi ver o espectáculo e aquilo não correu bem.
A história é a seguinte: alguém do INATEL achou por bem comprar a sala naquela noite para aquele espectáculo e trazer 600 idosos, o espectáculo começou com meia-hora de atraso porque eram literalmente autocarros a parar porque vieram de todo o lado. Aquilo tinha muita asneira, mas não era nada de mal, eram asneiras.
Como numa boa cozinha, o espectáculo decorria numa cozinha e vocês eram dois chefs.
Claro. E aquilo não eram só asneiras, tinha ideias e às tantas os dois tipos zangavam-se porque tinham os dois egos muito grandes. Mas às tantas, os idosos começam a vaiar, a levantar as bengalas, a mandarem-nos calar, nós a meio de uma cena até combinámos fugir ou coisa assim, mas não parámos o espectáculo.
Como é que um ator se sente num momento assim?
Foi muito estranho, a gente ria-se e tal, mas foi mesmo estranho. E pronto havia um cameraman em palco connosco que era para as pessoas verem os pormenores do que estávamos a cozinhar. Quando acaba o espectáculo, o gajo diz que vai lá fora fazer um vox-pop. E ainda voltou para filmar a nossa reação. Quando vejo o vídeo que ele montou em casa, foi mesmo giro, os velhotes todos a dizer “em vez de ensinarem o A e o B aos nossos jovens, por isso é que eles andam na droga”. E alguém a dizer “os atores não têm culpa, a culpa é de quem escreveu”. Fomos nós que escrevemos. Mas aquelas pessoas não têm culpa, quem é que foi o gajo que foi ver aquela peça ou então não foi ver, leu que era uma peça portuguesa sobre cozinha e achou que eram duas pessoas a falar de bacalhau? Não era isso. Ou então, respect para a pessoa do INATEL que disse: “agora vão levar com isto”. Se foi mesmo de propósito, respect. Mas pelo menos, eles sentiram-se vivos, eles gritaram, eles estavam tão irados que se sentiram vivos. Uma vergonha, uma vergonha. E no fim, a última pessoa que aparece, também idosa, diz-nos: “Tenho muita vergonha do que se passou aqui hoje, gostei muito do espectáculo e não quero acreditar”. Foi dos melhores momentos que guardo na vida, não duvides.
Deixando agora o lado mais humorístico, pelos vistos também tem um lado mais sério.
Diz que sim.
Queria que me falasse do “Patrick”, a sua primeira longa-metragem. Como é que aparece a ideia do filme?
A primeira imagem que tive, que acho que está na génese do projeto, deve ter sido em 95 ou 96. Li uma notícia em que uma rapariga, uma jovem mulher, foi encontrada no Norte de Espanha, estava descalça, tinha os pés já ensanguentados, esteve a caminhar durante muito tempo. Veio-se a perceber que à medida que via um carro, como não sabia se era alguém que a estava a perseguir, se ia escondendo e quando percebia que era alguém em quem podia confiar lá aparecia. Depois foi realmente apanhada por alguém, contou a história e a polícia foi lá e aquilo era uma casa de alterne no meio do nada, algumas raparigas menores e era tráfico de seres humanos. Ela fugiu por uma janela daquelas muito pequenas, segundo o que me lembro. Essa ideia de alguém que foge em completo terror de uma situação de aprisionamento ficou-me na memória. Só que na altura não tinha maturidade suficiente.
[o trailer de “Patrick”:]
O que se passou entretanto para que tenha concretizado a história?
Quando falo de maturidade é no sentido de ter de continuar a história, imaginar, com sentido, o que viria depois. Em 1998, houve o caso do Rui Pedro. Houve um filme, o primeiro filme em que entrei, o “Alice”, do Marco Martins, do ponto de vista dos pais. E a minha ideia foi pensar onde é que está o miúdo, o que se está a passar com ele. Mais tarde, quando li a Oresteia, Orestes desaparece quando era pequeno para não ser morto, quando volta vem com outro nome, volta disfarçado e pensei que se quero pensar em alguém que esteve numa situação de rapto o que me interessa é mostrar o depois. Que repercussões é que isso vai ter na identidade da pessoa. Portanto, é um rapaz que por causa de um episódio mais infeliz da sua vida em Paris vai parar à prisão e quando o interrogam no meio das questões processuais descobrem que ele não se chama Patrick e sim Mário e desapareceu há não sei quantos anos de Portugal. E, de repente, a primeira grande mudança do filme é como é que um rapaz que não está com a família há dez anos volta a dar-se com a mesma? Sobretudo porque ele não queria voltar para lá, ele queria era estar perto de outras pessoas, nomeadamente do seu raptor, com quem ele teve uma ligação muito forte. Foi aí que tive a iluminação da história. Mas é puramente ficcional.
