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Entrevista com o Almirante Henrique ​​​​​​​​​​​​​​​​​​​Gouveia e Melo, Chefe do Estado-Maior da Armada, fotografado nas instalações centrais da Marinha. Lisboa, 12 de Julho de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR
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FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

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Gouveia e Melo em Belém? "Logo se vê o que acontece. Gostava que não me fizessem a mesma pergunta 300 vezes"

Entrevista. Quer fazer uma "revolução, no bom sentido", na Marinha. E admite que faltam militares, mas isso não o impede de fazer mais e melhor — apenas diferente. "Esse caminho começou a ser feito."

Assume-se como um “xadrezista”, mas recusa ser um peão no tema que ocupou o debate público de cada vez que o seu nome é referido. “Essas preocupações soam-me até estranhas vindas de determinados setores.” Belém é um tema para o qual, garante, não perde tempo a olhar. “Neste momento.”

Já levava mais de 30 anos na Marinha, mas foi a pandemia — e as funções que assumiu como coordenador do processo de vacinação — que o catapultou para as aberturas de telejornais e para as manchetes. Nos corredores da Rua do Arsenal, onde tem o seu gabinete de Chefe de Estado Maior da Armada (CEMA), comenta-se que nunca por ali passou um comandante tão mediático como Gouveia e Melo. “As pessoas vão ter com ele e dizem-lhe que é um herói, por aquilo que fez com as vacinas.”

Promovido a almirante, e há seis meses na chefia daquele ramo das forças armadas, Gouveia e Melo diz que foi apenas a “ponte do icebergue” nessa missão que passou por vacinar praticamente 10 milhões de portugueses em menos de um ano. Mas esse “sucesso” reconhecido internacionalmente arrastou consigo a ideia de que, no horizonte, o CEMA poderia alimentar algum tipo de ambições políticas. “Sou militar, estou a fazer uma missão militar, estou muito satisfeito com o que estou a fazer, sinto-me plenamente realizado”, diz ao Observador a propósito da pressão mediática que o apresenta insistentemente como tendo um olho na Presidência da República, numa entrevista em que, a pedido do próprio, o tema da guerra não podia constar do conjunto de temas a abordar.

Sobre o futuro, decidirá quando tiver de decidir — e se tiver de decidir. Agora, Gouveia e Melo garante que está concentrado na missão que tem dentro da sua casa, a Marinha, e na “revolução” que pretende fazer para torná-la “mais aberta à sociedade” e para que não esteja “só focada nas missões militares”.

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Ouça aqui a entrevista em podcast.

“Sou um dos chefes que quer fazer uma revolução”

“Sempre achei que a imaginação e capacidade criativa são elementos essenciais do comando e da liderança”

Seis meses depois de assumir a coordenação da task force, cerca de 70% da população em Portugal estava vacinada. Portugal liderava a vacinação a nível mundial. E agora, que está há cerca de meio ano no comando da Marinha, já conseguiu deixar alguma marca no ramo?
A questão não é deixar uma marca na Marinha. A questão é se consegui começar a fazer o novo caminho que sempre desejei que a Marinha fizesse e que esse desejo se manifestasse em coisas concretas. E a sensação que tenho, olhando para o que fiz e que a Marinha está a fazer é que esse caminho começou a ser feito. Há uma inflexão sobre os processos anteriores no sentido de uma nova liderança, que é a minha, para um caminho que sempre desejei como alternativo para a Marinha.

Para que tipo de Marinha?
Uma Marinha mais holística. Isto significa uma Marinha mais aberta à sociedade, que não seja só focada nas missões militares mas muito mais focada em empurrar e catalisar toda a atividade do Estado português no mar, empurrando de alguma forma a sociedade para o mar, ajudando a catalisar uma nova economia do mar, novas tecnologias — e é isso que comecei a fazer com algum sucesso.

Já vamos pormenorizar essas ideias para o mar. Disse que é um caminho que começa a ser feito, são seis meses. Tem sentido dificuldades em implementar a sua ideia para a Marinha?
Em todas as mudanças há muitas resistências mas também muitas adesões. As dificuldades são naturais. Quem não tiver dificuldades também não consegue liderar nada.

"As dificuldades são naturais. Quem não tiver dificuldades também não consegue liderar nada."