Já passou pelo LEFFEST, em San Sebastián…
Sim, estreou-se na competição oficial do Festival de San Sebastián, esteve na Mostra de São Paulo, esteve num festival de cinema na Alemanha, no LEFFEST. E em Março estreia-se nas salas.
É a primeira coisa que tem assim em festivais internacionais?
A minha primeira curta estreou-se no Festival de Las Palmas, foi fixe, e ainda andou no Indie e noutros festivais. Mas sim, num festival de classe A como é San Sebastián é a primeira vez. Aquilo é uma cena intensa e é uma máquina. A sala onde foi estreado levava 1800 pessoas, é intenso. Muito poucas pessoas saíram, no meio de um filme é normal em festivais as pessoas saírem, não estás a gostar vais ver outro, mas ali não aconteceu. Admito que aquela coisa da passadeira vermelha é um bocado avassaladora, fotos e mais fotos e depois sais e entras com o diretor do festival. E depois, quando me sento, já depois de muita gente se sentar, acende-se um projetor na minha tromba e alguém me disse “levanta-te” e aí pronto, olhei à volta e era um mar de gente. E depois a cidade é incrível, foi a quinta vez que fui a San Sebastián.
Quinta?
É verdade. A primeira vez foi com um amigo, tinha 18 anos, demorámos 14 horas. Fomos de carro ver um jogo do Real Sociedade com o Barcelona, Figo contra o Sá Pinto, para descobrirmos às oito da manhã que o Figo não jogava nesse dia, estava lesionado. Mas fomos na mesma. Depois fui lá duas vezes com o Tiago Rodrigues, primeira fomos entrevistar chefs e comemos nas cozinhas deles. E a terceira foi quando o Arzak e o Berasategui nos convidaram para estagiar lá uns dias. Queríamos comer a comida que o staff da cozinha fazia para eles, mas o Berasategui não nos deixou, foram três dias a comer o menu de degustação dele. Nunca me hei de esquecer.
“O que se leva desta vida”, no fundo.
É mesmo. E a quarta vez foi com a minha primeira encenação, o “Rosmersholm”, do Ibsen. Foi muito fixe passar lá uns dias, montar o cenário, fazê-lo, foi incrível.
Tem, portanto, uma ligação óbvia com a cidade.
Sim, claro, come-se lindamente, aquilo é lindo, a malta é muito porreira. Fazia esta vida de festivais muito bem.
E podia fazer como o grande Miguel Borges: aparecer na passadeira vermelha, em Veneza, de T-shirt, calções e havaianas.
É mesmo isso, fazia isso na boa, enorme Miguel Borges.
Falando mais do seu lado pessoal. Como e onde cresceu?
A primeira parte da minha infância vivi na Venezuela, no meio do mato, por causa da empresa onde os meus pais trabalhavam, tinha a ver com barragens, pinturas anti-corrosivas. Eles tinham feito a Barragem de Cahora Bassa, em Moçambique, e depois em 1974 saíram do país, porque chatearam o meu pai porque ele era um oficial e os oficiais foram perseguidos por lá nessa altura, os seus amigos da FRELIMO avisaram-no para não haver chatice. Chegaram a Portugal e isto era um atraso de vida. Depois foram fazer uma barragem para a Guatemala, nasci e fiquei em Portugal durante um ano e depois passaram para a Venezuela, onde fiquei até aos 7 ou 8 anos.
A sua primeira língua é?
Foi o portunhol, português com castelhano. Morávamos num condomínio alphaville, tipicamente americano porque o consórcio ela liderado por americanos. A primeira parte da obra daquela barragem foi feita por uns gajos que viveram lá em tendas, foram eles que fizeram os sítios onde os outros trabalhadores iam viver e depois ainda fizeram lojas, centros comerciais, escolas. Os meus pais já sabiam que iam para ali dez anos antes de irem.
Zona rural?
Floresta densa, era mato mesmo. Esse condomínio alphaville tinha cercas e redes porque aquilo não tinha poucos animais à volta, cobras e tudo o resto. Uma vez eu e o meu irmão, mais uns putos, saímos por uma rede e fomos apanhar jacarés ou crocodilos bebés. Onde há crocodilos bebés normalmente há mães. E muitas vezes íamos passear para uma ilha fluvial que havia no meio do Rio Orinoco, tínhamos que atravessar umas bossas que eram os índios Guaica que habitavam e que nos serviam sopa de iguana e que apanhavam tarântulas e comiam.
A sério?