Que dificuldades são essas?
Há dificuldades no sentido em que fazer um novo caminho, abrir novas perspetivas, obriga a coordenar muitas vontades, obriga a entrar parceiros fora da Marinha que nos ajudem a levar este novo desígnio que é o mar. Claro que com a ajuda do Governo, que apoia todas estas iniciativas.

É impossível fazer esse caminho de costas voltadas para o Governo.
Isso é impossível. É importante que o Governo apoie estas iniciativas — e tem-nas apoiado — que passam por virar o país mais para o Atlântico. E, virando o país para o Atlântico, ganhar uma nova centralidade geoestratégica.

Seja qual for a missão, há um ponto fundamental que é a questão dos recursos para desempenhar a missão. A falta de recursos humanos tem marcado de forma transversal as Forças Armadas portuguesas, e em particular a Marinha. Isso é um problema premente?
Os recursos são sempre escassos. Mesmo quando não o são, as organizações julgam que estão sempre em escassez de recursos porque têm a ambição de fazer sempre mais. O que digo é que, com os recursos que me dão, a minha obrigação é fazer o máximo que posso e conseguir que a minha organização seja o mais eficiente possível. Se o Estado achar que deve alocar mais recursos, eles serão todos bem utilizados. Se achar que deve só alocar os recursos que tem alocado até agora, o que tentarei é conseguir fazer o melhor percurso para os objetivos que julgo que unem todos nós, que é olharmos para o mar de uma forma diferente.

"Os nossos ordenados refletem um bocado o que é sociedade portuguesa como um todo. E quem julgar que consegue construir uma mini sociedade privilegiada dentro de outra sociedade está enganado, necessariamente (...) Não podemos ser mercenários."

Isso implica necessariamente fazer escolhas. Tem os homens e as mulheres de que precisa para cumprir as missões que pretendia ou, neste momento, tem de optar por missões e deixar algumas de lado porque não tem recursos?
Sempre achei que a imaginação e capacidade criativa são elementos essenciais do comando e da liderança e, portanto, com as dificuldades que possa vir a ter, dentro dos recursos que desejava ter, essas dificuldades são um incentivo a encontrar soluções diferentes das anteriores. E muitas vezes essas soluções passam por encontrar parcerias e fazer o trabalho com essas parcerias quando antes fazia o trabalho de forma isolada.

E não abdicar de missões?
E não abdicar de missões.

Ainda não teve de abdicar de missões?
Até este momento, não tivemos de abdicar de missões. Aliás, as nossas missões sofreram um incremento, no sentido de sermos mais ambiciosos. Queremos criar tecnologia que depois é aplicada à Marinha mas também, de forma transversal, a todas as atividades marítimas. E, ao desenvolvermos essa tecnologia, desenvolvermos o nosso tecido económico, o nosso tecido industrial, a nossa própria academia, a ciência. E, ao fazermos isso, por incrível que possa parecer, podermos até consumir menos recursos. Porque estamos a aplicar tecnologias nacionais que conseguimos trazer para a organização a preços mais reduzidos e, com isso, fomentar a economia nacional.

Aquilo que me está a dizer choca claramente com o que as associações de oficiais, de sargentos e de praças dizem: faltam militares às Forças Armadas. Isso não é um problema para si?
Que faltam militares às Forças Armadas, julgo que é do conhecimento público e de entendimento generalizado. A ideia de que, para cumprirmos determinados objetivos e missões só o podemos fazer com recurso a mais militares é que é discutível. Por exemplo, uma das minhas linhas de ação é a robotização da nossa atividade. Eu chamo-lhe a robotização da guerra, mas não é da guerra, é da nossa atividade — conseguir fazer com drones e capacidades tecnológicas ações que implicariam muitos mais militares se não tivéssemos essas capacidades. Isso, em si, é uma revolução. É uma revolução da forma de estar. É muito natural que pessoas que não estejam a ver esse caminho achem que, para conseguir fazer determinadas funções, são necessários recursos humanos mais elevados. Temos de procurar níveis de eficácia e eficiência nunca alcançados anteriormente e que a tecnologia hoje nos permite fazer. Um dos meus objetivos básicos é conseguir uma Marinha tecnologicamente avançada. Eu não consigo é com uma Marinha antiquada reduzir os recursos e fazer mais. Temos é de aplicar os recursos humanos de melhor forma, estando eles a operar com novas tecnologias, inteligência artificial, robotização de funções pesadas, utilização de drones para ter maiores capacidades de vigilância de alcance superior nas nossas ações. É este conjunto de ideias que tem de ser implementado para podermos poupar recursos mantendo maior eficácia e eficiência.

Entrevista com o Almirante Henrique ​​​​​​​​​​​​​​​​​​​Gouveia e Melo, Chefe do Estado-Maior da Armada, fotografado nas instalações centrais da Marinha. Lisboa, 12 de Julho de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Gouveia e Melo, 61 anos, é Chefe do Estado Maior da Armada desde dezembro de 2021. "Estou a dar o meu máximo contributo para o cargo e sou um homem feliz"

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Isso exige, pelo menos, a manutenção dos militares que estão em funções. Como é que se consegue garantir que os militares da Marinha não saem antes de terminarem os contratos? Que discurso tem para mostrar que esta é uma carreira interessante?
A Marinha faz parte da sociedade portuguesa e sofre do que a sociedade portuguesa sofre. Não somos um corpo exógeno a essa sociedade. Portanto, os nossos ordenados, as nossas retribuições refletem um bocado o que é sociedade portuguesa como um todo. E quem julgar que consegue construir uma mini sociedade privilegiada dentro de outra sociedade está enganado, necessariamente.

Está a dizer que não há solução para os baixos salários nas Forças Armadas?
A solução vem com a evolução de toda a sociedade. A sociedade tem de evoluir como um todo e nós, que somos militares, que temos como ethos defender o nosso Estado e estar dispostos a grandes sacrifícios pelo nosso Estado, temos de acreditar que, ao ajudar a desenvolver o nosso Estado, ao fazermos as coisas de forma diferente e ao capacitar o Estado para outros níveis de desempenho, haverá benefícios para o próprio Estado que serão distribuídos para a sociedade como um todo e vamos beneficiar disso a médio e longo prazo

“Ninguém compreenderia que os militares ganhassem salários altíssimos e a sociedade não usufruísse das mesmas condições”

Esse discurso do sentido de missão é suficiente para quem pense seguir esta área?
Pode não ser suficiente. Mas também não podemos ser mercenários, há um equilíbrio que tem de ser encontrado. Não lhe vou dizer se é com os salários atuais ou com salários melhores mas também há outras motivações de contexto. Por exemplo: o que é que eu faço no meu dia a dia? Faço coisas interessantes? Estou a progredir nas minhas capacidades? Faço coisas que também são relevantes para a sociedade?

E que vão ser reconhecidas mais tarde…
É o conjunto destas coisas que faz com que as pessoas saiam ou não da organização. Muitas vezes, não é colocando dinheiro em cima dos problemas que eles se resolvem. Não estou a dizer que as remunerações sejam o mais justo ou adequado…

Mas são a questão mais premente?
É premente, mas é para toda a sociedade.

"Não me sinto fragilizado e tenho tido toda a colaboração da organização que lidero. Não me sinto nada fragilizado."

Mas eu pergunto-lhe a si que é o Chefe da Armada.
Nós não somos uma sociedade à parte da sociedade. Ninguém compreenderia que os militares ganhassem salários altíssimos e a sociedade como um todo não usufruísse das mesmas condições. Também não seria justo que os militares fossem prejudicados perante outras profissões idênticas. É esse equilíbrio que tem de ser encontrado e julgo que o Governo está muito atento a esses equilíbrios e que eles hão de ser encontrados naturalmente.

Tem alguma ideia de como esse processo de valorização salarial na Marinha e nos outros ramos se pode fazer?
Estou confiante de que o sistema vai encontrar a solução.

Mas vai ter um papel ativo para encontrar essa solução?
Claro que tenho. Não lhe vou dizer as sugestões que dou dentro da minha organização.

Queria perceber até se dava sugestões ao poder político.
Quando falo na minha organização, falo na organização militar. Claramente, em contacto com o poder político.

Mas esse diálogo existe?
Existe, mas tem de ser feito com os pés assentes na terra e a perceção de que não somos uma micro sociedade dentro de uma sociedade mais alargada. Fazemos parte da sociedade. Há muita gente que tem aspirações de vida e há diversos grupos profissionais que têm de ser atendidos. Mas só podemos fazer isso quando o Estado, como um todo, produzir mais. E para produzir mais temos de ser todos mais eficientes, mais eficazes.