Sim, os meus pais chegaram a comer tarântulas e diziam que aquilo era excecional, que tinha uma carninha muito boa lá no meio. Era um consórcio gigante de empresas de todo o mundo, havia chilenos, peruanos, portugueses, espanhóis… essas pessoas foram-se juntando. Havia festas todos os fins de semana. Os meus pais eram novos, tinham 30 e tais, eram putos. Tenho hoje pessoas a que chamo tios que eram amigos dos meus pais nessa altura. Malta do Chile, Peru, Argentina. E andava no Colégio Positivo, que ainda hoje existe no Brasil, instalam-se no mundo inteiro e pronto, como qualquer escola bilíngue, metade é para os nativos e metade é para os brasileiros. O nosso português já era bastante abrasileirado e os meus pais falavam castelhano a maior parte do tempo. É claro que depois nós, eu e o meu irmão, fomos crescendo e eles pensaram que se não viessem para Portugal nós não teríamos essa relação com o país.
E voltaram.
Sim, o que não foi fixe no primeiro ano ou assim. Ele veio para a quarta classe e eu para a primeira, com uns professores muito facholas… foi um grande choque. Viemos viver para a Portela de Sacavém, e disso tenho boas memórias, de muita malta que era de lá. O Ivo Canelas, a Crista Alfaiate, o Marco e o Sérgio Delgado eram meus vizinhos da frente, só que eram de outra idade. O centro comercial. No centro comercial e havia indianos a vender caril, a maior sala de jogos, mais os cafés onde a malta jogava flippers.
Teria que idade?
Talvez até aos 12. Depois fui para Oeiras, mas continuei ligado aos amigos de lá. O meu irmão tinha a banda lá e assim. A Portela é um sítio muito fixe para crescer. Depois fui para Oeiras, e aterrámos finalmente em Cascais.
Quando é que aparece o teatro?
Das coisas que tenho mesmo muito boa memória é do cinema do centro comercial de Carcavelos, que ainda hoje existe, o Atlântida. Sempre teve uma boa programação — e já apanhei o CascaiShopping a bombar — e tínhamos carro e tal. Vínhamos também a Lisboa ver coisas boas, lembro-me de virmos às Amoreiras ver o “Fire Walk With Me”, do universo Twin Peaks, era tudo malta muito passada com o Twin Peaks. E depois era a RTP2 e o Cinco Noites, Cinco Filmes, era incrível. E aí lembro-me de ver “O Ano Passado em Marienbad” do Alain Resnais, nem sabia o que estava ver.
Tinha que idade?
Uns 14, foi um chuto na tola. Foi a primeira vez que vi o “Citizen Kane”. E o grande acontecimento que foi “O Império dos Sentidos”, lembro-me muito bem. Vi Fellini, vi tanta coisa, a RTP2 foi uma coisa que me marcou imenso. E outra coisa que marcou naquela grupeta toda que tinham bandas, ir ao ensaio daquele, beber copos com o outro, fumar umas… E outra coisa que havia era os clubes de vídeos, havia em todo lado, em Tires, em Carcavelos, e éramos sócios de tudo, alugávamos e íamos ver em companhia para a garagem de não sei quem. Foi nessa altura que descobri muito cinema independente americano e inglês. Paguei foi muitas multas, porque nunca sabíamos quem é que tinha ficado com o filme.
Perante essa inquietação tinha que ir para a Escola Profissional de Cascais…
Exato. Estava no 11.º ano de humanísticas, jornalismo…
Fez muito bem em ir por outro caminho.
Mas tinha um professor de jornalismo brasileiro que vivia cá em Portugal há muitos anos e que nos obrigou a ler o “Watergate”. E eu adorava aquilo, ele era muito bom professor. Mas mudei de escola e não apanhei grandes professores, estava muito descontente e os meus pais nunca me pediram muitas contas da vida, era “passaste ou não?”. E há um dia em que um amigo entra com uma T-shirt a dizer “Escola Profissional de Teatro de Cascais”. E eu logo, “o que é isso?”, e ele a dizer que aquilo era do irmão que andava lá. No momento, saí dali e agarrei nas Páginas Amarelas, era maio. Fui lá inscrever-me no verão, para entrar no outro ano letivo. E na altura eles disseram que eu não podia ser ator, que não tinha voz. E eu irritado: “Então isto não é uma escola?”. Enfim, a sorte é que o primeiro ano englobava interpretação, iluminação e cenografia, eu tinha ficado na merda por não ter entrado. Só que uma miúda, a Flora, uma atriz que cantava muito bem, disse-me: “Não sejas burro, vai para cenografia e depois para o ano, se tiveres jeito, trocas”. Sempre fui bom com contrariedades e a verdade é que depois a meio do ano lá me disseram que podia ir para interpretação…
Challenge accepted.
Exatamente. Depois também desisti, nunca acabei. Mas sabia que era aquilo. Estava bem ali.