E mais pacientes?
Também mais pacientes.

“Quem perde a batalha pelo controlo do Atlântico perde todas as batalhas a seguir”

Disse que quer um ramo “que consiga operar sistemas complexos no mar, pessoas isoladas das famílias, sem telemóveis, e que tenham resiliência necessária para estar dois meses sem atracar.” Pôs como condição não falar da guerra na Ucrânia, mas o certo é que já falou em público da importância geoestratégica do mar. Que importância é essa em tempos de tensão internacional?
De forma muito simples: a NATO é uma união de defesa que une duas partes do Atlântico, a América do Norte e Canadá, de um lado, e a Europa ocidentalizada, do outro.

Entrevista com o Almirante Henrique ​​​​​​​​​​​​​​​​​​​Gouveia e Melo, Chefe do Estado-Maior da Armada, fotografado nas instalações centrais da Marinha. Lisboa, 12 de Julho de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOREntrevista com o Almirante Henrique ​​​​​​​​​​​​​​​​​​​Gouveia e Melo, Chefe do Estado-Maior da Armada, fotografado nas instalações centrais da Marinha. Lisboa, 12 de Julho de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

"Sou um dos chefes que quer fazer uma revolução. E essa evolução requer sacrifícios, novas formas de atuar, novas formas de pensar o próprio poder que temos perante a organização"

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

E uma união que ganhou vitalidade neste período.
O que une esses dois pedaços de território é um mar chamado Oceano Atlântico. Se o controlo sobre esse oceano se perder, perdemos a batalha logística. E quem perde essa batalha perde todas as batalhas a seguir. Por isso, é necessário garantir que esse Oceano Atlântico continua a servir os interesses desta grande união civilizacional que é a NATO. E, para que isso seja feito, Portugal está numa posição extraordinária para fazer um papel extraordinário.

E que papel a Marinha pode ter aí? Ao ouvi-lo, fica a sensação de que há um discurso militar mas também uma atenção ao lado económico.
Há dois papéis: o militar e o económico. O militar é garantir que as linhas de comunicação leste-oeste no Atlântico são garantidas para esta grande coligação que é a NATO. E nós, com os Açores, com a Madeira e com nosso posicionamento geográfico, temos um papel super relevante. E deve ser feito por nós na máxima extensão possível para não sermos substituídos dentro da própria aliança. Isso seria grave porque iria afunilar as nossas opções dentro das nossas alianças.

E o lado económico da questão?
Parece-me evidente que, se a civilização ocidental não encontrar um mecanismo económico de desenvolvimento forte que permita suportar uma liderança mundial, vai perder essa liderança. E que mecanismo é esse e em que áreas se encontrarão? Além de uma economia global, uma economia centrada no Atlântico Norte e no Atlântico Sul. E aí, através das suas ligações históricas e posicionamento geográfico, Portugal tem vantagens que pode usar enquanto abertura das suas relações geoestratégicas e geoeconómicas. Se não fizer nada, afunila em sentido contrário.

"O processo foi muito simples: convidaram-me para ser o CEMA e eu aceitei o convite. Colocaram-me em funções e eu estou em funções. Nós somos militares, obedecemos ao poder político e é assim que deve ser."

“Não sinto que tenha nenhum poder reduzido”

Queria voltar ao início da sua experiência como CEMA, aos momentos que antecederam o assumir de funções e aos episódios que envolveram o Presidente da República e o seu antecessor. Houve alguma confusão nesse processo. Sente que esses episódios o fragilizaram de alguma forma nas suas funções atuais?
Não me sinto fragilizado e tenho tido toda a colaboração da organização que lidero. Não me sinto nada fragilizado.

Foi promovido entre o Natal e o Ano Novo. Ficou a perceção de que se estava a tentar acelerar a sua colocação na Armada. O processo foi bem conduzido? Falaram consigo?
Para mim, o processo foi muito simples: convidaram-me para ser o CEMA e eu aceitei o convite. Colocaram-me em funções e eu estou em funções. Nós somos militares, obedecemos ao poder político e é assim que deve ser. O poder político decidiu quando decidiu, nas condições em que quis decidir e, uma vez tomada a decisão, nós assumimos as consequências da decisão porque é esse o nosso papel enquanto militares.

Teria preferido que o processo fosse mais tranquilo.
Sobre esse aspeto, não tenho preferências nem despreferências. Se tivesse algum problema, poderia não ter aceitado o cargo. Aceitei o cargo, estou no cargo, estou com muita vontade de desempenhar o meu cargo e tenho muito gosto em desempenhá-lo. Estou a dar o meu máximo contributo para o cargo e sou um homem feliz, não tenho nenhumas preocupações específicas além das normais do cargo.

A chegada à liderança da Marinha coincide com a mudança na Lei Orgânica de Bases da Organização das Forças Armadas (LOBOFA). Entende a reserva com que outros chefes militares receberam este novo enquadramento legal? Falou-se numa concentração de poderes muito excessiva no Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas…
O que lhe posso dizer sobre isso é que a Terra gira todas as 24 horas e faz um movimento de trasladação ao longo do tempo. E nada é constante ou se mantém para a eternidade. O mundo evolui, as condições evoluem, a forma de olhar para os problemas evolui e é natural que dessa evolução as relações tivessem que ser alteradas. Sinto-me perfeitamente tranquilo com essa evolução, trabalho dentro deste novo esquema e estou aqui para apoiar todas as transformações que sejam necessárias para que o sistema seja mais eficiente e mais eficaz, que é isso que todos queremos, incluindo o poder político.

Não sente que de alguma forma ficou com poderes reduzidos?
Não sinto nenhum poder reduzido. Faço parte de uma Marinha que é holística, que está a olhar para o seu papel na sociedade de uma forma muito mais aberta e ativa e colaborativa.

"As pessoas saíram da organização há 10 ou 20 anos, têm visões que estão datadas do tempo em que viveram as organizações. Essas visões datadas muitas vezes não são consonantes com novas formas de atuar"

Não entende sequer que isto seja uma questão?
Não entendo o problema. Porque depende do que se pretende fazer. E o que eu pretendo fazer, a minha missão, estão adequados aos poderes que me são atribuídos. Responsabilidade igual a poder e poder igual a responsabilidade.

Imagino que tenha refletido sobre as posições que foram assumidas publicamente. Como interpreta essas posições?
Como o mundo evolui e as pessoas saíram da organização há 10 ou 20 anos, têm visões que estão datadas do tempo em que viveram as organizações. Essas visões datadas muitas vezes não são consonantes com novas formas de atuar. O mundo mudou muito nos últimos 20 anos. Além das missões anteriores, as forças armadas participam num conjunto de missões completamente diferentes, desde o apoio à proteção civil e a outras atividades, com o apoio na vacinação e outras áreas da saúde. O mundo mudou muito. A forma como temos de nos articular com o mundo civil mudou muito. Quem julga que as soluções de há 20 ou 10 anos são as que se aplicam hoje ou vão aplicar-se nos próximos 20 anos não percebe que o mundo gira todos os dias à volta do seu eixo e está a trasladar permanentemente.

Voltando a pôr os pés na terra, como há pouco dizia, a verdade é que não foram só antigos chefes militares que tomaram posições críticas sobre a nova LOBOFA. Houve chefes no ativo que tomaram posições a este respeito.
Eu não sou nenhum desses chefes e sou um dos chefes que quer fazer uma revolução, no bom sentido. E essa evolução requer sacrifícios, novas formas de atuar, novas formas de pensar o próprio poder que temos perante a organização e a responsabilidades equivalentes a esse poder. Não me sinto nada diminuído, pelo contrário, sinto-me com âmbito de atuação muito alargado e que me ocupa toda a minha capacidade no desenvolvimento de uma Marinha que se quer cada vez mais aberta, holística, e julgo que os outros ramos sentirão o mesmo. Não vejo esse movimento de voltar para trás como um movimento que me diga qualquer coisa sobre o passado. O passado já passou.

“Quem não está predisposto a sacrifícios não pode estar na Marinha”

Estava a falar sobre a necessidade de fazer sacrifícios, naquilo que é o seu entendimento sobre o que é ser militar. Já o ouvi dizer que ser líder exige determinadas características, e isso é óbvio. Mas que características são essas?
Ter uma visão, ter uma ética que acompanhe essa visão e ter coragem para fazer as mudanças e espírito de sacrifício necessário para suportar os sacrifícios necessários à própria mudança.

E exigir sacrifícios a quem se comanda.
É claro. Quem comanda, deve comandar pelo exemplo. E dando o seu exemplo de sacrifício também está em melhores condições de exigi-los aos outros. Nada acontece sem esforço e esse esforço obriga muitas vezes a sacrifícios. Temos muita gente no mar que não pode estar com as famílias, que tem uma vida muito diferenciada do dia a dia do cidadão normal, mas se não estiver predisposto a esses sacrifícios não pode estar na Marinha.

"As forças armadas são sistemas hierarquizados e disciplinados. Bastava dizer essas duas coisas para lhe explicar que nada do que aconteceu [no episódio dos fuzileiros] foi injusto."

Algumas das pessoas com quem se cruzou na sua carreira destacam uma nota semelhante, que é a ideia de que o senhor exige bastante. Tendo em conta a revolução de que falava há pouco, essa forma de olhar para a instituição está em linha com o sacrifício que os militares estão dispostos a fazer hoje em dia? Ou é uma visão que já vem de trás?
Nós temos de inspirar os nossos militares, e inspirá-los para um sonho de mudança porque ela é uma constante da vida. Espero conseguir inspirar os militares da Marinha com o meu exemplo, com os atos, para que estejam animados para um Portugal novo, mais Atlântico como já foi no passado, mais virado para o mar. Não temos de estar no fim de nada nem somos inferiores a ninguém. Temos um mar gigantesco, temos que aproveitá-lo e desenvolvê-lo e é esse sonho que me anima. Gostaria que os meus militares tivessem o mesmo sonho e julgo que a maior parte terá.

Deve falar com dezenas de militares todas as semanas. É isso que eles lhe pedem, inspiração?
Claro que há coisas que são do dia a dia e estão nas preocupações do dia a dia. O salário é um exemplo. As pessoas têm que viver. Mas há coisas que estão noutro nível de preocupação. Na nossa escala de necessidades de Maslow, temos necessidades básicas e outras mais do topo da pirâmide. Essa relação entre as básicas e as superiores é importante, tem de haver um equilíbrio. Eu tento, de alguma forma, no que é a minha zona de influência, explicar essa necessidade de equilíbrio mas nunca desistir de inspirar os meus militares para esse topo da pirâmide. Temos de sonhar na vida, ter a capacidade de querer mudar a nossa existência e sem receio de fazer sacrifícios para isso.

Estamos a falar de exemplos e de dedicação. O senhor afastou o capelão da Marinha, depois de ele o criticar nas redes sociais a propósito da suspeita de envolvimento de dois fuzileiros na morte de um agente da PSP. Acha que foi injusto na forma como geriu esse episódio?
Não fui nada injusto. Não vou detalhar pormenores mas as forças armadas são sistemas hierarquizados e disciplinados. Bastava dizer essas duas coisas para lhe explicar que nada do que aconteceu foi injusto. Além disso, os valores que todos defendemos têm de ser humanistas. E eu não posso permitir que se relativize a vida humana em determinadas situações.

Aquela tomada de posição, com o discurso na Base do Alfeite, teve bastantes reações. Ficou a sensação de que se estava a criticar a sua própria casa quando o que estava em causa eram dois militares. É injusta a ideia de que quem discorda de Gouveia e Melo acaba afastado?
É muito injusta porque há muita gente que discorda de mim e não é afastada e eu privilegio estar rodeado de pessoas que discordam de mim no sentido em que melhoram a minha performance e capacidade de ver a realidade. Uma coisa é discordarem de mim no campo das ideias, outra é ser indisciplinado ou não lutar por valores que são básicos para a instituição. O que eu fiz foi determinar à instituição uma linha vermelha que não queria que fosse passada. Eu falei para a instituição, não para os dois fuzileiros envolvidos nem para o corpo de fuzileiros. Disse que havia comportamentos que eu não gostava de ver na instituição porque não me revejo naqueles valores. E como não me revejo nos valores, sendo eu o líder e o responsável, em primeiro lugar, por exigir referências e valores importantes na ética da nossa ação, acho que fiz o que devia ter feito, que foi dizer claramente à instituição como um todo que há aqui uma linha vermelha que ninguém vai passar.

"Essas preocupações [sobre uma eventual candidatura a Belém] soam-me até estranhas vindas de determinados setores."

Presidência da República? “Continuem a falar, se quiserem. Eu não tenho nada a ver com isso.”

Ganhou créditos como coordenador da task force. Já foi procurado pelo poder político para “aparecer na fotografia”?
Não. E julgo que nem o poder político quer isso, neste momento, nem eu me prestaria a isso. O que faço é ser militar. Sempre adorei ser militar, a minha natureza é militar, a minha cultura é militar e eu quero é ser um bom militar e contribuir como militar para este país, que julgo que é o que estou a fazer neste momento.

Não lhe passou despercebida a ideia da bastonária da Ordem dos Enfermeiros de que o senhor podia ser o líder do SNS, com a nova figura que se vai criar com o novo estatuto do SNS. Um desafio destes entusiasma-o?
Os desafios que me entusiasmam são os que estou a enfrentar, ser comandante da Marinha e desenvolver a Marinha num sentido mais holístico e catalisador e ajudar o país a olhar para o mar de outra forma. Isso é o que me entusiasma verdadeiramente e foi por isso que lutei a vida toda.

Sabe também da discussão sobre eventuais ambições políticas para uma candidatura à Presidência da República. Isto faz algum sentido?
Não tenho ambição nenhuma além do que disse, que é ser militar e desenvolver a minha atividade militar. Muita gente fala sobre muita coisa. O que é que lhe posso dizer? Continuem a falar, se quiserem. Eu não tenho nada a ver com isso. Sou militar, estou a fazer uma missão militar, estou muito satisfeito com o que estou a fazer, sinto-me plenamente realizado e essas preocupações soam-me até estranhas vindas de determinados setores.

Entrevista com o Almirante Henrique ​​​​​​​​​​​​​​​​​​​Gouveia e Melo, Chefe do Estado-Maior da Armada, fotografado nas instalações centrais da Marinha. Lisboa, 12 de Julho de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Desde que deixou a task force da vacinação, o nome de Gouveia e Melo foi colado a uma corrida a Belém. “Continuem a falar, se quiserem. Eu não tenho nada a ver com isso.”

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Mas as funções que desempenha têm um calendário, uma duração limite. Imagino que olhe para além disso no seu horizonte.
Mas quando essa duração limite acabar também a minha vida, porque já vou sendo parte da faixa mais idosa da população… haverá um dia em que temos de sair e gozar de algum tempo de reforma ou reserva. E há outros projetos, há muita coisa que se pode fazer. Não vejo a minha vida limitada. Neste momento, estou a fazer uma coisa que adoro fazer, que sempre quis fazer, que é ser marinheiro e no posto mais importante.

Depois disso, logo pensará, quando for o caso.
Depois, logo se vê o que acontece. Mas não estou preocupado com isso, estou concentrado na minha missão. E gostaria que me deixassem concentrar na minha missão e não me fizessem a mesma pergunta 300 vezes.

Também não fecha a porta a nada.
Essa pergunta é maliciosa. Qualquer coisa que eu diga é interpretada num sentido ou noutro. Não vou dizer nada.

Disse que o processo de vacinação foi um sucesso, e isso foi reconhecido internacionalmente. O que foi fundamental para esse sucesso?
Um conjunto muito alargado de pessoas que contribuíram para o sucesso. Os enfermeiros, os autarcas, a população, a própria comunicação, na forma como ajudou a criar uma ideia de necessidade e urgência, os militares, nos quais me incluo, o sistema de saúde como um todo, o próprio Ministério da Saúde. Isto foi uma vitória de grupo, dos portugueses em que eu fui um elemento de cola desse esforço. Fui a ponte do icebergue, mas por baixo está um icebergue gigantesco de pessoas que conseguiram fazer isso, incluindo 10 milhões de portugueses que vieram ao processo de vacinação com poucas dúvidas. Porque noutros sítios houve muito mais dúvidas.

Perguntava isto até a pensar num dos grupos que destacou. Nos últimos meses vimos uma série de urgências hospitalares fechar portas por falta de profissionais de saúde. Para quem teve funções tão ligadas ao setor da saúde, preocupa-o a atual situação?
Não vou fazer comentários sobre isso. Estou na função militar e a minha preocupação, neste momento, é a Marinha.

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